Honduras e as classes sociais
De Caracas, Lima, Tegucigalpa criticam-me dizendo que falar de classes sociais
para analisar o golpe em Honduras é um cliché fora de moda.
Sim, é um cliché fora de morda. E uma realidade actual,
também. A pós-modernidade empreendeu uma longa campanha cultural
e ideológica no último terço do século XX para
revogar conceitos binários e dicotómicos como opressor/oprimido,
rico/pobre, branco/negro, homem/mulher, etc. Ao eliminar o primeiro par
desaparecia de forma automática qualquer ideia de imperialismo, de
colonialismo e de machismo. Assim, toda realidade era uma ilha que pouco tinha
a ver com o resto, diferente do que afirmavam os antiquados estruturalistas. O
pobre não tinha nada a ver nem a reclamar do rico nem vice-versa; uma
colónia não era o resultado da existência do colonizador
nem a "mulher feminina" era o resultado do homem masculino. O mesmo
quanto aos países, as culturas, as histórias. Ilhas,
átomos, universos independentes, sociedades autistas. Livres como um
pássaro (que está condenado a voar e a emigrar). Também
neste sentido, o pós-modernismo foi anti-humanista.
Mas as classes sociais ainda existem. Existiram desde há alguns
milénios e a sua lógica funcionou com muita clareza até
nas sociedades de gorilas e chimpanzés. Para os conservadores, esta
observação seria um argumento a favor das classes sociais.
"Assim é desde que o mundo é mundo", é o lema
reaccionário. Para os humanistas progressistas é um argumento
contra, já que muito de nós defendem a teoria da
Evolução. Como problematizámos em muitos outros ensaios, o
progressivo incremento das liberdades individuais desde o fim da Idade
Média não foi em detrimento da igualdade e sim a seu favor. E
vice-versa.
Na América Latina a classe dominante costumava ser um pequeno grupo de
brancos, educados, actores principais na política, no governo e nos
negócios. A maioria da população estava resignada a seguir
os passos da sua classe social. Se algum mudava de classe, esta
excepção era publicitada mas abolia a regra.
Com sorte, o sistema de classes sociais é muito menos rígido que
o de castas na Índia. Hoje em dia é menos forte e nisso consiste
o desenvolvimento. Mas existe, sobretudo em países como Honduras onde
quase todos os meios importantes de informação e de
formação de opinião pertencem a umas poucas
famílias, a reduzidos e quase impenetráveis círculos de
influência. E esses meios praticaram desde sempre uma campanha a favor de
um anacrónico sistema de classes sociais. Seu mais recente papel foi no
golpe de Estado. Não porque Zelaya fosse um exemplo de político
democrático e sim porque pôs em risco o controle político
da sua própria classe. A esse monopólio chamaram,
estrategicamente, liberdade de imprensa, liberdade de expressão. Com
sorte, um camponês hondurenho é livre para gritar na praça
da aldeia para ser ouvido por cem pessoas. Não é suficiente?
Então, segundo esta ideologia hegemónica, o inculto é um
maldito revoltoso que quer eliminar a liberdade de expressão, romper a
ordem democrática e sequestrar as crianças para
doutriná-las.
Até bem dentro do século XX os índios na América
Latina recebiam terríveis sovas por desobedecerem aos seus
patrões. Mas agradeciam. O sistema de "índios pongo"
obrigava-os moralmente a trabalhar gratuitamente. Os índios levavam os
rebanhos de uma estância à outra sem a tentação de
roubar de vez em quando uma ovelha. Razão pela qual em países
como a Bolívia e o Peru o desenvolvimento ferroviário foi
raquítico, em comparação com outros países da
região. Como prémio, o discurso dominante descrevia-os como
corruptos, atrasados e imorais. Porque eram pobres e seus prazeres eram
tão baratos quanto a aguardente. Quando um exército
patriótico e faminto passava pela sua miserável choça,
violava impunemente a sua mulher e roubava as suas poucas ovelhas. Quanto menos
auto-estima, melhor. Também os escravos africanos açoitavam
outros escravos de escala inferior para sustentar o sistema de
privilégios. Os açoitados agradeciam porque as sovas, como
exorcismo moral, ajudavam-nos a não ser "maus negros" que
esqueciam a sua condição natural de animais inferiores.
Quer dizer que a opressão de um grupo por outro (uma classe sobre outra,
uma raça sobre outra, um género, um sexo sobre outro, um grupo
financeiro sobre outro, etc) só é possível por essa
colonização moral, por essa moral do oprimido. E para isso havia
que possuir a maioria dos meios de imprensa "mais prestigiosos e
influentes".
A estrutura social de Honduras hoje é quase a mesma de há
décadas.
Não é difícil identificar a sua classe dominante, com
certa educação, a mínima necessária para ser a dos
senhores neo-feudais da "república". São reconhecidos
pelos seus nomes, pelos seus métodos, por sua propriedades ostentosas,
por seus velhos e conhecidos discursos que como na época de
Franco na Espanha, de Pinochet no Chile, de Bush e tantos outros nos Estados
Unidos apelam ao patriotismo, à tradição, à
religião e à liberdade para justificar o seu poder
político, ideológico e financeiro.
Por outro lado, Honduras, um dos países mais pobres do continente,
é composto por uma vasta e maioritária classe de camponeses,
operários e pequenos comerciantes que nunca acedeu a uma
educação secundária e menos ainda a uma universidade.
Não para que sejamos todos doutores e sim para que qualquer
operário seja um produtor capacitado, intelectualmente criativo e com
gozo de tempo livre para construir-se como ser humano.
Se tudo isto não é opressão de classe, chame-se como se
quiser. Mas esta realidade continuará a estar aí ainda que seja
maquilhada e seja travestida.
Claro, todos devemos tornar-nos responsáveis pelo nosso destino. Em
grande medida somo. Não merece o mesmo alguém que se senta
à espera de que caia um fruto sobre a sua boca e aquele outro que
trabalha todo o dia para que o milagre se produza. Mas ninguém tem uma
liberdade absoluta e uns são mais livres (socialmente) que outros.
Olhemos em nosso redor e perguntemo-nos se todos somos igualmente livres.
O poder existe. Existe o poder muscular, o poder económico, o poder
político, etc. Quando um grupo qualquer impõe seus interesses
sobre outros quando pode obter mais benefícios imediatos do que
recorrendo à colaboração, a isso chamo ter o poder. Esse
poder possui, além de força muscular, uma voz sedutora, quando
não intimidatória, fácil de produzir ecos em todos os
rincões. As mentiras do poder não são eternas, mas podem
sobreviver gerações ou o necessário para confirmar que a
justiça que tarda não chega.
Nossa visão humanista entende que a longo prazo a
colaboração é mais benéfica para o desenvolvimento
e o progresso (perdão pela má palavra) de todos. Mas os
conservadores não estão interessados em esperar tanto. Eles
vêem tudo como um arquipélago de ilhas rodeadas de muralhas, uma
das quais é a eleita de Deus, sob a pax romana, a paz dos
cemitérios ou combatendo-se umas às outras ao mesmo tempo que
acusam os progressistas de alimentar o ódio de classes. Se não se
falar disso, isso não existe.
É o antigo recurso de arrancar os olhos a um pássaro enjaulado
para que cante mais e melhor.
Julho/2009
[*]
Ensaista, uruguaio, professor da Lincoln University.
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info/
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