por Sara Flounders
Será que a administração Bush tenta realmente ajudar o
povo de Myanmar após o desastre natural que o atingiu? Neste caso, por
que insiste ela em que o Pentágono se encarregue desta ajuda? E por que
esta administração impôs sanções contra o
país quando sabia que um ciclone estava prestes a desencadear-se?
A 2 de Maio último, uma das mais severas tempestades do século
assolou o delta do Irrawaddy, no Myanmar (ou seja, a Birmânia, no golfo
de Bengala), uma região de baixa altitude e muito agrícola.
Embora a região seja fértil, ela é também
subdesenvolvida e sua altitude muito baixa expõe-na aos riscos de
inundação. O delta é habitado por um quarto dos 57
milhões de habitantes do Myanmar. O último ciclone tropical a
atingir a costa remontava a 40 anos.
Os meteorologistas seguiam o ciclone tropical Nargis desde há uma
semana. Mas, quando o ciclone atingiu a costa, ele trouxe consigo uma onda
gigante imprevista, de enormes proporções. Um muro de
água de três a quatro metros de altura avançou mais de dez
quilómetros nas terras.
Mais de um milhão de pessoas foram deixadas sem abrigo e dezenas de
milhares foram dados como desaparecidos. As estimativas falam em 20 a 100 mil
mortos. Yangon, a antiga capital (ex-Rangum) e o principal porto comercial do
país, não é senão um vasto amontoado de escombros.
Os media tradicionais americanos despejam relatos sobre a amplitude do desastre
e sobre a incapacidade do governo local para tratar da ajuda e dos socorros,
passando completamente em silêncio o comportamento extremamente negativo
do governo americano no encaminhamento de socorros em caso de desastre.
Cada novo artigo nos medias repete as exigências de Washington tendo em
vista obter pleno acesso militar ao Myanmar a fim de fornecer uma ajuda
urgente. Os media estão ultrajados e chocados porque o Myanmar
não permite aos aviões militares americanos aterrarem no seu
território nem às embarcações da US Navy atracarem
nos seus portos. A acusação pretendendo que não se pode
fiar no governo de Myanmar para a distribuição da ajuda é
repetida a cada momento.
Aquilo que os media não dizem é que a administração
Bush, nos seus cálculos e planeamento criminosos, fez premeditadamente
tudo o que podia para complicar ainda mais os esforços de ajuda. Na
véspera do dia em que o ciclone Nargis atingiu o Myanmar, quando a
aproximação da tempestade gigantesca já fora anunciada e
era seguida desde há uma semana, o presidente George W. Bush assinou uma
nova molhada de sanções económicas extremamente severas
contra o Myanmar. Estas sanções constituem um acto de
agressão, uma forma de guerra económica que visa especificamente
os mais pobres e os mais desamparados.
Impor sanções no próprio momento em que o ciclone se abate
Com todos os seus satélite espiões, Washington estava muito mais
a par do que iria acontecer do que o próprio povo do Myanmar. As
sanções tornaram quase impossíveis as
doações directas americanas e internacionais em fundos e ajudas
de urgência. A 2 de Maio, a Xinhua News relatava que ordem executiva de
Bush foi literalmente "bloquear todas as propriedades e todos os
interesses sobre propriedades de entidades e indivíduos designados como
pertencentes ou estando sob controle do governo da Birmania (Myanmar)".
Esta ordem executiva criminosa de decretar sanções ainda mais
severas foi seguido alguns dias depois por expressões de viva
inquietação quanto à população sinistrada.
Não se poderia exibir mais cinismo e hipocrisia.
As novas sanções impedem as organizações
humanitárias americanas e os cidadãos americanos considerados
individualmente de fazerem doações directas de dinheiro às
organizações que se ocupam dos socorros neste pobre país.
As organizações de ajuda americana, tais como a Cruz Vermelha dos
EUA, consideraram que não podiam fornecer senão uma ajuda
limitada sem pessoal e sem dinheiro aos esforços de
socorro, dadas as sanções impostas. Os media tradicionais
americanos redigiram centenas de relatos dando com arrogância
lições ao Myanmar sobre o que não se faz, mas eles nem
sequer mencionam o impacto das novas sanções impostas pelos
Estados Unidos no próprio momento em que a tempestade se abatia sobre o
país.
Apoiando-se na monitorização dos satélite
meteorológicos, numerosos especialistas seguiram a tempestade à
medida que ela ganhava intensidade. Quase uma semana antes de ela atingir as
terras, o departamento indiano de meteorologia forneceu advertências
muito pormenorizadas sobre a sua rota, sua velocidade e os lugares que
atravessava. Mas enquanto recebia muitas mensagens escritas e
advertência da Índia desde 26 de Abril e as difundia na
rádio nacional, o governo do Myanmar não dispunha contudo de
radares costeiros que lhe permitissem detectar o percurso de um ciclone e o
país, muito pobre, não dispõe tão pouco do menor
plano de evacuação.
O governo americano insistiu em que o Pentágono obtivesse o direito de
fornecer a ajuda com o seu pessoal e os seus próprios equipamentos.
É evidente que este rico país imperialista não tem outro
meio de fornecer a ajuda humanitária senão à ponta das
suas baionetas!
Contudo, muitos outros países encontraram meios diferentes dos militares
para fornecer uma ajuda imediata. A rádio nacional do Myanmar relatou
que a ajuda humanitária internacional afluiu a partir da China,
Índia, Japão, Singapura, Itália, Bangladesh, Laos e
Tailândia e que aviões vindos destes países pousaram no
aeroporto internacional de Yangon com tendas, mosquiteiros, geradores
eléctricos, medicamentos, sistemas de purificação da
água, batatas e porco liofilizados, massas de cozedura
instantânea, vestuário, folhas de zinco, martelos e pregos, velas,
etc.
O governo americano exprimiu indignação por constatar que, ao
aceitar a ajuda estrangeira, o Myanmar não permite ao pessoa estrangeiro
supervisionar a distribuição desta mesma ajuda. A 9 de Maio, o
jornal gerido pelo governo birmanês,
New Light of Myanmar,
explicava porque procedia assim: "O Pentágono está
desesperado por não poder instalar bases militares no nosso
país".
Não se trata portanto de paranóia delirante da parte da junta
militar que dirige o Myanmar. O Pentágono mal dissimulou seu interesse
na derrubada do regime. O que se verifica no momento em que o país
é pressionado para que se abra e autorize a instalação de
bases americanas e o acesso das companhias americanas às vastas reservas
de petróleo e de gás que, no Myanmar, foram nacionalizadas.
Eis como Shawn W. Crispin explica a coisa num artigo intitulado
"Argumentos a favor da invasão do Myanmar" ("The case for
invading Myanmar"):
"No momento em que a Marinha e a Aviação de guerra dos
Estados Unidos estão prontos e que mais de um milhão de
cidadãos do Myanmar são abandonados à sua sorte na lama,
sem abrigo e expostos a toda espécie de doenças trazidas pelo
ciclone Nargis, o grande desastre natural apresenta uma oportunidade de crise
para os Estados Unidos.
"Uma intervenção unilateral dos Estados Unidos muito
susceptível de ser aprovada pelas Nações Unidas em
nome do humanitarismo poderia facilmente mudar o curso das coisas opondo-se aos
dirigentes militares impopulares deste país empobrecido e, ao mesmo
tempo, reabilitar a herança da política militar antecipativa
muito controversa do presidente George W. Bush, considerado por muitos como um
fracassado.
"A aviação e a marinha de guerra americanos inclusive
os aviões militares americanos C-130 que se encontram actualmente na
vizinha Tailândia, bem como os navios de guerra USS Kitty Hawk e USS
Nimitz, estão actualmente em posição de espera nas
águas próximas. (...) Não há dúvida de que
neste momento os decisores políticos de Washington encaram as
potencialidade a favor e contra de uma missão
humanitária antecipativa num país que constitui um eixo
estratégico e que acaba de ser bruscamente enfraquecido" (
Asia Times 0nline,
10 Maio)
Uma doutrina de choque
Muitos países, mesmo em pleno desastre, temem a ajuda americana e
ocidental porque ela é dada muitas vezes ligada a truque, inclusive
condições onerosas de endividamento e exigências referentes
à reorganização da sua economia e a
privatização dos seus recursos quando estes estão
nacionalizados.
A obra de Naomi Klein, "A doutrina de choque: o nascimento do capitalismo
do desastre" ("The Shock Doctrine: The Rise of Disaster
Capitalism") descreve muito minuciosamente como a ajuda americana, o FMI e
o Banco Mundial são utilizados para tirar partido de um país em
estado de choque, mesmo quando este é confrontado com uma infraestrutura
arruinada a seguir a uma catástrofe natural do tipo furacão,
tsunami, seca ou inundação. Tais crises são consideradas
como uma oportunidade de impor directamente uma impopular "terapia de
choque" económico, tal como a venda dos bens do Estado e a
privatização dos recursos naturais. Trata-se de uma terapia,
sim, mas sobretudo em proveito dos banqueiros internacionais, não dos
países afectados.
O curriculum americano em Nova Orleans e no Iraque
Aquilo que está absolutamente ausente das lições dadas
pelos medias "de referência" acerca do que o Myanmar deveria ou
não deveria fazer é o curriculum particularmente desastroso da
classe dirigente americano no que se refere a planeamentos de urgência,
de evacuação e de socorros durante e após a passagem dos
furacões Katrina e Rita sobre Nova Orleans e as costas do Golfo do
México.
O mundo inteiro pôde constatar a negligência criminosa, o racismo,
a ausência de planeamento e a confusão total quando
inundações e diques arrebentados puseram completamente debaixo de
água a cidade de Nova Orleans, a 28 de Agosto de 2005.
Este desastre foi seguido por uma recusa arrogante a aceitar a ajuda de
organizações e indivíduos que se apresentavam a
título benévolo, bem como por uma recusa insultuosa de toda ajuda
internacional. As propostas de ajuda de Cuba e da Venezuela, que dispunham de
equipes de médicos prontos para partir e perfeitamente equipados e que
propunham toneladas de alimentos, água e mesmo um milhão de
barris de petróleo suplementares, foram recusadas. Mesmo a
aviação francesa e um navio hospital que estava pronto na
Caraíbas, assim como a ajuda alemã e russa, ficaram em suspenso.
Equipes internacionais de televisão sobrevoaram os lugares e filmaram os
sinistrados desesperados, apinhados sobre telhados. Mais de 20 mil pessoas sem
água potável, sem alimento, sem equipamentos sanitários
nem cuidados foram amontoados no Superdome e dezenas de milhares de outras
passaram dias e dias no Convention Center sob um calor tórrido e nas
mesmas condições. As equipes de urgência provenientes dos
quatro cantos dos Estados Unidos viram-se proibidas de ter acesso a Nova
Orleans.
Os helicópteros das Força aérea, numa baixa muito
próxima, foram mantidos no solo, enquanto os seus pilotos propunham
insistindo seus serviços a fim de utilizar estes mesmo
aparelhos em repouso para evacuar pessoas. A FEMA (agência federal para
situações de emergência) e a Homeland Security
(serviço de segurança interna) de facto bloquearam a ajuda e os
voluntários, conforme numerosos relatos dos media. Camiões
transportando água e toneladas de materiais provenientes dos quatro
cantos do país jamais puderam chegar a Nova Orleans.
Dois anos e meio depois, dezenas de milhares de pessoas evacuadas não
tiveram a possibilidade, nem a autorização, para retornarem
às suas casas.
O Pentágono no Iraque e na Somália
As actuações do Pentágono no Iraque são ainda
piores. Mais de cinco anos depois de ter aberto um caminho à
força num Iraque paralisado e enfraquecido pelas sanções,
o exército americano revelou-se incapaz de cobrir as menores
necessidades elementares de sobrevivência em água potável,
alimentação de base, electricidade, educação e
cuidados médicos de urgência.
Se mais de 160 mil soldados americanos, 100 mil mercenários das
sociedades privadas e a mais impressionante panóplia militar jamais
empregue no planeta não são capazes de fornecer electricidade ou
água potável permanentes em Bagdad, será que se pode
decentemente esperar que eles façam melhor em Yangon?
Servindo-se do pretexto da necessidade de uma missão humanitária
numa Somália assolada pela fome, os Estados Unidos forçaram uma
resolução da ONU permitindo aos Marines ocuparem a capital do
país, Mogadiscio, em Dezembro de 1992. A população,
escandalizada, expulsava estes mesmo Marines no ano seguinte. O
Pentágono errou totalmente na avaliação do sentimento
anti-imperialista popular, mesmo de uma população tão
desamparada e desesperada.
No Myanmar, a oposição maciça à
dominação britânica, depois americana, representa uma
corrente poderosa no seio da população. Toda
intervenção poderia enfrentar uma resistência tenaz, apesar
dos sofrimentos provocados pelo ciclone.
Em todos os ataques dos media americanos ao governo de Myanmar e sua ditadura,
é importante recordar que o Pentágono encorajou, sustentou, armou
e financiou ditadura militares sangrentas no mundo inteiro, desde a
Arábia Saudita e a Indonésia até o Paquistão, o
Chile e o Congo. A hostilidade de Washington em relação à
ditadura birmanesa não resulta das medidas repressivas desta
última mas do facto de ela não ter desfeito na
nacionalização dos recursos naturais do Myanmar, imposto por um
sentimento anti-colonial maciço há algumas décadas. E
é exactamente isso que as sociedades americanas estão
determinadas a alterar.
O movimento anti-guerra e progressista deveria mostrar-se circunspecto quando
à campanha dos media reaccionários em torno de Myanmar. As
pessoas que lá vivem têm direito a uma ajuda internacional
imediata e livre de quaisquer exigências e sanções da parte
dos Estados Unidos.
15/Maio/2008
O original encontra-se em
http://www.workers.org/2008/world/myanmar_0522/
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Traduzido da versão em francês no sítio
http://michelcollon.info
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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