por Miguel Urbano Rodrigues
A situação criada na Venezuela faz pensar num vulcão que
apresenta indícios de erupção e de cuja cratera podem
começar a jorrar pelas encostas massas de lava incandescente.
Mas o futuro próximo na pátria de Bolívar é ainda
incerto, como as tragédias telúricas antes de se consumarem.
A conspiração que tem por objectivo o afastamento de Chavez e a
restauração do poder oligárquico que, através de
ditaduras militares ou de governos de fachada democrática,
impôs sempre a sua vontade discricionária ao longo dos 170 anos
transcorridos desde afastamento do Libertador apresenta
características inéditas.
As forças e personalidades que a promovem, derrotadas após um
golpe fracassado, não responderam por actos, ostensivamente
criminosos, que, por um período de 48 horas, implantaram o caos e a
repressão fascista no pais, desmantelando a ordem constitucional e
jurídica. Os civis e militares golpistas continuam em liberdade. O
Supremo Tribunal de Justiça isentou-os de responsabilidades. Retomaram
as actividades conspirativas e lançam quase diariamente inflamados
apelos tendentes à deposição de Hugo Chavez .
Não há precedente na historia do Hemisfério para um
desafio impune tão longo orientado para a destruição de
instituições democráticas.
A paralisação organizada e convocada pelos conjurados com o apoio
total de um sistema mediático que exerce um controle praticamente
hegemónico sobre a televisão, os jornais e a radio, apresenta
sinais de esgotamento. Após duas semanas de um
lock-out
com figurino de greve imposto mediante pressões e ameaças, a
maioria dos estabelecimentos que haviam fechado reabriu as suas portas.
Milhares de comerciantes, incluindo muitos ligados à Fedecamaras
(motor, com a Confederação sindical amarela, da chamada
Coordenadora Democrática) estão cansados de serem instrumentos
de uma política que não responde aos seus interesses e os
opõe à esmagadora maioria da população
trabalhadora.
A grande cartada da paralisação do sector petrolífero
também falhou. Segundo o vice presidente Rangel, a manobra de
sabotagem, que contou com o apoio dos principais administradores e de muitos
quadros técnicos da Petroleos de Venezuela, não atingiu os seus
objectivos. O abastecimento de gasolina e gasóleo nas grandes cidades
está melhorando, a situação nas refinarias tende para a
normalização. A intervenção da Marinha num navio
cujo comandante se havia rebelado, obstruindo a saída do Lago de
Maracaibo, foi declarada inconstitucional por um Poder Judicial que actua como
instrumento da extrema-direita. Chavez, em gesto inédito, ignorou a
decisão do Tribunal e recorreu ao Exército para intervir nos
barcos que estão obstruindo a exportação de
petróleo.
O povo trabalhador da Venezuela tem sido o herói na
confrontação de forças sociais que se enfrentam no
contexto de uma intensa luta de classes. Sem a coragem, a tenacidade , o
espirito de luta e a consciência de classe dos milhões de
moradores dos bairros pobres de Caracas e de outras grandes cidades a
defesa da democracia venezuelana e do projecto progressista dela
inseparável não seria possível.
A cúpula golpista deixa transparecer, pela própria natureza dos
seus desafios, sintomas de nervosismo. Mas não deve subestimar-se a
extrema gravidade da situação existente.
Na aparência as Forças Armadas permanecem firmes na
sustentação da legalidade institucional. Mas o simples facto de
quase diariamente oficiais que participaram no golpe de Abril se apresentarem
uniformizados na Praça Altamira, no coração da Caracas
oligárquica e juntamente com outros (alguns no activa) lançarem
de ali apelos à rebelião militar e à
deposição do presidente sem que nada lhes aconteça
é esclarecedor da complexidade da relação de forças
existente no pais.
A decisão do comandante chefe do Exército, general Julio Garcia Montoya,
de
condenar a paralisação golpista como acto de sabotagem e de fazer
intervir a
instituição militar na defesa da legalidade constitucional,
mobilizando tropas
para o restabelecimento da normalidade no sector petrolífero e na área do
abastecimento foi, entretanto, muito importante.
O ENVOLVIMENTO DOS EUA
A cumplicidade de Washington na conspiração em marcha é
inocultável, tal como foi o seu envolvimento na preparação
do putsch da Primavera passada.
O general Colin Powell durante a sua recente visita a Bogotá manteve
reuniões secretas com os generais fascistas colombianos Enrique Medina,
um homem dos paramilitares, e Mora Rangel, ex-comandante do Exercito, ambos
seus antigos colegas na famosa Escola das Américas. Pedro Carmona
o golpista que se auto proclamou presidente da Venezuela no 11
de Abril e durante dia e meio desencadeou uma repressão selvagem no
pais, movimenta-se sem limitações pela Colômbia,
conspirando.
Entretanto, no auge da crise, a Casa Branca emitiu a surpreendente nota em
que sugeria a Chavez como solução para os problemas do
país a convocação de eleições antecipadas.
A iniciativa, como alguns jornais dos EUA reconheceram, configura uma
flagrante violação das normas internacionais que regem as
relações entre Estados soberanos. Na prática, Bush pede a
Chavez que viole uma Constituição aprovada pela esmagadora
maioria dos venezuelanos .
O intervencionismo estadunidense manifesta-se simultaneamente nas atitudes
arrogantes assumidas pelo embaixador norte-americano no Conselho da OEA que,
sob a presidência do ex-presidente colombiano César Gaviria,
pretende cumprir o papel de mediador.
Basta acompanhar os noticiários da CNN para se perceber que um
autentico frenesi anti-Chavez é hoje identificável na Casa
Branca, no Pentágono e no Departamento de Estado.
Num oportuno artigo, o influente jornalista latino-americano Carlos Fazio
acaba de evocar a histeria anti-chilena e as iniciativa que a traduziram em
Washington quando Salvador Allende foi eleito presidente do Chile.
A Venezuela Bolivariana não defende um projecto similar ao condensado
nas 100 Medidas da Unidade Popular. Mas a simples defesa da soberania
nacional e as cautelosas reformas propostas por Chavez são
inaceitáveis para a Administração Bush.
Fazio recorda que antes mesmo de Allende tomar posse já se havia
reunido em Washington o Comité dos 40 com o objectivo de criar o caos
no Chile e desencadear ali acções terroristas. Na época
a CIA destinou ao financiamento dos partidos da oposição 8
milhões de dólares e uma verba especial ao diário
El Mercúrio
, o principal jornal da direita.
Kissinger teve então um desabafo memorável: «Não
vemos motivo para permanecer de braços cruzados, contemplando a
transformação em comunista de um pais devido à
irresponsabilidade do seu povo».
QUE DESFECHO?
Chavez ao dirigir-se ao povo no seu Programa «Alô
Presidente», mostrou-se confiante na evolução da crise,
valorizando a contribuição decisiva dos trabalhadores da
industria petrolífera para a derrota da ambicioso plano que visava
paralisar esse sector nevrálgico da economia .
Mas ao promover novas manifestações, a oposição
contra-revolucionária consegue manter, sobretudo na capital, uma
atmosfera de tensão permanente que contribui para o agravamento da
difícil situação económica e financeira do
país e permite aos media nacionais e internacionais esboçar o
quadro de uma sociedade à beira da desagregação.
Carlos Ortega, o dirigente sindical da CTV, a central controlada pela direita
e financiada por empresas transnacionais, anuncia aliás que estão
em preparação iniciativas de combate ao governo que vão
exceder tudo o que no género se viu ate agora .
Ortega é um aventureiro que recorre aos métodos mais sujos. A
contratação por elementos da oposição de
pistoleiros estrangeiros para provocações concebidas com o fim
de atribuir ao governo crimes ideados pela direita é, aliás,
reveladora do nível a que desceram os inimigos de Chavez.
O refluxo da paralisação assinala a dificuldade da oligarquia
em atingir os objectivos fixados dentro do calendário previsto. A
oposição não demonstrou nestas semanas angustiantes
força suficiente para impor nem a renuncia do presidente nem as
eleições antecipadas. Mas o governo não se sente
também em condições de punir adversários que
tripudiam sobre a Constituição. As fragilidades do processo
transparecem da própria decisão do Governo de não
aplicar o regulamento de disciplina militar aos oficiais que na Praça
Altamira lançam apelos à insurreição, ovacionados
pelas damas da grande burguesia.
Chavez afirma ter força suficiente para esmagar no berço
qualquer nova tentativa de golpe militar. Mas na pratica gerou-se uma
situação que no dia a dia apresenta a fisionomia de uma
dualidade de poderes.
Nos três dias posteriores à derrota do putsch fascizante de
Abril, o Presidente poderia, com apoio maciço da maioria dos
venezuelanos, ter desmantelado a oposição, tomando as
providencias adequadas. Não o fez. Espartilhado por um conceito
rígido de legalidade institucional, optou por um diálogo com
inimigos que o recusam e que aos apelos à discussão dos
grandes problemas nacionais respondem com novas conjuras, actos de
violência e iniciativas que lançam o caos na economia.
Esta dualidade atípica de poderes não poderá manter-se
por muito tempo. A prova de força terminará com a vitoria das
forças democráticas que apoiam Chavez ou com a derrota do
projecto dito bolivariano, segundo o qual será possível
transformar a sociedade venezuelana no quadro institucional sem recurso a
métodos e iniciativas que o transcendam.
Como seria de esperar, no Brasil e no Equador, as organizações,
partidos e personalidades progressistas que contribuíram decisivamente
para as vitorias eleitorais de Lula e Lúcio Gutierrez acompanham com
apreensão crescente o desenvolvimento dos acontecimentos na Venezuela.
Em vésperas do Foro Social Mundial, que será cenário de
um intenso e fascinante debate sobre grandes problemas da humanidade
debate político, económico e ideológico aquilo que
nestes dias está em causa na Venezuela assume um enorme significado
não somente para a América Latina mas para todos quantos
estão empenhados na luta contra a globalização e contra
o projecto de dominação planetária do novo Imperialismo.
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