Quadros Técnicos e Científicos:
Ideias de ontem e de hoje

J. M. Costa Feijão, Membro do Gabinete de Estudos Sociais (GES)

Nos finais do pretérito século XIX, quando Eça de Queirós gerou o possidónio Alípio Severo d'Abranhos, utilizando-o como protótipo da ideologia dominante na época, exibiu-o como paladino do imobilismo, da imiscibilidade social, e verdadeiro exemplo de perfeita esterilidade intelectual.

As teses do Conde d'Abranhos são lapidares exemplos dum conservadorismo primário e visceralmente elitista que, aqui e acolá, perduram nas formas da consciência social contemporâneas, mormente na dicotomia que alguns teimam em cristalizar entre o trabalho intelectual e manual.

Por tal motivo chamamos à colação o “pensamento social” do Alípio Severo d'Abranhos que, sendo distante no tempo é actual nos tiques e conteúdos teóricos de muito académico encanudado, na alvorada do século XXI.

Sobre a inefável missão do ensino superior, o raciocínio do Alípio era preclaro: “A primeira vantagem da Universidade, como instituição social, é a separação que se forma naturalmente entre estudantes e futricas, entre os que apenas vivem de revolver ideias ou teorias e aqueles que vivem do trabalho. Assim, o estudante fica para sempre penetrado desta grande ideia social: que há duas classes – uma que sabe, outra que produz. A primeira, naturalmente, sendo o cérebro, governa; a segunda, sendo a mão, opera, e veste, calça, nutre e paga a primeira”.

Mas o Abranhos não se quedava nos conceitos da bipolarização social proporcionada pela instituição universitária, e ia mais além: “Esta ideia de divisão em duas classes é salutar, porque assim, educados nela, os que saem da Universidade não correm o perigo de serem contaminados pela ideia contrária – ideia absurda, ateia, destruídora da harmonia universal – de que o futrica pode saber tanto como sabe o bacharel. Não, não pode: logo as inteligências são desiguais, e assim fica destruído esse princípio pernicioso da igualdade das inteligências, base funesta de um socialismo perverso”.

Cultor do hábito de aceitar sem discussão e com obediência as ideias preconcebidas, Alípio exaltava as virtudes do processo educativo, porque, o estudante: “Assim educado, durante cinco anos, a curvar-se, a solicitar, a sorrir, a obedecer, a lisonjear, a suplicar, a depender, o bacharel entra na vida pública disciplinado, e, em lugar de ser o homem que quer tomar na vida o lugar que lhe convém (o que seria a desorganização das posições sociais), vai humildemente colocar-se, com um sorriso, no lugar, na fila, no cantinho que lhe marcam os que governam. Assim se forma uma imperecível harmonia social”.

Refractário à mutação, o Alípio jamais admitiria que, um século depois, os diplomados pelo ensino superior viessem a constituir uma massa de assalariados que já Engels denominava “proletariado intelectual”, e mais bizarro se lhe afiguraria que em 1921, o PCP contemplasse no Capítulo I das suas Bases Orgânicas “a colaboração dos técnicos, especialistas e cientistas com a classe operária”.

Para os Abranhos de ontem e hoje é ininteligível que processos objectivos actuantes no capitalismo contemporâneo hajam determinado profundas alterações no estatuto social da intelectualidade, onde os quadros técnicos e científicos se integram. A sua mentalidade ainda agrilhoada à dicotomia intelectual-manual, não captou o porquê da rejeição capitalista de uma grande parte dos jovens com formação superior, objectivamente condenados a servir de base social para o crescimento de novos grupos do proletariado, ligados a actividades intelectuais.

Encontramo-nos perante uma situação inquestionável. Estão a diminuir as oportunidades dos diplomados com cursos médios e superiores de encontrarem emprego, tendo como resultado a crescente dificuldade em colocar um número cada vez maior de trabalhadores qualificados. E, na actualidade, uma instrução de nível superior deixou de garantir uma carreira e a realização profissional.

Entre 1992 a 2000 registou-se um aumento médio de 4.100 diplomados/ano, e no mesmo período observado, o emprego de quadros técnicos e científicos decresceu, segundo o INE, de 787,3 para 646,7 o que equivale a uma média de -17.575 empregos/ano.

No decurso de oito anos destaca-se uma diminuição de 140.600 empregos de quadros técnicos e científicos que, tendo representado 18,1% do emprego em 1992, passaram a 13,2% em 2000. A descida é significativa, verificando-se uma tendência estabilizadora da percentagem do emprego de quadros em relação ao emprego geral, na casa dos 13%, no triénio 1998-1999-2000.

Em igual período, segundo os dados proporcionados pelo DAPP (Departamento de Avaliação Prospectiva e de Planeamento) do Ministério da Educação, o número de diplomados no ensino superior apresentou um aumento de 153%.

Estes algarismos patenteiam de forma iniludível que na última década a correlação entre o número de vagas e o número de diplomados à procura de emprego acentuou a procura e encurtou a oferta. O número de diplomados sem emprego deixou de ser uma ocorrência individual para constituir um fenómeno cada vez mais geral, cujo afastamento do processo produtivo, pelo relativo excedente de oferta, faz parte da lei de acumulação capitalista.

A erosão do emprego e a transformação do desemprego de quadros num fenómeno permanente e crescente é traduzida pelos números da evolução percentual dos pedidos de emprego registado por habilitações escolares no Instituto do Emprego e da Formação Profissional (IEFP) (médio/superior) 1999 = 5,6%; 2000 = 6,2%; 2001 = 7,3%, e uma média de 22.250 diplomados passaram a constituir um stock de desempregados no último quinquénio.


Por tudo o que foi dito será oportuno recuperar algumas afirmações produzidas por Carlos Aboim Inglez no Encontro Nacional do PCP sobre os problemas dos quadros técnicos (Março/79), que já distantes no tempo, não perderam actualidade quanto à realidade social contraditória e em mutação, quanto ao sentido da sua evolução e às perspectivas do seu futuro:

1º crescimento numérico acelerado desta camada social que deixou de ser a pequena elite privilegiada que era no passado, para se transformar numa camada social de massas.

2º crescente diferenciação social interna duma camada social cujos membros têm um estatuto de classe heterogéneo: uma cúpula, um estrato de profissionais liberais e uma massa de assalariados.

Que diria o pobre Alípio Severo perante cenário tão catastrófico da sua “imperecível harmonia social”?

Existem, de facto, novas contradições nesta camada, maioritariamente oriunda da pequena e média burguesia, e o estado da sua consciência social, formada e deformada pelas quimeras de gerações de Abranhos.

Quantos boys ainda sonham “humildemente colocar-se, com um sorriso, no lugar, na fila, no cantinho que lhe marcam os que governam”; quantos foram alimentados pela vã esperança de um académico canudo ser o passaporte para uma ascendente migração classista na sociedade do trabalho precário e empregabilidade incerta..., onde o ritmo da mudança dos instrumentos de produção impõe a evolução quantitativa e qualitativa do saber a todos os trabalhadores.

Está criada, na actualidade, uma situação de ruptura entre a nova existência social dos quadros técnicos e científicos e o estádio da sua consciência. Se o ritmo da mudança dos instrumentos de produção impõe a evolução quantitativa e qualitativa do saber a todos os trabalhadores, o lastro herdado dos Abranhos retarda a materialização duma solidariedade e aliança por convergência de interesses com a classe operária.

Reprodução (autorizada) de O Militante , Nº 258 - Maio/Junho de 2002.

Este texto encontra-se em http://resistir.info

23/Mai/02