Os dias que passei em Honduras, na fraterna companhia de Amauri Soares e
Marcelo Buzetto, serviram para consolidar as impressões que, desde o
Brasil, expusera no artigo
"Contra a manobra do pacto de elites".
Definitivamente, o golpe não só contou como ainda conta com o
apoio material e político do imperialismo estadunidense, que foi
obrigado a dissimular sua participação em razão dos erros
cometidos na execução do golpe, sobretudo o fato de o mundo ter
sido surpreendido com a prisão e a retirada à força de
Manuel Zelaya do país, sem uma satanização prévia.
O golpe em Honduras é parte do plano imperialista para tentar travar a
ALBA e os processos de mudanças sociais na América Latina.
Honduras fica entre a Nicarágua e El Salvador, vizinhos hoje governados
por antigos movimentos guerrilheiros de libertação nacional,
agora em versão moderada, que se desmilitarizaram nos anos 90: a Frente
Sandinista e a Frente Farabundo Marti.
Além disso, o país possui grandes reservas não exploradas
de petróleo, minério abundante e outros recursos naturais,
além da base de Soto Cano, a mais importante e estratégica para
os ianques na América Central. Zelaya é o detalhe do golpe, que
é muito mais contra a ALBA, contra Cuba, Venezuela, Equador,
Bolívia e os dois vizinhos limítrofes.
Ao que tudo indica, está a ponto de se consumar o plano B que o
império adotou a partir da repulsa mundial no início do golpe: a
sua legitimação e, em seguida, legalização.
A cada dia que passa fica mais difícil a volta de Zelaya ao governo,
ainda que apenas para presidir as eleições gerais de novembro com
as mãos atadas, sem ALBA, sem Constituinte, nem mesmo o direito de se
candidatar ao mais simples cargo eletivo.
Um dos mais importantes lances deste plano B se deu no dia 12 de agosto, quando
os membros da Corte Suprema e do Tribunal Superior Eleitoral anunciaram
oficialmente a manutenção das eleições gerais para
o dia 29 de novembro próximo. Logo em seguida, simulando surpresa, o
presidente golpista reconhece a decisão do judiciário, como se
estivesse submetendo-se a um poder autônomo, ao "império da
lei e da justiça, ao estado democrático de direito".
Tudo isso em cadeia nacional de televisão. No horário nobre, como
convém a uma boa novela. Em seguida, ainda ao vivo, Honduras ganha de
quatro a zero da rival Costa Rica, pelas eliminatórias da Copa do Mundo.
A sinalização é óbvia: até a posse do novo
Presidente, em janeiro, Micheletti preside o país, o TSE realiza as
eleições, a Corte Suprema as preside, as Forças Armadas as
garantem e observadores internacionais escolhidos a dedo as legitimam. Tudo
para passar um ar de legalidade. Se assim for, Zelaya não volta nem para
passar a faixa ao futuro Presidente.
No mesmo dia, em entrevista coletiva após uma cúpula do Nafta,
entre sorridentes presidentes do Canadá e do México, Obama fez
uma jogada de mestre, abandonando Zelaya à própria sorte.
Aproveitando-se das ilusões alimentadas por este, de voltar ao poder por
iniciativa dos EUA, Obama lavou as mãos, apontando a incoerência
das pressões para que intervenha em Honduras por parte dos que pedem o
fim da intervenção dos EUA nos países da América
Latina.
No mesmo evento trilateral, Felipe Calderón eleito presidente
numa monumental fraude contra López Obrador anuncia o
reconhecimento do México ao governo Micheletti, seguindo o exemplo
pioneiro do Canadá, cujas mineradoras transnacionais com sede no
país ocupam quase um terço do território hondurenho. Para
os que ainda não se deram conta de que o capitalismo brasileiro é
parte do sistema imperialista, a mais poderosa dessas mineradoras tidas como
canadenses (a INCO) foi recentemente comprada pela "nossa" Vale do
Rio Doce.
Tudo indica que o núcleo duro da oligarquia e da cúpula militar
que assumiu o governo em Honduras há mais de cinqüenta dias
agora falando grosso pelo decurso de prazo no poder está com
força para impor seu próprio projeto de pacto de elites para
superar a crise e legitimar o golpe. Não só rechaçou as
propostas conciliadoras feitas pelo Presidente da Costa Rica, como, em 10 de
agosto, não recebeu uma delegação de chanceleres
latino-americanos que, em nome da OEA, iriam a Tegucigalpa tentar mediar a
crise. E olha que eram representantes apenas de governos moderados ou
pró-imperialistas: Argentina, Canadá, Costa Rica, Jamaica,
México e República Dominicana. Os golpistas só admitiram
receber a Comissão da OEA no próximo 24 de agosto, ganhando mais
duas semanas sem "mediações".
Os golpistas conseguiram unificar todas as instituições e
personalidades das classes dominantes: as cúpulas das Forças
Armadas, da Igreja Católica, das entidades empresariais, do
Judiciário, a grande maioria do Congresso Nacional, incluindo
parlamentares do próprio partido de Zelaya, aliás o mesmo de
Micheletti, o centenário Partido Liberal, uma espécie de PMDB
hondurenho.
Esta unificação se expressa na mídia. Estão com o
golpe todos os quatro jornais diários e, com a intervenção
militar no canal 36 e a repressão a jornalistas independentes, todas as
emissoras de televisão. Apenas uma estação de rádio
ainda resistia, mas quando escrevo, deve estar fora do ar.
Creio que presenciamos em Honduras os momentos cruciais para o desfecho desta
batalha, um capítulo da luta de classes que se expressa no país.
Nos dias 11 e 12 de agosto, não por coincidência, chegaram ao auge
a mobilização popular e a repressão. Sinto expressar a
impressão de que os golpistas saíram mais fortalecidos dessas
dramáticas 48 horas.
No dia 11, os protestos em Tegucigalpa, São Pedro de Sula e outras
localidades envolveram quase cem mil manifestantes. Na capital, a marcha tentou
ir até a Casa Presidencial, sede do governo federal, que fica num bairro
de elite afastado do centro, sendo reprimida por um aparato de milhares de
soldados da Polícia Nacional e do Exército. Na dispersão,
como expressão da revolta popular, as pedras das mal calçadas
ruas de Tegucigalpa se transformaram em armas contra símbolos do
capital: as vidraças de bancos e redes multinacionais de comida
rápida.
Na noite do dia 11, o governo retoma o toque de recolher. Na madrugada,
veículos sem placa percorrem a capital com atiradores em trajes civis
metralhando os dois principais locais de reunião da
direção da Frente Nacional Contra o Golpe de Estado: as sedes do
Sindicato dos Trabalhadores de Bebidas e da Via Campesina.
Na manhã do dia 12, quando nova manifestação
pacífica se dirigia ao centro da cidade, para um protesto diante do
Congresso Nacional, a repressão já havia montado um aparato
impressionante, destinado a evacuar todo o centro da cidade com violência
contra quem estivesse nas ruas, fossem ou não manifestantes.
Sou testemunha ocular de que o pretexto para justificar a violenta
repressão foi montado por agentes provocadores que, numa
ação combinada, simularam uma agressão e logo em seguida a
proteção do Vice-Presidente do Congresso Nacional, um dos
principais articuladores do golpe. Exatamente na hora em que passavam os
manifestantes, ele saíra sozinho à porta do Parlamento em plena
sessão legislativa. Estas cenas, algumas horas depois, foram exibidas
à exaustão em todas as emissoras de televisão hondurenhas
e possivelmente no mundo todo.
Na dispersão desordenada, grande parte dos manifestantes se dirigiu ao
quartel general da resistência desde o início das
mobilizações, o até então inviolável campus
da Universidade Pedagógica, onde se realizam as Assembléias da
resistência e se alojavam os militantes que moram fora da capital. Mas o
campus já estava tomado pelas tropas, que sequer permitiram aos alojados
retirarem seus pertences pessoais, cuja apreensão ainda serviu para
manipular a "descoberta" de coquetéis molotov.
É impressionante a combatividade, a coragem e a
determinação do povo hondurenho. É digna de registro a
unidade das forças que impulsionam até aqui a resistência,
organizadas na Frente Nacional Contra o Golpe de Estado, apesar das debilidades
políticas, materiais e organizativas dos movimentos sociais e grupos de
esquerda. Não fossem estas debilidades, a história poderia ser
outra. Nos momentos seguintes ao golpe havia um conjunto de fatores que
poderiam configurar uma situação pré-revolucionária.
Os sindicatos ainda não têm a força desejável,
sobretudo na iniciativa privada, onde a greve geral não vicejou. Os
agrupamentos revolucionários só agora estão se
reorganizando, recuperando-se da desarticulação das
décadas de 80 e 90, em função da derrota da luta armada,
da repressão e da crise na construção do socialismo. Para
se ter uma idéia, dois partidos que se reivindicavam comunistas se
dissolveram naquele período e só agora alguns comunistas
estão refundando o Partido.
Mas as classes dominantes, para além do Estado, possuem uma arma
decisiva numa batalha como esta: a mídia, sobretudo a televisão.
É por este meio que os golpistas conseguiram calar, enquadrar e cooptar
a grande maioria da pequena burguesia, restringindo a resistência aos
setores proletários e parte minoritária das camadas médias.
Com muita competência, diuturnamente, todos os canais de televisão
legitimam o golpe e satanizam a resistência. Jogam com o medo, mostrando
cenas de violência nas ruas, em que as tropas só atacam para se
defender dos "violentos" manifestantes, chamados de bárbaros e
terroristas. Jogam com o risco de se perderem empregos e negócios, por
conta da paralisação de parte importante da economia do
país. Jogam com o sentimento de autodeterminação, acusando
a resistência de ser dirigida e financiada pela Venezuela e pela
Nicarágua.
Todos os meios de comunicação se utilizam do mesmo padrão
de manipulação. Os manifestantes são "vândalos,
terroristas"; o golpe é uma "sucessão
constitucional". Não há qualquer debate na mídia
eletrônica, em que haja espaço para o contraditório. Como
aqui no Brasil, todos os "especialistas" chamados a comentar os fatos
têm a mesma visão de mundo. A manipulação
midiática não é apenas o que noticiam, mas também o
que não noticiam. A solidariedade internacional não é
conhecida pelo povo hondurenho. Zelaya tem sido satanizado como um meliante
político, que queria rasgar a Constituição, a
serviço de Hugo Chávez. Nesta fase de legitimação
do golpe, o noticiário sobre Honduras vai sumindo na mídia
mundial.
Confesso que foi impossível resistir à atração de
vivenciar pessoalmente os confrontos do centro da cidade, ao lado dos
manifestantes e do povo, para ajudar no que fosse possível. Confesso que
foi difícil reprimir o impulso que as mãos suplicavam, quando as
pedras me olhavam do chão.
A ofensiva da direita pode levar a um natural refluxo do movimento de massas,
sobretudo face ao cansaço, à falta de resultados, ao isolamento
social e, de uns tempos para cá, a uma certa desconfiança sobre a
determinação de Zelaya. Ainda por cima, a mídia legitimou
a repressão, o que dá ao governo golpista mãos livres para
radicalizar mais nas próximas escaramuças.
Há muitos indícios de que o imperialismo já selou o
destino de Zelaya: a possibilidade de uma volta ao país,
"anistiado", após a posse do novo Presidente. Não
há qualquer sinal da saída de Micheletti antes disso, nem com a
assunção de um
tertius
para disfarçar o golpe. Se um fato novo não ocorrer, Micheletti
passa a faixa para o novo Presidente, em janeiro, certamente um cidadão
"ilibado, acima das classes, de união nacional", ou seja, da
absoluta confiança do imperialismo e das classes dominantes locais.
Sinceramente, gostaria de trazer de Honduras avaliações
diferentes.
Um exemplo deste plano é que, em 13 de agosto, partiu de Honduras para
os EUA uma comissão de "notáveis" indicados pelo
governo golpista, para explicar as razões do golpe ao Departamento de
Estado, a convite deste. Lembram-se do compromisso de Obama de não
receber delegações do governo golpista?
Os golpistas estão trocando os representantes diplomáticos
hondurenhos no mundo todo, como a Cônsul Gioconda Perla, do Rio de
Janeiro, que ficou fiel a Zelaya. Salvo os que aderiram ao golpe. Preencheram
todos os cargos federais. O governo funciona a pleno vapor. As estradas
estão sendo desobstruídas, para escoar a circulação
de bens e a exportação, reativando a economia. Os defensores de
Zelaya na elite política se calaram, com raras exceções. O
caso mais emblemático do oportunismo político é do
Embaixador hondurenho no Brasil, que havia sido nomeado por Zelaya. Como
já sentiu para onde os ventos sopram, simulou uma
internação por problema cardíaco no dia da chegada de
Zelaya em Brasília, quando este foi recebido pelo Presidente Lula.
Como se vê, vai de vento em popa a tática da
legitimação do golpe, ajudada pelo quase fim do mandato de Zelaya
e, agora, por uma agenda eleitoral que dominará a cena política
hondurenha daqui a poucos dias. Para se ter idéia do processo eleitoral,
haverá mais de 20.000 candidatos a cerca de 2.850 cargos (Presidente,
Deputados, Prefeitos, Vereadores), inclusive do único Partido
considerado de esquerda entre os cinco registrados, o social democrata UD
(Unificación Democrática), que tem seis Deputados - nem todos
participando publicamente da resistência - numa Câmara de pouco
mais de cem.
A partir deste 31 de agosto, os partidos e os candidatos registrados já
poderão divulgar suas campanhas em matérias pagas, inclusive na
televisão. Isto mudará a pauta nacional.
Aliás, a participação ou não no processo eleitoral
pode ser um fator de divisão da Frente contra o golpe, que reúne
a Unificación Democrática e o Bloque Popular, em que se encontram
as organizações sociais e políticas mais à
esquerda. A UD já lançou publicamente um candidato a Presidente,
enquanto o Bloque Popular defende a não participação nas
eleições, com o argumento de não legitimar o golpe.
Enquanto isso, Zelaya, num comportamento pendular, abandonou seu posto em
território nicaragüense, em Ocotal, na fronteira com seu
país, de onde anunciara que iria comandar pessoalmente a
resistência popular, exatamente nos dias 11 e 12 de agosto, para os quais
estava convocada a jornada de luta. Nesses dias, Zelaya optou por um giro pela
América do Sul, visitando o Brasil e o Chile, para sinalizar uma
inflexão do eixo Chávez/Ortega para Lula/Bachelet.
Mas já ontem o presidente deposto havia voltado ao seu posto na
fronteira, de onde divulgou ao povo hondurenho um comunicado conclamando
à manutenção da luta de resistência contra o golpe e
ao não reconhecimento do processo eleitoral convocado, nem dos seus
resultados. E as manifestações continuam, ainda que com
participação menor. Neste domingo, haverá um grande
concerto musical contra o golpe.
Em verdade, mesmo assim, parece chegar ao fim um dos últimos
capítulos da ilusão da revolução
nacional-libertadora, que já há algumas décadas passou do
prazo de validade.
Zelaya, eleito por um partido da ordem, representava o que ainda resta de
setores da burguesia hondurenha, pequenos e médios empresários,
que têm algum nível de contradição com o
imperialismo. Sua aproximação com a ALBA e a Petrocaribe
não tinha um sentido de transição ao socialismo, ainda que
o difuso "socialismo do século XXI". Tratava-se do interesse
desses setores não monopolistas da burguesia hondurenha de fazer crescer
o mercado interno e ter acesso ao mercado dos países da ALBA. Para isso,
precisavam nacionalizar algumas riquezas nacionais, participar de uma
integração não imperialista para importar petróleo
e outros insumos mais baratos e mitigar as injustiças para aumentar o
poder de consumo popular, através de políticas
compensatórias e aumento do salário mínimo.
A realidade está mostrando que estes setores residuais da burguesia
não têm a mínima condição de disputar com os
setores monopolistas. Na fase imperialista do capitalismo, ainda mais em meio
à sua crise, a hegemonia no Estado burguês pertence aos segmentos
associados aos grandes monopólios. Quem manda em Honduras são os
bancos, o agronegócio, os exportadores de matéria prima, e as
indústrias maquiadoras voltadas, como no caso da Nike, para o mercado
externo.
Mas em Honduras, nada será como antes, principalmente a esquerda e sua
vanguarda. Amadurecem e formam-se nesta legendária luta milhares de
militantes e quadros. O comando da Frente, em especial do Bloque Popular,
já ajustou corretamente a linha política e a
organização popular às necessidades desta nova fase da
luta. A bandeira da convocação da Constituinte, livre e soberana,
com ou sem Zelaya, é um dos eixos políticos principais. Em
Assembléia neste domingo, a resistência resolveu priorizar a
organização popular, a partir das bases.
A grande lição que os militantes hondurenhos aprenderam é
que os proletários só podem contar com eles próprios. Para
grande parte desta heróica vanguarda, acabaram-se as ilusões em
alianças com a burguesia, nas possibilidades de
humanização do capitalismo e de transição ao
socialismo nos marcos da institucionalidade burguesa.
E a certeza de que não bastam as pedras de Tegucigalpa.
19/Agosto/2009/Rio de Janeiro
[*]
Secretário Geral do PCB.
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