Venezuela: "Não temos relação com o FMI nem queremos tê-la"

afirma dirigente da Revolução Bolivariana

Pablo Stefanoni (*)
Tradução de Jorge Figueiredo

US Navy invade espaço aéreo e marítimo venezuelano

Poucos dias após o fracassado golpe de Estado contra a ordem constitucional venezuelana, Guillermo García Ponce, dirigente do Comando Político da Revolução, foi a Buenos Aires onde pronunciou várias conferências sobre a actual conjuntura no seu país. García Ponce tem uma vasta actividade na política e no jornalismo venezuelano e participou da Assembleia Nacional Constituinte que em 1999 redigiu a Constituição Bolivariana.


—De que maneira os EUA participaram na articulação do golpe contra Chavez?
—O governo está a efectuar uma investigação a fim de estabelecer como ocorreram o factos e quem participou do golpe de Estado que usurpou o poder durante várias horas. No Parlamento venezuelano também se formou uma comissão denominada "Comisión de la Verdad" que vai desenvolver uma investigação semelhante. Recentemente li um artigo no New York Times onde se fazem afirmações e comentários acerca do financiamento por uma fundação dos EUA de actividade conspirativas na Venezuela. Verifica-se também uma reacção generalizada em meios europeus no sentido de que o governo norte-americano deve dar uma explicação à comunidade internacional e à Venezuela acerca da sua participação no golpe de Estado.

Quais são os factos? Naturalmente muitos dos autores do conspiração estão cobertos pelo segredo que cerca a investigação destes acontecimentos, mas há elementos que não podem ocultar-se. Primeiro elemento: durante meses altos funcionários do Departamento de Estado e também o Comandante do Comando Sul do Exército dos EUA fizeram declarações hostis ao presidente Chavez. Declarações que sem dúvida nenhuma não se destinavam a fortalecer o governo constitucional e tinham, sim, outros objectivos. Esse é um primeiro elementos, ou seja, que durante meses o governo norte-americano caracterizou-se por uma atitude agressiva, injustificadamente agressiva, contra o Presidente da Venezuela. Segundo facto: durante meses, e de uma maneira sistemática e persistente, o Departamento de Estado concedeu audiências e recebeu numerosos extremistas de direita que na Venezuela estavam a conspirar contra Chavez. O Departamento de Estado chegou inclusive a chamar a um dos seus escritórios o General Lucas Rincón, Inspector Geral da Forças Armadas Venezuelanas, a fim de exercer sobre o Alto Comando Militar venezuelano pressão contra o Presidente Chavez. Os próprios altos funcionários do governo norte-americano admitiram estas reuniões – levadas a cabo em Washington – reconhecendo que nelas participaram, em conjunto ou em separado, os representantes da cúpula empresarial, da cúpula sindical da Acción Democrática, os dirigentes dos diversos partidos que participaram da conspiração – Acción Democrática, Primero Justicia, COPEI – e alguns outros sectores ligados ao golpe.

E que se discutia nessas reuniões? Nós só temos conhecimento das explicações que deram os próprios funcionários norte-americanos. Eles dizem que nessas reuniões o Departamento de Estado tentou persuadir os dirigentes extremistas a não efectuarem qualquer tentativa de derrubar Chavez por meios violentos. Mas esta confissão das autoridades americanas constitui prova suficiente de que nelas foi discutida a saída de Chavez do poder através de uma conspiração. Ao mesmo tempo, esta informação privilegiada que tinha o Departamento de Estado ficou só com o governo norte-americano. Neste momento ainda por determinar até que ponto as autoridades norte-americanas estiveram comprometidas nas actividades que antecederam o golpe de Estado.

O terceiro facto foi posto em evidência pelo New York Times, quando revelou as doações desta fundação que mencionei, que forneciam grandes quantidades de dólares a personagens comprometidos na conspiração contra Chavez. De modo que tudo parece indicar que o governo norte-americano deve uma explicação à comunidade internacional sobre até que ponto foi violada a Carta Democrática de Washington firmada por todos os presidentes, até onde foi violada a soberania venezuelana, o Estado de direito e a ordem constitucional nos acontecimentos de 11 a 13 de Abril.

— Até que ponto pensa que influenciou a recusa da Venezuela de participar do Plano Colômbia, negando por exemplo a utilização do seu espaço aéreo nas actividades conspirativas desenvolvidas por Washington?
—Os círculos norte-americanos não esconderam o seu interesse em que a Venezuela participasse da guerra civil na Colômbia, cooperando na guerra ao lado do governo de Pastraña, contra a guerrilha colombiana. O governo venezuelano recusou sistematicamente essas pressões e declarou que o seu único interesse em relação ao conflito colombiano é a paz, havendo oferecido os seus bons ofícios para qualquer iniciativa pela paz. É sabido que no decorrer dos acontecimentos que comoveram a Venezuela, altas autoridades do governo colombiano emitiram declarações a favor dos golpistas. Sem dúvida alguma a pressão que se exerceu sobre o governo venezuelano destina-se a usar o seu território como uma base para realizar acções armadas contra a guerrilha colombiana. Mas a Venezuela sempre defendeu a não ingerência no conflito colombiano e manteve uma política em favor da paz e da convivência entre os colombianos. Queremos uma fronteira de paz, não uma fronteira de guerra.

—Como a Venezuela é afectada pelo facto de ser um dos maiores exportadores de petróleo para os EUA?
—A Venezuela reiterou em diversas ocasiões sua disposição para manter com os EUA uma relação de entendimento, relações diplomáticas no âmbito do direito internacional, e insistiu reiteradas vezes em que é uma fonte segura de petróleo para os EUA. Em momento algum pensámos em alterar esse facto, na medida em que os EUA é o maior cliente para o petróleo da Venezuela. Também é bem sabido que há gente na Venezuela – aliada a poderosos interesses transnacionais – que sempre perseguiu a ideia de privatizar a PDVSA – Petróleos de Venezuela – porque a indústria petroleira representa um grande negócio, aquilo a que chamamos o filet mignon da economia venezuelana. Nós nos opusemos à privatização da PDVSA, defendemos sempre a OPEP a fim de defender os preços. Defendemos a política de preços justos para o petróleo e tudo isto encontrou adversários nos EUA e no próprio seio da sociedade venezuelana. De modo que tudo indica que nesta conspiração desempenhou um papel importante o petróleo da Venezuela. Por um lado a gente interessada em privatizar a PDVSA, e por outro lado a gente interessada em que a Venezuela rompa com a OPEP e que se verifique uma queda a pique dos preços do petróleo, com o que se beneficiariam os grandes países industrializados. Creio que o petróleo foi e continua a ser uma linha de conflito entre aqueles que querem comprar petróleo barato, para o que querem apoderar-se da indústria petroleira, e aqueles – como o presidente Chavez – que pretendem que o petróleo continue a ser venezuelano e que os preços se mantenham num nível razoavelmente justo a fim de que nosso país possa obter uma fonte de financiamento segura dos seus programas sociais.

— Em relação a isto, alguns analistas afirmam que o governo Chavez não modificou esta situação de dependência do rendimento petroleiro. Há projectos de reforma estrutural da economia venezuelana a fim de reduzir esta dependência e possibilitar um processo de inclusão social?
— Desgraçadamente continuamos a ser um país rentista, não um país produtivo. Isto é uma calamidade, uma desgraça, uma deformação que pesa sobre nosso país há muitíssimos anos. Entre as heranças que o governo Chavez recebeu, além de 80% de pobreza, além de uma dívida colossal, de um país arruinado do ponto de vista industrial e agrícola, recebeu também um país rentista. Estamos conscientes disso e uma das metas da Revolução Bolivariana é precisamente converter-nos num país produtivo. E nessa direcção estão a executar-se grandes planos de transformação do país. Um desses planos tem a ver com o eixo Orinoco-Apure, que consiste na transformação de uma região excluída desde sempre da economia do país, num empório industrial e agropecuário que permita desenvolver os planos de tornar o nosso país independente da renda petroleira. Outro objectivo da planificação é o estabelecimento de outras fontes de riqueza na região oriente do país. Ali estão a promover-se instalações de transformação do petróleo a fim de deixar de ser um país exportador de matérias-primas e convertermo-nos em exportadores de derivados de petróleo. Estamos conscientes da necessidade de transformar o país. Estamos a desenvolver planos ambiciosos na pequena e média indústria. Queremos transformar-nos num país que não dependa do petróleo, isso é um projecto nacional. Desenvolver-nos através da diversificação da economia, através do uso do petróleo como fonte de derivados para a indústria química, a indústria petroquímica. Acreditamos que no futuro podemos explorar outras fontes de recursos destinados a elevar as potencialidades da nossa agricultura, da nossa indústria. Adoptamos aquilo a que chamamos "bandeiras condutoras", quatro ou cinco produtos da agricultura para aumentar a sua produção, e os planos vão mais além. Mas esses são planos que exigem primeiro fazer as transformações políticas, porque náo podemos desenvolver esses planos no âmbito das velhas instituições, no âmbito do velho poder político. Primeiro tínhamos que transformar politicamente o país. Tínhamos que arrancar o poder da velha política e isso já o fizemos. Depois começámos a dotar o país de um novo quadro institucional e legal para poder firmar essas transformações, isso também conseguimos. Agora vem o período de desenvolver a Constituição através de um conjunto de leis. Já fizemos a lei das terras, a lei das pescas, a lei dos hidrocarbonetos, a lei da electrificação. Uma série de leis para permitir o desenvolvimento económico. Mas esse processo não é possível em três anos, com herança pesada que recebemos não é possível transformar esse país nesse tempo, é um repto que exige um período muito prolongado. O próprio presidente assinalou que serão precisos mais de vinte anos para que se comece a ver a transformação da Venezuela.

— Até onde pretendem chegar com as transformações? Há, por trás destas medidas, um projecto da avançar para além do capitalismo?
— O programa que guia todas estas transformações é a Constituição Bolivariana. No quadro da Constituição são estabelecidos vários modelos económicos. Estabelece-se primeiro o desenvolvimento normal do capitalismo, nossa Constituição não é anti-capitalista. Mas, ao lado das formas de propriedade capitalista, desenvolvem-se as formas de propriedade do Estado, da propriedade cooperativa, outras formas diferentes da exclusivamente capitalista. Além disso devemos acrescentar que concebemos nosso desenvolvimento económico de acordo com uma formulação que é bem conhecida: "tanto mercado quanto seja necessário, tanto Estado também quando seja necessário". Não queremos, de forma alguma, ser um país no qual as leis do mercado se desenvolvam de forma selvagem e que ocorra o que aconteceu em outros países. Esse desenvolvimento selvagem do mercado conduziu à ruína, à pobreza, ao desastre económico. Não vamos ser vítimas de uma capitalismo de tipo selvagem, mas tão pouco recusamos iniciativas de tipo capitalista e investimento estrangeiro, no quadro da Constituição. Desse modo, sempre fizemos convites ao investimento, temos leis que protegem o investimento estrangeiro. Na Venezuela não existe qualquer regulação de capitais, alem das normais. Não existe qualquer regulação de preços, ou seja, não existem regulações na economia. E isto acontecer pela primeira vez, porque antes os governos democráticos muitas vezes suspendiam as garantias económicas.

— Em que consistem as transformações no campo venezuelano, a partir da lei das terras?
— O problema principal do campo venezuelano é a existência de grandes extensões de terra sem produção, é um mal que vem de há muito. Desenvolviam-se grandes extensões territoriais, latifúndios que não cumpriam qualquer função social. Mas, além disso, temos o gravíssimo problema de um grande atraso na nossa pecuária e também na nossa agricultura. Temos o problema da concentração da terra em poucas mãos, o abandono do campo, e ausência de ordenamento territorial. Assim, há um conjunto de problemas que impediram o desenvolvimento do campo venezuelano. Houve abandono, negligencia, nos governos do passado. O que estamos a fazer? Promovemos a lei das terras, cujo objectivo é tornar o campo produtivo, rever a posse de terra ociosa, impulsionar – através das cooperativas – os laços entre os camponeses, dotar os camponeses de terras. Todo um programa de modernização do campo venezuelano, estamos a trabalhar nesse sentido.

— Mantêm algum tipo de diálogo com o Fundo Monetário Internacional?
— Em absoluto. Nós não temos relação com o Fundo Monetário, nem queremos tê-la nem a teremos. Não necessitamos do diálogo com o Fundo.

— Após o fracasso do golpe pode-se esperar um governo mais conciliador ou uma maior radicalização das reformas?
— O governo vai seguir o seu caminho, suas reformas por etapas. Nesse momento estabelecemos como prioridade a questão económica. O problema dos golpistas está nas mãos dos tribunais, nas mãos da Justiça Militar e do Supremos Tribunal de Justiça. Apesar da criminalidade da actividade dos golpistas não foram humilhados nem vexados, foram respeitados os seus direitos. Posso dizer-lhes inclusive que neste momento estão até em suas casas (com prisão domiciliar), nem sequer estão numa prisão. Até que o Promotor Geral faça uma acusação formal. O governo não vai conciliar nem, tão pouco, radicalizar sua política.

— O que é o Comando Político da Revolução?
— O comando político da revolução não faz parte do governo e não é um órgão do Estado, é uma organização que pertence ao campo da política. Sua função é unir as forças políticas que apoiam a Revolução Bolivariana. O Comando é dirigido pelo presidente Chavez, eu sou o chefe do órgão executivo que é o Directório, mas ele é o Comandante Geral do Comando da Revolução. Do Comando fazem parte 5 ministros que representam o governo, parlamentares, governadores, alcaides e uma representação de todos os partidos políticos que apoiam o presidente Chavez. Além disso estão representados os indígenas, as mulheres, os trabalhadores, os jovens. No total tem 41 membros. A seguir tem um directório mais reduzido que é o que faz o trabalho diário de direcção. O Comando Político dirige a organização dos Círculos Bolivarianos, que é a organização base do povo, que mobilizar a população em defesa da Constituição, faz trabalhos em benefício dos vizinhos, da solidariedade. São organizações de participação voluntária que seguem a tradição venezuelana das juntas de vizinhos, mas à tarefa social acrescentam os trabalhos políticos. Pudemos agora ver a sua eficácia quando reuniram o povo para "sitiar" os quartéis em defesa da Constituição e contribuíram decididamente para a derrota do golpe.

(*) Do jornal La Arena , Argentina.

03/Maio/02