Que fazer com a dívida?
por Alejandro Teitelbaum
[*]
Para analisar as possíveis soluções para o problema da
dívida é preciso examinar primeiramente os exemplos da
história. Eles demonstram que nunca ou quase nunca as grandes
potências pagaram suas dívidas. Dizia Keynes
[1]
: "...os incumprimentos por governos estrangeiros da sua dívida
externa são tão numerosos e certamente tão próximos
da universalidade que é mais fácil tratar deles nomeando aqueles
que não incorreram em incumprimento do que aqueles que o fizeram.
Além daqueles países que incorreram tecnicamente em
incumprimento, existem alguns outros que pediram emprestado no exterior na sua
própria moeda e permitiram que essa moeda se depreciasse até a
menos da metade do seu valor nominal e em alguns casos até uma
fracção infinitesimal. Entre os países que assim actuaram
deve-se citar a Bélgica, França, Itália e Alemanha".
Galbraith
[2]
cita vários exemplos de dívidas externas (sobretudo dos
países ditos desenvolvidos) que nunca foram pagas.
Sergio Bitar, no prólogo de um livro de Gonzalo Biggs
[3]
cita Andrew Mellon, que foi secretário do Tesouro dos Estados Unidos em
fins dos anos 1920, o qual declarou: "A insistência no cumprimento
de um convénio que supere a capacidade de pagamento de uma
nação servir-lhe-ia de justificação para negar-se a
qualquer acerto. Ninguém pode fazer o impossível... aqueles que
insistem em cláusulas impossíveis estão a propiciar em
última instância o repúdio completo da dívida".
Isto foi dito por Mellon para justificar a assinatura de 15 convénios
destinados a reprogramar as dívidas de guerra dos países europeus
com os Estados Unidos. Apesar desta reprogramação, posteriormente
a Alemanha e outros países europeus suspenderam o pagamento das
dívidas de guerra para com os Estados Unidos.
Biggs, no seu livro, menciona numerosos precedentes históricos de
países que não pagaram suas dívidas externas, dentre eles
os Estados Confederados do Sul depois da Guerra de Secessão. A referida
dívida foi anulada mediante a Emenda XIV da Constituição
dos Estados Unidos, de 16 de Junho de 1866, que diz: "...nem os Estados
Unidos, nem nenhum dos Estados reconhecerão ou pagarão
dívida ou obrigação alguma que se tenha contraído
para ajudar uma insurreição ou rebelião contra os Estados
Unidos...; estas dívidas, obrigações e
reclamações serão consideradas ilegais e nulas".
(Biggs, pgs. 101 e 102).
Biggs afirma que se os países latino-americanos recebessem um tratamento
semelhante ao da Alemanha e outros países europeus após a
primeira guerra mundial (que acabaram por não pagar suas dívidas)
a dívida latino-americana deveria ser reduzida em mais de 50 por cento e
os prazos de vencimento da mesma prorrogados até depois do ano 2050
(Biggs, pg. 171). O professor José Antonio Alonso, num artigo publicado
em 17/Abril/2001 no diário espanhol
El País,
depois de indicar o elevado custo económico e social da dívida
dos países em desenvolvimento, assinala que para o pagamento da
dívida alemã após a Segunda Guerra Mundial foi fixada uma
quota máxima 4,6% das suas exportações, a fim de
"não deslocar a economia" e "não drenar
indevidamente seus recursos". Ou seja, a Alemanha, depois de haver
provocado a maior hecatombe humana da história, recebeu melhor
tratamento do que actualmente recebido pelos países devedores pobres.
Biggs diz que a experiência histórica mostra que em todas as
crises financeiras internacionais os credores ou seus governos tiveram de
assumir uma parte importante das perdas resultantes dos seus empréstimos
ou investimentos e que a única excepção a esta regra foi a
latino-americana (pg. 28). Poder-se-ia acrescentar que actualmente a
excepção atinge não só os países
latino-americanos como todos os países devedores pobres.
Do ponto de vista jurídico, reconheceu-se o direito de um governo
constitucional desconhecer as dívidas contraídas por um governo
ditatorial anterior, com fundamento na má fé do credor (que
emprestou sabendo o destino alheio ao interesse público do
empréstimo) e na falta de representatividade do devedor. O general
Tinoco havia assumido o poder mediante um golpe de Estado na Costa Rica, em
1917, e seu governo contraiu uma dívida com o Royal Bank of Canada. A
referida dívida foi desconhecida pelo governo constitucional posterior.
Em 1923, o juiz Taft do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, que actuou como
árbitro entre o Royal Bank e o Governo da Costa Rica, recusou a
exigência de reembolso da dívida, com os fundamentos mencionados
[4]
. Já vimos contraírem-se dívidas simuladas e que durante
longos períodos os juros cobrados pelas mesmas foram usurários,
factos que entram na esfera penal. Além disso, os juros cobrados
incorporaram-se ao capital em dívida, de modo que se tornaram juros
sobre juros (anatocismo), o que está proibido nas
legislações de muitos países. Assim, juridicamente pode-se
considerar que a dívida é globalmente ilegítima e seu
pagamento não exigível. Também no plano jurídico
cabe fazer valer o princípio
"rebus sic stantibus",
ou seja, o direito a não cumprir uma obrigação quando as
condições da mesma mudaram de tal maneira que o seu cumprimento
resulta numa onerosidade extrema e invocar o enriquecimento sem causa dos
credores (direito de reclamar a devolução e
obrigação de devolver o que se recebeu sem direito).
Afirma Biggs: "A iniciativa de exigir a revisão substancial das
negociações... cabe aos países devedores e não se
pode supor que, para isso, estes tenham necessariamente de contar com o apoio
ou compreensão das demais partes. Mas o temor do antagonismo não
pode justificar o prolongamento e intensificação de um agravo
irreversível sobre a segurança e o bem-estar das actuais e
futuras gerações latino-americanas" (pgs. 33 e 34).
Bitar, no referido prólogo, assinala: "Uma extracção
de recursos tão vultuosos das nações pobres pelas
nações ricas obedece em definitivo a condições de
poder. Mas no final tem um limite: a capacidade de pagamento do devedor. E este
conceito depende de uma decisão nacional: o que é essencial para
o povo e para investir não está disponível para ser
transferido ao exterior" (pg. 18). Mas a capacidade de
negociação com os credores dos governos dos países
devedores em defesa dos interesses dos seus próprios povos parece ser
nula, pois comportam-se como meros executores das políticas ditadas a
partir dos centros do poder mundial. Quando as autoridades de um Estado, sem
ter em conta precedentes históricos praticamente invariáveis, a
ilegitimidade da dívida actual e que o que "é essencial para
o povo e para investir não está disponível para
transferência ao exterior", não só não
negoceiam firmemente com os credores, ameaçando-os com o repúdio
total da dívida, como acatam submissamente suas exigências, podem
ser imputados de crime de traição, tanto os funcionários
governamentais que assim actuem como os parlamentares que, por
acção ou omissão, consintam tal actuação.
As bases jurídicas para tal imputação geralmente existem
nas legislações nacionais. Exemplo: segundo o Código Penal
argentino, comete traição quem "executar um facto destinado
a submeter a nação, total ou parcialmente, ao domínio
estrangeiro ou a reduzir sua independência ou integridade" e a
Constituição argentina qualifica de "infames traidores
à pátria" aqueles que "formulem, consintam ou
assinem" actos pelo quais "a vida, a honra ou as fortunas dos
argentinos fiquem à mercê de governos ou de alguma pessoa"
(artigo 29).
Mas enquanto os povos afectados não impuserem a negociação
com actos maciços de rebeldia contra os sucessivos ajustes e
sacrifícios, esta situação não tem possibilidade de
mudar. Isto também é sabido pelos credores, pois consideram que
podem continuar a espoliar os povos dos países devedores enquanto a
paciência dos mesmos não se houver esgotado. Com efeito, no caso
do México, em Junho de 1987 a Heritage Foundation afirmou que a
circunstância de o governo desse país haver eliminado os
subsídios ao consumo, aumentado drasticamente os impostos e reduzido em
50 por cento os salários reais, "sem uma rebelião
maciça" da sua população, indicaria que o governo
ainda teria espaço para aprofundar essa política e realizar,
também sem obstáculos, a reforma e privatização
completa do aparelho económico do Estado
[5]
.
Do ponto de vista económico-financeiro, se se fizesse um estudo
actuarial descontando as dívidas fictícias, os juros
usurários, os juros dos juros, os gastos e comissões
desproporcionados e a fuga de capitais, chegar-se-ia à conclusão
de que a dívida foi totalmente paga e provavelmente seria visto que os
supostos devedores são na realidade credores. Um documento de
25/Junho/2001 de Jubileo Sur diz que em 1980 os países do Sul deviam 567
mil milhões de dólares, que desde então pagaram 3,45
milhões de milhões, ou seja, seis vezes o montante da
dívida de 1980 e que no entanto devem actualmente mais de dois
milhões de milhões, ou seja, três vezes e meia mais que em
1980.
Finalmente, de um ponto de vista ético, haveria que colocar a suposta
dívida num prato da balança e no outro prato a dívida
social, ecológica e histórica que os credores têm com os
supostos devedores. Ou seja, por nesse prato o enorme dano social causado com
as políticas de ajuste, o dano ecológico provocado por
indústrias contaminantes, com os resíduos tóxicos
transportados para países do Terceiro Mundo, com a
devastação das florestas e a dívida histórica
contraída com os supostos devedores durante séculos de
espoliação das suas riquezas e recursos humanos.
Pode-se afirmar que a dívida externa dos países do terceiro mundo
é jurídica, económica e financeiramente inexistente e
eticamente insustentável e que a sua subsistência faz parte do
sistema mundial dominante caracterizado pela hegemonia do capital financeiro
parasitário que funciona como uma bomba aspiradora do trabalho e da
poupança dos povos de todo o mundo, sendo os mais afectados os
países pobres e dentro deles os sectores mais desfavorecidos da
população. Afirma Biggs: "O custo de manter a vigência
destas obrigações através do seu ajuste e
reprogramação constante proporciona uma espécie de renda
perpétua aos credores e, ao mesmo tempo, representa uma drenagem
permanente da economia dos países devedores" (Biggs, pg. 24).
[1] Keynes, John Maynard, Defaults by foreing governments, 1924
[2] Galbraith, John Kenneth, Voyage dans le temps économique, ed. Seuil,
cap. IV, 1995
[3] Biggs, Gonzalo, La crisis de la deuda latinoamericana frente a los
precedentes históricos. Grupo Editor Latinoamericano, Colección
Estudios Internacionales, Buenos Aires, 1987
[4] Adams, Patricia, Odious Debts, nextcity.com.jubilee2000uk.org. Africa
Relance, Naciones Unidas, Vol. 7, Nº 1, junio de 1993
[5] The Heritage Foundation. quot;Deja vu on Policy Failure: The new $ 14
billion Mexican debt bailoutquot;, Backgrounder, Nº 588, p. 11, 25 de
junio de 1987. Washington, D.C., citada por Biggs, pgs. 31 e 32
Ver também:
jubileedebt.org.uk/
Para descarregar o trabalho na íntegra clique
aqui
(PDF, 155 kB, 35p., em castelhano)
[*]
Jurista, argentino, pós-graduado em relações
económicas internacionais pelo IEDES-Université de Paris I, Juiz
do Tribunal Permanente dos Povos, autor de
Al Margen de la Ley: Sociedades Transnacionales y Derechos Humanos,
Publicaciones ILSA, Bogota, 2007. ISBN: 978-958-8341-01-09
O original encontra-se em
www.argenpress.info/2014/07/que-hacer-con-la-deuda.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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