"O Haiti é um laboratório para os militares brasileiros"
por Otávio Calegari Jorge
[*]
A noite de ontem foi a coisa mais extraordinária de minha vida. Deitado
do lado de fora da casa onde estamos hospedados, ao som das cantorias
religiosas que tomaram lugar nas ruas ao redor e banhado por um estrelado e
maravilhoso céu caribenho, imagens iam e vinham. No entanto, não
escrevo este pequeno texto para alimentar a avidez sádica de um mundo
já farto de imagens de sofrimento.
O que presenciamos ontem no Haiti foi muito mais do que um forte terremoto. Foi
a destruição do centro de um país sempre renegado pelo
mundo. Foi o resultado de intervenções, massacres e
ocupações que sempre tentaram calar a primeira república
negra do mundo. Os haitianos pagam diariamente por esta ousadia.
O que o Brasil e a ONU fizeram em seis anos de ocupação no Haiti?
As casas feitas de areia, a falta de hospitais, a falta de escolas, o lixo.
Alguns desses problemas foram resolvidos com a presença de milhares de
militares de todo mundo?
LABORATÓRIO CONTRA REBELIÕES NAS FAVELAS
A ONU gasta 500 milhões de dólares por ano para fazer do Haiti um
teste de guerra. Ontem pela manhã estivemos no BRABATT, o principal
Batalhão Brasileiro da Minustah (United Nations Stabilization Mission in
Haiti).
Quando questionado sobre o interesse militar brasileiro na
ocupação haitiana, o coronel Bernardes não titubeou: o
Haiti, sem dúvida, serve de laboratório (exatamente,
laboratório) para os militares brasileiros conterem as rebeliões
nas favelas cariocas. Infelizmente isto é o melhor que podemos fazer a
este país.
Hoje, dia 13 de janeiro, o povo haitiano está se perguntando mais do que
nunca: onde está a Minustah quando precisamos dela?
Posso responder a esta pergunta: a Minustah está removendo os escombros
dos hotéis de luxo onde se hospedavam ricos hóspedes estrangeiros.
Longe de mim ser contra qualquer medida nesse sentido, mesmo porque, por sermos
estrangeiros e brancos, também poderíamos necessitar de qualquer
apoio que pudesse vir da Minustah.
A realidade, no entanto, já nos mostra o desfecho dessa tragédia
o povo haitiano será o último a ser atendido, e se
possível. O que vimos pela cidade hoje e o que ouvimos dos haitianos
é: estamos abandonados.
A polícia haitiana, frágil e pequena, já está
cumprindo muito bem seu papel resguardar supermercados destruídos
de uma população pobre e faminta. Como de praxe, colocando a
propriedade na frente da humanidade.
Me incomoda a ânsia por tragédias da mídia brasileira e
internacional. Acho louvável a postura de nossa fotógrafa de
não sair às ruas de Porto Príncipe para fotografar coisas
destruídas e pessoas mortas. Acredito que nenhum de nós gostaria
de compartilhar, um pouco que seja, o que passamos ontem.
Infelizmente precisamos de mais uma calamidade para notarmos a existência
do Haiti. Para nós, que estamos aqui, a ligação com esse
povo e esse país será agora ainda mais difícil de ser
quebrada.
Espero que todos os que estão acompanhando o desenrolar desta
tragédia também se atentem, antes tarde do que nunca, para este
pequeno povo nesta pequena metade de ilha que deu a luz a uma criatividade, uma
vontade de viver e uma luta tão invejáveis.
13/Janeiro/2010
[*]
Investigador da Universidade de Campinas em missão no Haiti.
O original encontra-se em
http://lacitadelle.wordpress.com/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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