Fora com todas as tropas estrangeiras do Haiti
por Renato Nucci Junior
[*]
A devastação causada pelo terremoto no Haiti agravou a
ocupação militar de seu território por tropas
estrangeiras. Às tropas da Minustah, calculadas em 8 mil militares e sob
comando brasileiro, se juntam agora cerca de 10 mil soldados norte-americanos,
incluindo 2 mil marines. A desculpa dessa grande presença militar
é a de ajudar os sobreviventes do terremoto e auxiliar no esforço
de reconstrução do país. Em verdade, mais uma vez o
sofrimento do povo haitiano é usado para justificar uma nova
intervenção estrangeira.
Em uma situação de tanta dor e sofrimento, onde um povo
miserável é vítima de uma catástrofe de
proporções gigantescas; onde as imagens difundidas pelos grandes
meios de comunicação é a de um país acéfalo
no qual parece inexistir o aparelho de Estado, o envio de tropas se
justificaria plenamente. O aparente caos natural do Haiti só poderia ser
contornado pelo uso constante de uma força militar externa capaz de
garantir a segurança e a estabilidade política, fatores
imprescindíveis para a reconstrução econômica e
social do país.
Ao contrário dessa "verdade" martelada diariamente em nossas
cabeças, o fato é que a atual situação do Haiti em
grande parte se deve às constantes interferências e
intromissões de nações poderosas em seus assuntos
domésticos. Os Estados Unidos, com os seus marines à frente,
ocuparam e governaram o país de 1915 a 1934. De lá saíram
quando o controle da alfândega do país permitiu o pagamento das
dívidas que este possuía com o City Bank e, de quebra,
conseguiram uma mudança constitucional que passou a permitir a venda de
terras e plantações a estrangeiros.
A partir da década de 1990, após a derrubada da ditadura
sanguinária de Jean Claude Duvalier, o Baby Doc, que recebeu o apoio dos
Estados Unidos, o país se transformou em laboratório para
intervenções estrangeiras, principalmente as norte-americanas. O
objetivo de todas elas é um só: destruir qualquer capacidade dos
haitianos em se auto-governarem. Isso significou executar uma clássica
intervenção em seus assuntos internos, como foi o caso da
destituição do então presidente Jean Bertrand Aristide, em
2004, o que resultou no envio de uma missão de paz da ONU, a Minustah,
em nome da estabilização e segurança do país. Do
mesmo modo, tratou-se de impedir que o Estado haitiano possa fazer o que todo
Estado faz, executando políticas públicas com os fundos
disponíveis, sejam eles internos obtidos com o recolhimento de impostos,
sejam de doações ou empréstimos internacionais. Desde
2001, por pressão dos Estados Unidos, os fundos de ajuda internacionais
são direcionados prioritariamente para as ações de ONGs
que passaram a substituir as obrigações do Estado haitiano. O
país não conta com forças armadas e as
funções policiais são raquíticas.
Aproveitando-se da acefalia política para a qual contribuíram
conscientemente, os Estados Unidos despejaram no Haiti o seu arroz, objeto de
fartos subsídios, levando a ruína os pequenos agricultores do
país. Em 1982, o governo dos Estados Unidos obrigou o Estado haitiano,
sob a ditadura de Baby Doc, a eliminar todos os porcos do país,
acusando-os de estarem infectados pela febre africana. Toda essa
situação tornou a vida no campo insuportável, levando a um
grande êxodo rural cujas conseqüências estão no aumento
das favelas e da miséria do país observada na década de
1980, principal razão para a rebelião popular que pôs fim,
em 1986, ao regime de terror de Baby Doc. Outra situação da qual
tiraram proveito, a partir do êxodo rural, foi a
implantação ainda nessa década das maquiladoras,
principalmente de roupas esportivas (Nike, Adidas, Reebok), que se aproveitam
de uma força de trabalho baratíssima e sem direito a
organização sindical.
A presença da Minustah, a partir de 2004, acentuou no Haiti a
condição de nação sob permanente estado de
intervenção externa. Sob comando operacional dos militares
brasileiros, a justificativa para uma nova intervenção
estrangeira era a de restabelecer a ordem e reconstruir a infra-estrutura do
país. Porém, em quase seis anos de ocupação, os
níveis de miséria e pobreza não foram revertidos. Nenhuma
escola ou hospital foi construído. Os termos da missão de paz da
ONU definem que o orçamento da Minustah só pode ser gasto nas
operações destinadas a manter a ordem pública e a
segurança interna. Em junho de 2009, as mobilizações
populares em apoio a um projeto aprovado na Câmara dos Deputados e no
Senado que reajustava o salário mínimo de 70 para 200 gourdas (1
dólar equivale a 42 gourdas), foram duramente reprimidas pelas tropas da
Minustah.
O PAPEL VERGONHOSO DO BRASIL
Com papel tão limitado, o governo e as tropas brasileiras, além
de usarem a missão no Haiti para assegurar uma cadeira permanente no
Conselho de Segurança da ONU, também fazem do país, nas
palavras de um coronel da Brabatt (Batalhão Brasileiro da Minustah), um
laboratório para os militares brasileiros aprenderem a como conter uma
possível rebelião nas favelas cariocas. Mas o papel vergonhoso do
Brasil não se resume em transformar o Haiti e seu povo em um grande
campo de treinamento para oprimir o próprio povo brasileiro. Interesses
econômicos de capitalistas tupiniquins estão por trás da
presença do Brasil na "missão de paz" da ONU no Haiti.
Além da OAS, que ganhou uma licitação de US$ 145
milhões para construir uma rodovia, a Coteminas, maior empresa de cama,
mesa e banho do mundo e cujo proprietário é o vice presidente
José Alencar, negocia com as autoridades da Minustah a
instalação de uma planta no país. Sua
produção seria exportada para os Estados Unidos, com quem o Haiti
tem um acordo de livre comércio. Uma das vantagens oferecidas pelo Haiti
seria o salário dos trabalhadores, pois uma costureira em Porto
Príncipe recebe US$ 0,50 por hora, muito abaixo dos US$ 3,27 pagos para
a mesma profissional no Brasil. É o melhor dos mundos para qualquer
capitalista: a exploração mais desbragada é garantida pela
força das armas, tudo em nome da reconstrução do
país.
A devastação causada pelo terremoto, ao prostrar ainda mais o
povo haitiano, foi a senha para governos imperialistas ampliarem sua
presença militar. Os Estados Unidos, além do envio de tropas,
militarizaram a costa haitiana, enviando modernos navios de guerra e ocuparam o
aeroporto de Porto Príncipe, causando dificuldades para o pouso de
aviões com ajuda humanitária. Brasil, França e Estados
Unidos, ao invés de matarem a fome dos haitianos e socorrerem os
feridos, brigam entre si sobre quem continuará garantindo a ordem
pública e a vigilância policial no país. Mas essa
presença súbita de tropas norte-americana no Haiti, tendo como
justificativa ajudar no esforço de assistência às
vítimas do terremoto, também deve ser vista como parte da
estratégia dos ianques em ampliar o cerco militar a Cuba e Venezuela.
Afinal, o Haiti está no meio do caminho entre dois países que
representam um desafio à prepotência e arrogância do
imperialismo.
Enquanto isso, o povo haitiano padece nas ruas de Porto Príncipe de
fome, de sede e da falta de atendimento médico. Se eles reclamam por
não lhes chegar comida, água e remédios, esperando por uma
ação decisiva da ONU e das tropas da Minustah, isso se deve
à completa desestruturação do Estado haitiano, levada a
cabo conscientemente por potências estrangeiras que sempre viram no
país um mero joguete dos seus interesses.
Para muitos parecerá um absurdo, mas a solução dos
problemas haitianos, mesmo os causados pelo terremoto, só
começarão a se resolver quando toda e qualquer tropa estrangeira
deixar o país. A solução para os terríveis
problemas enfrentados pelo Haiti começa, sim, pelo respeito à sua
soberania, o que implica a retirada de toda e qualquer tropa estrangeira
presente no país. Óbvio que nesse momento o Haiti necessita de
ajuda. Mas esta deve ser na forma de comida, remédio, roupa,
assistência médica, cancelamento unilateral de sua dívida
externa, assistência técnica para retomar a produção
industrial e agrícola, tudo sem qualquer tipo de contrapartida. Mas
jamais com o envio de tropas, cujo pretexto em prestar ajuda
humanitária, serve para aprofundar a submissão do país.
janeiro/2010/Campinas
[*]
Membro do Comitê Central do PCB.
Este artigo encontra-se em
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