Relações de intimidação: Austrália,
Timor-Leste e recursos naturais
|
"A Comissão optou ao invés pela saída mais
fácil, a qual é uma vergonha pois na minha
percepção revela a sua própria falta de
imparcialidade!"
Xanana Gusmão
, negociador chefe de Timor-Leste, 28/Fev/2018
|
Na lógica das coisas, a Austrália foi delegada como capataz
regional das potências imperiais desde o momento em que se tornou um posto
avançado do império britânico. Os estados vizinhos
têm sido ridicularizados e zombados como se fossem constituídos
por sub-humanos e incapazes. A expressão "estado falhado"
ainda é utilizada em círculos de poder de Camberra em
relação a casos desesperados. Não é de admirar que
a China pressinta uma reputação tortuosa.
É nesse estado de espírito que teve lugar a assinatura de um
acordo entre a Austrália e Timor-Leste para demarcar fronteiras
marítimas. Oficialmente, havia sorrisos, mesmo tapinhas na costa. O
comunicado de imprensa de 7 de Março
da ministra dos Negócios Estrangeiros, Julie Bishop, transmite este
momento de falsa elevação:
"O tratado é um acordo histórico que abre um novo
capítulo no nosso relacionamento bilateral. Ele estabelece fronteiras
marítimas permanentes entre nossos países e proporciona
desenvolvimento e gestão conjunta dos campos de gás Great
Sunrise".
A narrativa por trás desta fricção premente era mais
problemática. Ambos os países haviam, afinal de contas, atingido
este ponto depois de alegações de espionagem terem
ameaçado afundar as conversações. Aquelas
alegações referiam-se a esforços por parte do Australian
Secret Intelligence Service de
espionar delegados timorenses
durante as negociações de 2006 do CMATS (Certain Maritime
Arrangements in the Timor Sea). No que se refere à divisão das
receitas nesse caso, o campo de gás Greater Sunrise no Mar de
Timor os espectros continuarão.
Os pontos centrais do contencioso histórico entre os estados são
os tradicionais: recursos naturais e como melhor aproveitá-los. Nenhum
dos dois podia concordar sobre quem teria acesso às reservas de
petróleo e gás no Mar de Timor. O imbroglio político teve
sua origem no Tratado Timor Gap assinado em 1989 entre a Austrália e a
Indonésia quando a cleptocracia do presidente Suharto, para não
mencionar a brutal repressão de Timor Leste, foram considerados assuntos
aceitáveis de realpolitik.
A subsequente libertação de Timor-Leste deixou o estado nascente
numa situação perigosa, próxima da morte. A
Indonésia e a Austrália continuavam a partilhar os recursos do
Timor Gap numa alegre festa glutona até a assinatura do Tratado do Mar
de Timor. O documento tinha uma deriva gritante: a falta de uma fronteira
marítima determinada e permanente. O CMATS, o qual Timor-Leste rasgou
devidamente, permitir uma divisão igual das receitas, mas adiava da
mesma forma a discussão de uma fronteira marítima.
Foi central para a estratégia de Timor-Leste uma
determinação de fazer isto de acordo com o direito internacional.
Timor-Leste argumentou em favor de uma fronteira marítima que ficasse a
meio caminho entre o seu país e a Austrália, que seguisse sua
plataforma continental. O Tribunal Permanente de Arbitragem e os
Comissários da Conciliação estiveram devidamente
empenhados em aplicar a Convenção da ONU sobre a Lei do Mar. A
Austrália subsequentemente
celebrou o resultado
como "a primeira conciliação de sempre sob o UNCLOS".
Apesar de estudantes de direito internacional louvarem o resultado, a
dimensão política demonstrou-se mais feia. O negociador chefe de
Timor-Leste e Xanana Gusmão, a versátil figura da
resistência, fustigou a Austrália e os Comissários
numa carta
à Comissão de Conciliação.
A Comissão, argumentou ele, era ignorante em assuntos timorenses. O
"perito técnico escolhido não tinha a experiência
apropriada ou o entendimento do trabalho em Timor-Leste ou no contexto de um
país em desenvolvimento semelhante". Suas avaliações
sobre "benefícios potenciais para a população de
Timor-Leste" foram "chocantemente superficiais", um ponto que
só beneficiou a Austrália.
Gusmão também tinha outra queixa: os negociadores australianos
aparentemente haviam sido escolhidos pelos peso-pesados da indústria
extractiva, a Woodside Petroleum e a Conoco Philips. "A sociedade civil
poderia potencialmente perceber isto como uma 'forma' de conivência entre
o Governo da Austrália e a Darwin LNG Partners e/ou a Sunrise J".
Que os responsáveis de Timor-Leste devessem arvorar suspeitas obstinadas
é não só entendível como sagaz. Negociar com
repressivos e sanguinários militares indonésios foi bastante
penoso. Mas chegou então ao conhecimento internacional o regime brutal
que operava no Timor-Leste, o conhecimento que vinha de certa forma associado
à cumplicidade activa. Conversações fraternais tendem a
ser falsificadas no mercado da geopolítica.
O relatório de 2500 páginas da
Comissão para a acolhida, verdade e reconciliação em Timor-Leste
, entregue pelo então presidente Gusmão ao parlamento nacional em
Novembro de 2005 mencionava centenas de documentos reveladores anteriormente
classificados pelos EUA e Grã-Bretanha. Eles mostravam a
aprovação tácita
tanto dos EUA como da Grã-Bretanha à invasão de
Timor-Leste em 1975 e ao status quo até 1999, período durante
qual morreram cerca de 100 mil timorenses.
Houve mesmo exemplos de responsáveis indonésios a mostrarem
interesse, como declara um
memorando
do Conselho de Segurança Nacional ao secretário de Estado Henry
Kissinger, "em saber a atitude americana em relação ao Timor
português (e, por implicação, nossa reacção a
uma possível tomada de controle indonésio)". Eles não
foram desapontados.
Ainda em 2014, o governo australiano fez consideráveis esforços
para impedir a divulgação de ficheiros referentes ao conhecimento
de Canberra de deslocações de tropa indonésia durante a
ocupação. De sensibilidade particular foram as
operações conduzidas no fim de 1981 e princípio de 1982,
as quais acabaram num massacre previsível. Numa decisão do
Tribunal Administrativo de Recursos a concordar com o governo, o presidente
Duncan Kerr
afirmou com absurdo kafkiano que ele tinha de "exprimir conclusões
as quais sou incapaz de explicar".
O que a justiça revelou foi um petisco tentador acerca da
intimidação regional a que Timor-Leste foi sujeita às
mãos de assassinos e ocasionalmente potências cúmplices.
Evidência submetida ao Department of Foreign Affairs and Trade [da
Austrália] revelou uma certa insistência por parte das autoridades
dos EUA em 2013 pretendendo que "o governo australiano continue a
restringir acesso... a quatro documentos" com "sensibilidades em
curso".
Timor-Leste permanece um estado precário. Está empobrecido.
Apesar de tudo, a preferência australiana continua determinada e
exploradora. A questão sobre onde o petróleo e o gás
serão processados continua como um incómodo assunto melindroso.
Canberra prefere que a tubagem tenha lugar através de Darwin, com o
incentivo de uma receita de 80 por cento para Timor-Leste.
Isso dificilmente é aceitável para Dili, a qual considera valiosa
ter a instalação de processamento em Timor-Leste, onde um
"centro petrolífero"
está a ser desenvolvido. Com esse objectivo, está mesmo disposta
a aceitar um corte de receita em favor da Austrália. As
maquinações do poder e o lobby australiano do petróleo
ainda podem desfazer estes acordos. A intimidação regional
continua a renascer.
08/Março/2018
[*]
Foi académico da Commonwealth no Selwyn College, em Cambridge. Dá
aulas na RMIT University, em Melbourne. Email: bkampmark@gmail.com
O original encontra-se em
countercurrents.org/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|