O governo Trump brinca com fogo – e ninguém o avisa

– Devem informar Trump que o resultado da sua aposta na violência militar pode ser um Armagedom nuclear

Atilio Boron [*]

Manifestante venezuelano.

O invulgar envio de navios de guerra dos EUA para as Caraíbas e, sobretudo, para as imediações do mar territorial da Venezuela, é a concretização das múltiplas declarações de Trump e de altos funcionários do seu governo que há meses anunciam que, em relação à Venezuela, "todas as opções estão em cima da mesa".

O objetivo: produzir a tão ansiada "mudança de regime", pelo que esse país tem grandes chances de ser alvo de uma crescente agressão militar. Na verdade, isso já começou: 20 barcos destruídos nas águas do Caribe e também do Pacífico, com 76 pessoas assassinadas extrajudicialmente por ordem de Trump, falam de uma guerra que já começou. [1]

O pretexto de que se tratava de "barcos de narcotraficantes" e que os seus ocupantes seriam traficantes de droga é uma mentira grosseira que nenhuma pessoa medianamente sensata pode acreditar. Não há qualquer evidência que sustente as afirmações da Casa Branca:   os ocupantes dos barcos não foram detidos nem identificados, não foram interrogados para saber quem eram os seus chefes e assim avançar no combate ao narcotráfico, nem a suposta droga foi apreendida. O mais provável, como afirmaram os presidentes da Venezuela e da Colômbia, é que as infelizes vítimas fossem humildes pescadores ou migrantes.

Os traficantes de droga cuidam dos seus negócios e não são tão estúpidos a ponto de se aventurarem em mar aberto quando todos os olhos das forças armadas dos EUA estão vigiando cada centímetro do Caribe com navios e drones. Mas o sórdido personagem que preside a Casa Branca queria fazer uma demonstração de força e enviar uma mensagem a outros atores do sistema internacional — tanto aos seus aliados quanto aos seus adversários e inimigos — e ordenou esses ataques criminosos para que todos percebessem que os EUA "estavam grandes novamente" e haviam recuperado o cetro de valentão do bairro, que podia agir com total impunidade e que, a partir de agora, os seus desejos seriam ordens que deveriam ser obedecidas sem questionar.

Num excelente artigo publicado há poucos dias, Vijay Prashad fez uma revisão dos antecedentes históricos das diferentes modalidades de intervencionismo militar dos EUA, todas elas com pouquíssimas chances de sucesso, segundo o autor, no caso da atual ofensiva contra a República Bolivariana da Venezuela.[2]

Vejamos. Uma delas, inspirada na experiência do golpe de Estado de 1964 no Brasil, consiste em deslocar um numeroso contingente militar para águas territoriais — naquele caso, no Rio de Janeiro — e que o simples posicionamento do formidável poderio naval norte-americano incentive os setores da extrema direita a tomar as ruas, produzir todo tipo de excessos, montar protestos sangrentos (guarimbas), o que provocaria uma ruptura nas forças armadas bolivarianas e a rápida transição de um setor delas para o campo da oposição fascista, precipitando a ruptura da ordem constitucional e a destituição do presidente Nicolás Maduro. Nem Prashad nem o autor destas linhas atribuem qualquer probabilidade a essa conjectura.

O segundo cenário é o que o nosso autor chama de “opção Panamá”, pela decisão tomada por Washington em 1989 de enviar um contingente de tropas especializadas para capturar o presidente Manuel Noriega e levá-lo prisioneiro para os EUA. Essa operação foi ferozmente resistida pela população desarmada do Panamá e exigiu a mobilização de cerca de 26 000 soldados e levou quase um mês de combates. Repetir isso em um país do tamanho territorial e populacional da Venezuela exigiria mobilizar uma força expedicionária de várias centenas de milhares de soldados para lutar contra um exército bem equipado e milícias populares armadas. Essas condições não se dão de forma alguma na Venezuela.

A terceira modalidade seria a que Prashad denomina a "opção Iraque":   bombardeamentos massivos contra Caracas e outras cidades, provocando grandes destruições, ocupar infraestruturas-chave — eletricidade, água, serviços essenciais —, semear o pânico na população e desmoralizar e dividir as forças armadas, seguido de tentativas de linchamento da alta liderança venezuelana.

Mas, como aponta o nosso autor, ao contrário do caso iraquiano, na Venezuela, o enraizamento do chavismo nos bairros populares, o seu alto grau de organização — e de consciência anti-imperialista — e a identificação das forças armadas com o projeto bolivariano frustrariam completamente essa iniciativa. Podem causar muitos danos e provocar muitas mortes, mas o governo bolivariano continuaria firme nos seus postos de comando.

Outra alternativa que não deve ser descartada, porque tem sido repetidamente utilizada pelos EUA, é uma "operação terrorista de bandeira falsa". O império poderia, por exemplo, montar um ataque a algum dos navios que estão na zona, ou nas proximidades de Trinidad e Tobago, ou Porto Rico, ou um atentado contra alguma sede de uma embaixada dos EUA ou mesmo dentro do país. Tal é o desespero para se apoderar do petróleo venezuelano que os criminosos que pululam em torno da Casa Branca seriam capazes de ordenar a realização de um auto-ataque, como detonar uma bomba na Times Square ou na Grand Central Station de Nova Iorque para culpar o "regime" de Maduro por esses crimes e assim justificar a agressão que seria então apresentada como "defensiva". No entanto, é claro que isso não resolve os inconvenientes expostos acima.

A quinta opção seria um assassinato que poria um fim abrupto à presidência de Nicolás Maduro. A tecnologia utilizada pelos israelenses para esses fins foi testada com a eliminação de boa parte da liderança do Hamas e do Hezbollah. Lembremos que já tentaram contra Maduro com dois drones em 2018, e o ataque foi repelido.

É provável que, tendo em conta que as dezoito organizações que compõem a Comunidade de Inteligência dos EUA (sic!) e que, no total, empregam aproximadamente um milhão e quatrocentos mil agentes, algumas centenas deles estejam estacionados e a operar na Venezuela há algum tempo, e que tenham recrutado não poucos colaboradores locais entre a direita e a extrema-direita fascista.[3]

Mas uma operação deste tipo, no caso muito improvável de ser bem-sucedida e assassinar o presidente Maduro, não produziria necessariamente a tão almejada "mudança de regime" que Washington persegue. O chavismo é uma força telúrica na Venezuela, é a expressão mais genuína da soberania popular e do legado de Simón Bolívar, e sobreviveria a essas lamentáveis vicissitudes, no improvável caso de elas ocorrerem. Haveria uma mudança na liderança, sem dúvida, imposta pelas circunstâncias, mas a revolução bolivariana continuaria seu curso.

Agora bem:   assim colocadas as coisas, convém ampliar o foco desta reflexão para tomar nota do contexto internacional em que se produziria a agressão militar ianque. Um dado decisivo do mesmo é a mutação experimentada nos últimos anos e que provocou o colapso do unipolarismo norte-americano e a emergência de um sistema internacional multipolar ou policêntrico cujos pilares: China, Rússia, Irão, Índia, os BRICS em geral, já adquiriram uma gravidade económica superior à dos países do G7, ou seja, aos EUA e seus indignos vassalos: Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão e Reino Unido. E quem diz influência económica também diz influência política, cultural (note-se a "desocidentalização" da antiga periferia colonial), diplomática e militar.

Acrescente-se a isso os claros indícios do declínio do poderio norte-americano, percebido até mesmo pelos mais fervorosos exegetas do imperialismo, na galáxia das novas tecnologias da informação, comunicação e robótica e a presença declinante do dólar na economia mundial para delinear os contornos de um novo sistema internacional pós-hegemónico e no qual o regresso à "diplomacia das canhoneiras" poderia tentar outros atores do sistema internacional a seguir o (mau) exemplo dos EUA.

Se a força bruta é agora o que rege o funcionamento das relações internacionais, que razões teria a China para esperar até 2049, quando se completará o primeiro centenário da Revolução, para reintegrar a província rebelde de Taiwan à jurisdição nacional? Por que não imitar os EUA e fazê-lo agora, aproveitando sua enorme superioridade militar e o fato de que Washington está envolvido em uma guerra cara e prolongada em sua própria vizinhança? Como reagiriam os EUA, atolados em uma guerra impossível de vencer na Venezuela, diante de tal movimento militar de Pequim? Retiraria as suas tropas da república bolivariana, numa fuga caótica como fizeram no Afeganistão, atravessando meio mundo para enfrentar o país que, segundo todos os documentos oficiais dos EUA, designam como uma entidade maligna e seu inimigo número um, o rival a ser derrotado? Ou Washington se limitaria a solicitar uma sessão urgente do Conselho de Segurança, o que provocaria uma gargalhada universal?

Porta-aviões USS Gerald Ford.

Enviaria às pressas o porta-aviões USS Gerald Ford novamente para o sul da Ásia, onde chegaria após duas semanas de marcha forçada? Apagaria com o cotovelo as suas décadas de apoio incondicional a Taiwan e jogaria no lixo os centenas de milhares de milhões de dólares transferidos para essa ilha como ajuda militar e económica? É conveniente que os assessores e especialistas da Casa Branca pensem nessas coisas antes de escalar a agressão contra a Venezuela.

O que Trump está ameaçando fazer ilumina a grande diferença existente entre a situação da Venezuela – por enquanto apenas ameaçada – e a da Ucrânia. Como assim? Washington está prestes a atacar militarmente um país que há dez anos sofre um bloqueio imposto por Barack Obama e que não representa qualquer ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos. A Ucrânia, por outro lado, sofreu um golpe de Estado arquitetado pela administração Obama, que destituiu um governo legitimamente eleito e que contava com a bênção da União Europeia, que mantinha relações normais com Moscovo, e o substituiu por uma sucessão de governos neofascistas que, desde o primeiro dia, começaram a atacar a minoria russófona da Ucrânia.

Não só isso: a NATO, a maior organização criminosa do mundo (Noam Chomsky dixit), estava a tentar incorporar a Ucrânia nas suas fileiras, o que representava uma ameaça existencial à segurança nacional russa. Por isso, Moscovo não teve outra alternativa senão lançar a sua "operação militar especial", uma guerra preventiva diante dos sinais claros de agressão que vinham da Ucrânia, transformada num proxy dos EUA e da NATO. Como explicou de forma irrefutável John Mearsheimer, professor da Universidade de Chicago, "o argumento com o qual me identifico, e que é claramente a opinião minoritária no Ocidente, é que os EUA e os seus aliados provocaram a guerra".[4] Jeffrey Sachs, economista da Universidade de Columbia, defende esta mesma tese com muita informação adicional no vídeo que citamos abaixo.[5]

Nenhuma dessas condições se aplica ao caso venezuelano que, preciso reiterar, não prejudica em nada a segurança nacional dos EUA. Além das suas diferenças ideológicas e da atitude agressiva de Washington, o governo venezuelano nunca deixou de vender petróleo aos EUA. Por isso, tal como foi feito para legitimar a invasão e destruição do Iraque a partir de 2003, a Casa Branca recorre à invenção de uma história fantasiosa e falaciosa, uma narrativa ridícula segundo a qual o presidente Nicolás Maduro seria o chefe de um fantasmagórico "Cartel dos Soles", cuja existência é tão verdadeira quanto as "armas de destruição maciça" que supostamente existiam no Iraque, e que, nessa condição, está a condenar à morte dezenas de milhares de cidadãos norte-americanos.

Dadas todas estas considerações, seria bom que Trump prestasse atenção às declarações emitidas por Moscovo e Pequim, rejeitando a opção militar para resolver conflitos internacionais. A América Latina e as Caraíbas, disseram ambos, não são o quintal de ninguém. A arrogância de Trump, sobre quem pesam inúmeras acusações judiciais, às quais se juntou recentemente a de pedofilia, atiçaria a fogueira nos numerosos focos de tensão que colocariam o mundo em perigo perante uma possível escalada nuclear e que obrigariam Washington a lutar e sangrar em várias frentes de guerra.

Por exemplo, reacender a disputa entre a Índia e o Paquistão, duas potências atómicas menores, estimulada pelo exemplo dos EUA ao atacar a Venezuela. Ou a disputa interminável do sionismo israelense com os seus vizinhos, principalmente a Síria, a quem Telavive despojou dos cruciais Montes Golã, e da ajuda do Líbano e do Irão. Ou da República Democrática da Coreia, uma pequena potência atómica, contra a Coreia do Sul. As forças armadas do império se veriam diante de um acúmulo de conflitos que enfraqueceriam muito a defesa do próprio território norte-americano.

É sabido que o petróleo venezuelano, a maior reserva do mundo, exerce uma “atração fatal” sobre os administradores do império. Mas alguns assessores deveriam informar ao incompetente gabinete de Trump 2.0 que o resultado final de sua aposta na violência militar pode ser um Armagedom nuclear de proporções catastróficas e que ele deve cessar sua agressão militar contra a Venezuela e apostar na negociação diplomática, fazendo ouvidos moucos aos fascistas venezuelanos liderados por María Corina Machado, máxima cultora da violência naquele país, e aos discursos dos delinquentes de Miami que, liderados por Marco Rubio, desembarcaram em Washington cegos pelo seu ódio à Revolução Cubana e ao chavismo.

Informar também ao presidente que, num exercício de simulação realizado pelo programa "Ciência e Segurança Global" da Universidade de Princeton, concluiu-se que, em um conflito em que os EUA e a Rússia recorressem aos seus arsenais nucleares, "90 milhões de pessoas morreriam ou ficariam feridas apenas nas primeiras horas do conflito". [6]

E, nesse momento, nada importaria quem se apoderou do petróleo venezuelano, saudita ou de qualquer outro lugar, porque em poucas semanas a nuvem atómica resultante do bombardeamento nuclear acabaria com todas as formas de vida do planeta. Seria a primeira vez que uma guerra promovida pelos EUA longe de casa: na Europa, no sul da Ásia, no norte de África, teria como cenário sombrio as grandes cidades americanas.

Primeira, acrescentemos, e última vez, porque depois não haveria outra. Cabe aqui reproduzir a resposta que Albert Einstein deu a um jornalista que lhe perguntou se ele sabia como seria a terceira guerra mundial. Sua resposta poupa milhares de argumentos:   “Não sei como será a terceira guerra mundial, só sei que a quarta será com pedras e lanças.” Isso se sobrevivermos a vinte anos de inverno nuclear.

[1] Números em 9/novembro/2025.
[2] Ver "EUA continuam a sua tentativa de derrubar a Revolução Bolivariana da Venezuela", Boletim 45 (2025) do Instituto Tricontinental de Investigação Social.
[3] www.intelligence.gov/how-the-ic-works/...
[4] www.sinpermiso.info/textos/quien-causo-la-guerra-de-ucrania
[5] Veja a explicação detalhada de Sachs neste vídeo: www.youtube.com/watch?v=7x5enM9Mo4M
[6] Cf. www.elperiodico.com/es/tendencias-21/20220308/guerra-nuclear-tendria-horas-victimas-13338816

18/Novembro/2025

[*] Sociólogo, argentino.

O original encontra-se em www.lahaine.org/mundo.php/el-gobierno-de-trump-juega-con-fuego

Este artigo encontra-se em resistir.info

19/Nov/25

Estatísticas