Porque a Austrália quer uma mudança de regime em Timor Oriental
Se alguém acreditasse na versão oficial, a entrada das tropas da
Austrália em Timor Leste dever-se-ia aos mais nobre motivos.
Estão ali simplesmente para restaurar a paz e a estabilidade após
o colapso da autoridade do governo. Mas esta ficção
política foi desmascarada pelos acontecimentos dos últimos dias,
pela luta pelo poder que iniciou a crise e que a trouxe à
superfície.
A intervenção do governo de Howard nada tem a ver com a
protecção dos interesses do povo de Timor Oriental. O objectivo
é produzir uma "mudança de regime" substituindo o
governo do primeiro-ministro Mari Alkatiri por uma administração
mais em consonância com os interesses australianos.
Há uma máxima em política exterior que diz que não
existem aliados nem alianças permanentes, só interesses
permanentes. É o caso de Timor Oriental, onde uma das principais
preocupações do governo australiano, apoiado pelo Partido
Trabalhista da oposição, foi assegurar que outros poderes
não tivessem possibilidade de usar sua influência no que se refere
explicitamente ao "pátio traseiro da Austrália".
Em 1999 o governo de Howard enviou tropas para liderar a
intervenção militar da ONU a fim de assegurar que a
Austrália mais do que o primeiro poder colonial, Portugal
exercesse a maior autoridade no Timor Oriental pós-independência e
estivesse na melhor posição para explorar as valiosas reservas de
gás e petróleo. Sete anos depois as motivações
essenciais são as mesmas.
O conflito subjacente com Portugal foi aberto em 9 de Junho quando o
primeiro-ministro John Howard assegurou numa entrevista que a crise de Timor
Oriental devia-se a uma "pobre governabilidade". Era um ataque claro
ao governo de Alkatiri. A declaração foi respondida pelo
ministro dos Negócios Estrangeiros português, Diogo Freitas do
Amaral, que definiu as afirmações de Howar como "uma
interferência nos assuntos internos" de Timor Oriental.
"Não estamos de acordo com esta classe de declarações
por parte de países estrangeiros", acrescentou.
Mas Howard não foi dissuadido. De facto, decidiu dizer mais quando teve
a oportunidade seguinte.
Numa aparição no programa matutino do domingo da televisão
ABC, "Insiders", Howard foi perguntado "quão mau"
havia sido o governo de Timor Oriental e sobre a responsabilidade de Alkatiri.
Howard disse que não queria entrar "em comentários
pormenorizados sobre os políticos do país", mas foi
exactamente o que fez. Era óbvio, dizia Howard, que o país
não fora bem governo nos últimos anos. Além disso disse
que não pensava retractar-se dos comentários feitos dois dias
antes.
Perguntado sobre se os planos a longo prazo da Austrália seriam
semelhantes àqueles levados a cabo nas Ilhas Salomão, onde
oficiais australianos haviam tomado conta do Ministério das
Finanças, assim como da gestão da polícia e das
prisões, Howard foi mais além:
"Bem, não descarto nada, mas não quero declarar nada sobre o
que vai suceder ou sobre o deveria suceder sem antes discutir o assunto com os
timorenses orientais", disse. "Quero dizer, encontramo-nos diante de
um caminho complexo a percorrer. Por um lado, queremos ajudar, somos o poder
regional que está em posição de fazê-lo. É
nossa responsabilidade ajudar, mas quero respeitar a independência dos
timorenses. Contudo, por outro lado, devem desempenhar essa
independência ou as responsabilidades dessa independência com mais
eficácia do que o fizeram nos últimos anos".
O "caminho complexo" refere-se às actividades dos rivais da
Austrália na região, como indicavam os comentários do
ministro dos Negócios Estrangeiros português. Até o
momento, o governo australiano esteve em condições de contestar
estas pressões graças ao apoio dos Estados Unidos. Do mesmo modo
como a administração Clintou apoiou a intervenção
de 1999, a secretária de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice,
deixou claro que o seu país apoia plenamente a última
deslocação de tropas. Numa conversação
telefónica com o ministro das Relações Exteriores
australiano, Alexander Downer, Rice disse ter-lhe perguntado: "O que quer
que façamos?".
O foco imediato da mudança de regime é a reunião do
Conselho de Estado, de carácter consultivo, que se celebra agora em
Dili. Esta entidade, convocada pelo presidente Xanana Gusmão, tem a
capacidade de demitir o governo de Alkatiri e nomear um suposto governo de
unidade nacional até as próximas eleições que devem
ser celebradas em Maio.
Após uma reunião de 9 horas celebrada ontem [dia 10], o Conselho
não chegou a tomar uma decisão e as negociações
continuam hoje. Enquanto isso, não havendo decisão oficial, o
ministro das Relações Exteriores de Timor Oriental, José
Ramos Horta, deixou claro que, no que a ele e a Xanana Gusmão se refere,
Alkatiri deve renunciar.
Em declarações à televisão ABC, Ramos Horta disse:
"O que agora é necessário é uma solução
da actual crise política que implica, obviamente, primeiro o
primeiro-ministro no sentido que muita gente quer, o da sua
renúncia".
Quando perguntado da sua situação, Ramos Horta recusa comentar,
explicando que está envolto em negociações com ambas as
partes.
A campanha em Timor Oriental para expulsar Alkatiri, o líder do partido
preponderando (Fretilin) decorre há algum tempo. A
situação explodiu após a decisão de Alkatiri de
converter em opcional a educação religiosa, ao invés de
obrigatória.
Este movimento elementar de separação igreja-estado provocou
denúncias virulentas da igreja católica. Celebraram-se
manifestações com proclamações de expulsão
de Alkatiri e o final do "seu governo extremista". Numa nota
pastoral publicada em Abril de 2005 a hierarquia eclesiástica de Dili
dizia que o gabinete continha "marxistas" que punham a democracia em
perigo. Além disso dizia-se que o governo seguia políticas
baseadas no "modelo chinês" e no "terceiro mundo
retrógrado".
Segundo uma reportagem do
Asia Times,
o embaixador dos Estados Unidos em Timor Oriental apoiava abertamente a igreja
nos seus protestos de rua contra o governo no ano passado, chegando inclusive a
comparecer pessoalmente a uma delas.
Em Janeiro último um líder da Fretilin membro do parlamento
nacional, Francisco Branco, denunciou que um conhecido sacerdote empreendeu uma
campanha para derrubar o governo. Segundo Branco, o sacerdote havia explicado
aos paroquianos que a decisão de enviar estudantes a Cuba converteria
Timor num país comunista e que a Fretilin havia planeado matar padres e
freiras se ganhasse as eleições seguintes.
Uma vez iniciada a intervenção militar, os media australianos,
seguindo o governo Howard, aumentaram as denúncias contra o governo de
Alkatiri.
Num comentário publicado sábado passado, o editor australiano
Greg Sheridan qualificou Alkatiri como um "desastroso primeiro-ministro,
liderando a 'chamada camarilha de ideólogos de Moçambique', em
referência ao longo período de exílio de Alkatiri em outra
colónia portuguesa durante a ocupação indonésia de
Timor Oriental.
"A catastrófica decisão de converter o português em
língua nacional de Timor Oriental ilustra perfeitamente o dogmatismo e o
grau de irrealidade do pensamento de Alkatiri. É uma decisão que
priva de direitos civis os jovens timorenses que falam tetun, indonésio
ou inglês. Entrincheira a camarilha de velhos e dogmáticos
marxistas-leninistas da Fretilin e exacerba as divisões no seio da
sociedade de Timor Oriental. Além de não ajudar em nada a que os
jovens de Timor Oriental ganhem a vida".
Alkatiri e os seus partidários não são marxistas nem
comunistas. Nem tão pouco o governo de Howard e seus porta-vozes dos
media estão interessados nas políticas do governo para o povo de
Timor Oriental. A oposição australiana a Alkatiri baseia-se em
que Alkatiri e sua facção procuram apoios de outras
potências mais relevantes, principalmente Portugal e, cada vez mais,
durante o último período, a China, como contrapeso ao
imperialismo australiano.
Após quatro anos de intransigência de Howar e Downer, o governo de
Dili foi obrigado no ano passado a adiar o acordo sobre fronteiras
marítimas entre os dois países por 50 ou 60 anos. Segundo o
direito internacional de fronteiras que a Austrália recusa-se a
reconhecer, Timor Oriental tem direitos sobre a maioria dos recursos de
gás e petróleo. Contudo, Canberra teve êxito na hora de
conseguir que Dili cessasse suas reclamações de soberania sobre
as áreas chave de recursos do mar de Timor durante duas
gerações. É o tempo suficiente para que se esgotem as
principais fontes de gás e petróleo.
Se Alkatiri fosse considerado um aliado da Austrália em Timor Oriental,
e não como um obstáculo, a atitude do governo Howard, e
consequentemente os comentários dos mass media, teriam sido muito
diferentes.
Para começar, os chamados soldados dissidentes, cuja rebelião
acendeu a mecha da crise, não seriam retratados como vítimas de
uma injustiça. Ao invés disso, a decisão de despedi-los
depois de terem ido à greve teria sido aprovada. Os comandantes do
exército australiano ao invés de manter contactos com os
"rebeldes" te-los-iam denunciado por organizar um motim, tomando as
leis nas suas mãos e criando condições para o terrorismo.
Contudo, a campanha para expulsar o governo de Alkatiri ajusta-se perfeitamente
aos interesses australianos.
Estes interesses centram-se em assegurar a posição australiana
numa região onde crescem grandes conflitos de poder. Como destacava
ontem um comentário da Australian Financial Review, a rivalidade
emergente entre o Japão e a China está a estender-se pelo
Pacífico, colocando um "desafio real a um governo que afirma sempre
manter magníficas relações com Tóquio e com
Pequim".
Depois de assinalar questões económicas de longo prazo que sempre
motivaram a política exterior australiana na região, o
comentário prosseguia: "É útil recordar que em 1920
os planificadores estratégicos da Austrália estavam preocupados
porque o Japão tentava lançar suas redes nos supostos recursos
petrolíferos do Timor português, e em 1975 abrigava-se o medo de
que a China manipulasse os independentistas timorenses de esquerda a fim de
obter vantagem territorial".
Agora que é clara a existência de recursos em gás e
petróleo, a rivalidade entre o Japão e a China pela energia
apresenta desafios crescentes à Austrália, acrescentava o
comentário.
Uma das maneiras de satisfazer estes repto é assegurar que se
estabeleça um regime "fiável" em Dili. Este é
um factor subjacente importante na luta pelo poder que se desenvolve na capital
de Timor Oriental.
11/Junho/06
[*]
Analista político australiano.
A versão em castelhano encontra-se em
http://www.sinpermiso.info/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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