Acerca do sub-imperialismo brasileiro
Haiti: o que é imperialismo e o que é sub-imperialismo
Está-se consumando a crônica anunciada e previsível da nova
ocupação do Haiti pelos Estados Unidos, desta vez aproveitando o
terremoto que devastou o país e sua capital. Os Estados Unidos já
desembarcaram 11 mil militares no país. Ontem, com tropas armadas e
uniformizadas para combate, transportadas em helicópteros de guerra,
ocuparam o palácio presidencial em Porto Príncipe. O aeroporto,
não esqueçamos, continua sendo controlado e operado pelos Estados
Unidos, que hastearam sua bandeira no local e decidem que aviões podem
pousar. Nos últimos dias, deram prioridade a suas aeronaves,
principalmente militares, prejudicando o desembarque da ajuda enviada por
outros países e por organizações
não-governamentais. A prioridade foi a segurança, não a
vida da população haitiana, principalmente pobre. O ministro
francês da Cooperação, Alain Joyandet, chegou a protestar:
"Precisamos ajudar o Haiti, não ocupá-lo." É
verdade que, tendo cumprido o cronograma inicial de desembarque de suas tropas,
os Estados Unidos poderão autorizar, nos próximos dias, o pouso
de um número maior de aviões de outros países, com
técnicos e equipamentos para remoção de destroços,
médicos e remédios para atendimento dos feridos, água e
alimentos para a população desabrigada e desempregada. A essa
altura, porém, a possibilidade de encontrar pessoas soterradas com vida
será mínima e excepcional.
Sem que a mídia dê atenção a este aspecto, os
Estados Unidos estão aumentando também o controle do porto que
dá acesso à capital e de toda a área litorânea do
Haiti, com um porta-aviões, um navio equipado com um hospital de
campanha e vários navios da Guarda Costeira, visando a socorrer feridos,
mas também a selecionar e controlar a aproximação de
navios de ajuda de outros países, como o enviado pela Venezuela com
combustível, e a impedir a emigração desesperada de
haitianos para a costa estadunidense em pequenas embarcações..
Não podendo justificar suas ações arrogantes e unilaterais
com ordens das Nações Unidas, o governo de Washington tem
argumentado que atua a pedido do governo haitiano. Mas que soberania pode ter
um governo, como o do presidente René Préval, que não
dispõe sequer de forças policiais e de equipamentos de
comunicação e transporte para manter a ordem pública e
organizar o salvamento de seus cidadãos? É significativo
também que o plano de salvamento e reconstrução do Haiti
pelos Estados Unidos tenha sido anunciado, em conjunto, pelo presidente Barack
Obama e pelos ex-presidentes Clinton e Bush o mesmo Bush que demorou
tanto a agir quando o furacão Katrina destruiu uma grande área
dos Estados Unidos. Quando os interesses estratégicos da
superpotência estadunidense e de suas empresas transnacionais
estão em jogo, prevalece como sempre o consenso bipartidário
entre "democratas" e "republicanos" aliás,
uma confluência bipartidária semelhante se ensaia agora no Brasil
com o PSDB e o PT, apesar das acirradas disputas nas fases de
eleição.
O jornalista Roberto Godoy, especializado em assuntos militares, escreve no
Estadão
de hoje: "Os Estados Unidos estão fazendo no Haiti o que sabem
fazer melhor: ocupar, assumir, controlar. Decidida em Washington, a
operação de suporte às vítimas da
devastação, em quatro horas, tinha 2 mil militares mobilizados
e metade deles já seguia para Porto Príncipe
enquanto o resto do mundo apenas tomava conhecimento da tragédia. (...)
É a Doutrina Powell, criada no fim dos anos 80 pelo então chefe
do Estado-Maior Conjunto general Colin Powell, aplicada em tempo de paz. Ela
prevê que os Estados Unidos não devem entrar em ação
a não ser com superioridade arrasadora. (...) No sábado, oficiais
americanos [seria mais correto escrever estadunidenses, porque americanos somos
todos nós] estavam no comando do tráfego aéreo. Os
paraquedistas da 82ª Divisão e os fuzileiros navais (...)
são treinados para o combate e também para missões de
resgate. Movimentam-se em helicópteros e veículos convertidos em
ambulâncias leves. A retaguarda é poderosa. Um porta-aviões
virou central logística e um navio-hospital de mil leitos chegou no
domingo. Ontem, aviões dos Estados Unidos ocupavam 7 das 11
posições de parada remanescentes no aeroporto."
A mídia do grande capital, exagerando os saques e os conflitos, cumpriu
seu papel de preparar a opinião pública para aceitar a
operação político-militar dos Estados Unidos como
necessária e benevolente. Na realidade, os Estados Unidos têm
contribuído para acirrar os conflitos ao atrasar a ajuda
humanitária de outros países e utilizar aviões e
helicópteros para despejar suprimentos aleatoriamente sobre uma
população sedenta, faminta e desorganizada. Até mesmo o
general brasileiro Floriano Peixoto, comandante da Minustah (Missão de
Estabilização das Nações Unidas), ponderou em
videoconferência que os casos mais graves de violência não
são generalizados e disse que as ruas de Porto Príncipe
estão desobstruídas, o que facilita a ação das
forças de segurança. Na avaliação do general, a
situação se mostra menos grave do que a versão difundida
pela imprensa. Além disso, quem tem experiência política e
já participou da resistência a regimes entreguistas e
autoritários não pode deixar de receber com ceticismo a
qualificação fácil e indiferenciada, difundida pela
mídia, de que todos os presos que escaparam dos presídios
destruídos pelo terremoto são criminosos comuns e integrantes de
"gangues de bandidos". Muitos oficiais e soldados do antigo
Exército haitiano formaram milícias, que declararam seu apoio ao
último presidente livremente eleito Jean-Bertrand Aristide, depois que
ele foi deposto em 2004. Seqüestrado por tropas estadunidenses e levado
à força para a África do Sul, bem longe do Haiti, o
ex-presidente Aristide continua impedido de voltar ao país e seu partido
foi proibido de participar das últimas eleições realizadas
sob o controle da Minustah.
Com as diferenças secundárias de motivação e de
situação interna, o roteiro seguido pelos Estados Unidos no Haiti
é, portanto, essencialmente, o mesmo adotado no Iraque ou no
Afeganistão: primeiro, destroem-se os Estados nacionais que esbocem
qualquer rebeldia, instalando a devastação econômica e
social e o caos político; depois, utilizam-se essas circunstâncias
deterioradas para justificar a construção de Estados
satélites; por último, esses Estados satélites e corruptos
se revelam incapazes de garantir a paz, resgatar a dignidade nacional e
melhorar o padrão de vida da população (com as
exceções de praxe das elites colaboracionistas), justificando que
a ocupação estadunidense se prolongue indefinidamente. A crise
aprofundada pela intervenção externa cria, enquanto isso,
oportunidades de novos negócios lucrativos para os fabricantes de armas,
as empresas de segurança e as grandes construtoras dos Estados Unidos e
de seus aliados.
Para dissipar dúvidas sobre as reais intenções da
intervenção "emergencial" e
"humanitária" dos Estados Unidos no Haiti, o diplomata Greg
Adams, enviado ao país caribenho como porta-voz do Departamento de
Estado dos Estados Unidos, declarou ao
Estadão
em Porto Príncipe: "É muito cedo para estabelecer prazos
[para a retirada das tropas estadunidenses] e ficaremos aqui o tempo que for
necessário [lembremo-nos de declarações semelhantes
tornadas públicas no início da ocupação do Iraque].
Havia tropas estrangeiras no Haiti antes do terremoto [ah, é?]. Com a
tragédia, além de todos os outros problemas, não vejo uma
data-limite no futuro próximo para falarmos aos haitianos 'ok, agora
é com vocês'. Ficaremos aqui por um bom tempo e acho que o Brasil
também."
O PAPEL COADJUVANTE DO SUB-IMPERIALISMO BRASILEIRO
A referência à ação coadjuvante e subordinada do
Brasil foi bem esperta. Que autoridade moral pode ter o governo brasileiro para
protestar contra a ação estadunidense se tem participado da
intervenção política e militar nos assuntos internos do
Haiti, ainda que com a chancela formal das Nações Unidas,
chancela já utilizada ao longo da historia da entidade para encobrir
tantas outras intervenções? Participando das
operações de segurança ou seja, em bom
português, de repressão com o beneplácito e em
benefício dos Estados Unidos, o Brasil espera ganhar o prêmio de
consolação de tomar parte nos negócios de
reconstrução do país. Aliás, grandes construtoras
brasileiras, como a OAS e a Odebrecht, já enviaram equipes
técnicas e equipamentos pesados para o Haiti, posicionando-se para a
disputa que virá.
Quem afirma que não existe mais imperialismo no século XXI ou
põe em dúvida o conceito de sub-imperialismo, utilizado para
caracterizar a política externa atual do Brasil, principalmente na
América Latina e no Caribe, tem assim a oportunidade de aprender, em
cores e on line, o conteúdo concreto desses conceitos e dessas
práticas. Abrindo bem os olhos, os patriotas e democratas brasileiros
têm o dever de exigir que o Brasil renuncie ao comando militar da
Minustah, retire progressivamente suas tropas do Haiti e se limite às
ações de cunho efetivamente humanitário. O Haiti
não precisa só de ajuda, precisa de soberania. Que os Estados
Unidos realizem seu plano de intervenção e de
construção de um Estado satélite no Haiti com seus
próprios recursos humanos e materiais e sob sua exclusiva
responsabilidade. Assim, pelo menos, a situação ficará
mais clara e se tornará mais fácil mobilizar as forças
anti-imperialistas e democráticas no Haiti e nos demais países da
América Latina e do Caribe. Não percamos de vista que um
império em declínio, na desesperada tentativa de reverter o curso
histórico que o debilita, pode tornar-se mais perigoso e aventureiro do
que um império em ascensão e paciente.
Estou fechando este parêntese sobre a tragédia haitiana, porque
já está claro que não se trata apenas de uma
tragédia natural e humanitária, mas sobretudo política e
militar. Recentemente, um terremoto devastou uma grande região da China,
deixando 87 mil mortos, segundo as estimativas oficiais. Porque havia e
há na China, apesar de sua pobreza ainda grande, um Estado soberano e
ativo, foi possível lidar com as conseqüências da
tragédia sem permitir a intervenção estrangeira no comando
das operações de socorro e reconstrução ou o
desembarque de tropas de outros países. A grande tragédia do
Haiti foi a destruição progressiva de seu Estado nas
últimas décadas, com a dissolução de suas
forças armadas e policiais, a precarização de seus
serviços públicos e a desorganização e
divisão de sua população.
20/Janeiro/2010
O original encontra-se em
http://www.pcb.org.br/haiti1.htm
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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