A privatização do mundo
É de supor que a natureza já existisse antes da economia moderna.
Daí o facto de a natureza por si própria ser grátis, sem
preço. Isso distingue os objectos naturais sem elaboração
humana dos
resultados da produção social, que já não
representam a natureza "em si", mas a natureza transformada pela
actividade humana. Esses "produtos", diferentemente dos objectos
naturais puros, nunca foram de livre acesso; desde sempre estavam sujeitos,
segundo determinados critérios, a um modo de distribuição
socialmente organizado. Na modernidade, é a forma da
produção de mercadorias que regula essa
distribuição no modo do mercado, segundo os critérios de
dinheiro, preço e procura (solvente). Mas é um problema antigo
que a organização da sociedade tenda a obstruir também o
livre acesso a um número crescente de recursos pré-humanos da
natureza. Essa ocupação traz, das mais diversas formas, o mesmo
nome que os produtos da actividade social, a chamada "propriedade".
Ou seja, acontece um quiproquó: outrora livres, os objectos naturais
não elaborados pelo ser humano são tratados exactamente como se
fossem os resultados da forma de organização social, e daí
submetidos às mesmas restrições.
A mais antiga ocupação dessa espécie é a da terra.
A terra em si não é naturalmente o resultado da actividade
produtiva humana. Por isso também teria de ser, em si, de livre acesso.
Quando muito, a terra já transformada, lavrada e "cultivada"
poderia estar submetida aos mecanismos sociais; e, nesse caso, teria de se
tornar propriedade daqueles indivíduos que a cultivaram. Mas, como se
sabe, não é exactamente esse o caso. Justamente a terra ainda de
todo inculta é usurpada com violência. Já na Bíblia
há a disputa entre lavradores e criadores de gado por território
(Caim e Abel) e, entre os pastores nómadas, por "pastos mais
férteis". A usurpação do solo "virgem"
é o pecado original e hereditário da
"dominação do homem sobre o homem" (Marx). As
aristocracias de todas as altas culturas agrárias repressivas se
formaram na origem por essa apropriação violenta da terra,
literalmente à clava e dardo. Contudo a propriedade nas culturas
agrárias pré-modernas nem de longe se parecia com a propriedade
privada no sentido atual. Isso significava, antes de tudo, que a propriedade
não era exclusiva ou total. A terra podia ser utilizada e cultivada
também por outros, que em troca pagavam certos tributos (a renda feudal
na forma de víveres ou serviços) aos proprietários, estes
originariamente violentos. Mas havia ainda possibilidades de uso gratuito.
Por exemplo, em muitos lugares, os camponeses tinham a permissão de
conduzir seus porcos até às terras incultas do senhor feudal,
segar ali forragens crescendo livremente ou recolher outras matérias
naturais. Diferentes possibilidades de uso livre nunca deixaram de ser
controversas, como o direito à caça e à pesca. Quando os
senhores feudais tentavam estabelecer proibições nesse sentido,
estas quase nunca eram obedecidas. Assim, o caçador e o pescador
ilegais passaram a figurar entre os heróis da cultura popular
pré-moderna.
A DITADURA DA PROPRIEDADE
A propriedade privada moderna reforçou monstruosamente a
submissão da natureza "livre" à forma da
organização social, obstruindo assim o acesso aos recursos
naturais com um rigor nunca visto. Essa intensificação da
tendência usurpadora tem sua razão no facto de a
ocupação ser efectuada agora não mais pelo acto pessoal e
imediato de violência, mas pelo imperativo económico moderno,
representando uma violência "coisificada" de segunda ordem. A
violência armada imediata manifesta-se ainda hoje na
ocupação dos recursos naturais, mas ela é já
coisificada de forma institucional na própria figura da polícia e
do Exército. A violência que sai dos canos das espingardas
modernas já não fala por si mesma; ela tornou-se mero agente do
fim em si mesmo económico. Esse deus secularizado da modernidade, o
capital como "valor que se autovaloriza" incessantemente (Marx),
não aparece, porém, apenas na figura de uma
coisificação irracional; ele é ainda muito mais ciumento
que todos os outros deuses antes dele. Por outras palavras: a economia
moderna é totalitária. Ela tem uma pretensão total sobre
o mundo natural e social. Por isso, tudo o que não está
submetido e assimilado à sua lógica própria é para
ela fundamentalmente uma espinha na garganta. E, como sua lógica
consiste única e exclusivamente na valorização permanente
do dinheiro, ela tem de odiar tudo o que não assume a forma de um
preço monetário. Não deve haver nada mais debaixo do
céu que seja gratuito e exista por natureza. A propriedade privada
moderna representa somente a forma jurídica secundária dessa
lógica totalitária. Ela é, por isso, tão
totalitária quanto esta: o uso deve ser um uso exclusivo. Isso vale
particularmente para os recursos naturais primários da terra. Sob a
ditadura da propriedade privada moderna, não é mais tolerado
nenhum uso gratuito para a satisfação das necessidades humanas,
além das oficiais: os recursos têm de servir à
valorização ou ficar em pousio. Dada a forma da propriedade
privada, mesmo a parte da terra que o próprio capital não pode de
modo nenhum usar deve ser excluída de qualquer outro uso. Essa
imposição descabida suscitou repetidas vezes o protesto social.
Na época anterior a 1848, uma experiência crucial para o jovem
Marx, amiúde enfatizada na sua biografia, foi a discussão em
torno da "lei prussiana contra o roubo de lenha", que queria proibir
os pobres de recolher gratuitamente a lenha nas florestas. O conflito sobre o
uso livre de bens naturais, sobretudo da terra, jamais cessou em toda a
história do capitalismo. Mesmo hoje, em muitos países do
Terceiro Mundo, há movimentos sociais de "ocupantes da terra"
que colocam em questão a ditadura totalitária da propriedade
privada moderna sobre o uso do solo.
No desenvolvimento do moderno sistema produtor de mercadorias, o problema
primário do acesso a recursos naturais gratuitos foi sobrepujado pelo
problema secundário do acesso a recursos "públicos",
directamente relacionados ao todo da sociedade: as chamadas infraestruturas.
Com a industrialização capitalista e a inerente
aglomeração de massas gigantescas de seres humanos
(urbanização), surgiram carências sociais, tornando
necessárias medidas que não podiam ser definidas pela lei do
mercado, mas somente pela administração social directa. Por um
lado, trata-se agora de sectores inteiramente novos, resultantes do processo de
industrialização, como o serviço público de
saúde, as instituições públicas de ensino (escolas,
universidades, etc.), as telecomunicações públicas
(correio, telefone), o abastecimento de energia e os transportes
públicos (caminho de ferro, metropolitano, etc.). Por outro lado,
também os recursos naturais antes livremente acessíveis sem
nenhuma organização social e os processos vitais humanos que se
efectuam por si mesmos tiveram de ser socialmente organizados e colocados sob a
administração pública: é o caso do abastecimento
público de água potável, da recolha pública de
lixo, dos esgotos públicos etc., chegando aos sanitários
públicos nas grandes cidades. Sob as condições do moderno
sistema produtor de mercadorias, a "administração de
coisas" pública e colectiva não pode assumir senão a
forma distorcida de um aparelho burocrático estatal. Pois a forma
moderna "Estado" representa somente o reverso, a
condição estrutural e a garantia do "privado"
capitalista; o Estado não pode, por natureza, assumir a forma de uma
"associação livre". A administração
pública de coisas permanece assim nacionalmente limitada,
burocraticamente repressiva, autoritária e ligada às leis
fetichistas da produção de mercadorias. Por isso os
serviços públicos assumem a mesma forma-dinheiro que a
produção de mercadorias para o mercado. Ainda assim não
se trata de preços de mercado, mas somente de tarifas; algumas
infra-estruturas até são oferecidas gratuitamente. O Estado
financia esses serviços e agregados de coisas somente para uma pequena
parte, por meio de tarifas cobradas dos cidadãos; no essencial, eles
são subvencionados com a taxação dos rendimentos
capitalistas (salários e lucros). Desse modo, a
administração pública de coisas permanece ligada ao
processo de valorização do capital.
A PRIVATIZAÇÃO DO PÚBLICO
Por um período de mais de cem anos, os sectores do serviço
público e da infra-estrutura social foram reconhecidos em toda parte
como o necessário suporte, amortecimento e superação de
crises do processo do mercado. Nas últimas duas décadas,
porém, impôs-se no mundo inteiro uma política que,
exactamente às avessas, resulta na privatização de todos
os recursos administrados pelo Estado e dos serviços públicos.
De modo algum essa política de privatização é
defendida apenas por partidos e governos explicitamente neoliberais; há
muito ela prepondera em todos os partidos. Isso indica que não se trata
aqui só de ideologia, mas de um problema de crise real. Seguramente,
desempenha um papel nisso o facto de a arrecadação pública
de impostos retroceder com rapidez por conta da globalização do
capital. Os Estados, as Províncias e as comunas super-endividadas em
todo o mundo tornaram-se factores de crise económica, ao invés de
poderem ser activos como factores de superação da crise. Uma vez
delapidadas as "pratas" dos sistemas socialmente administrados, as
"mãos públicas" acabam por assemelhar-se fatalmente
às massas de vítimas da velhice indigente, que nas regiões
críticas do globo vendem nos mercados de segunda mão a
mobília e até a roupa para poderem sobreviver. Porém o
problema reside ainda mais no fundo. No âmago, trata-se de uma crise do
próprio capital, que, sob as condições da terceira
revolução industrial, esbarra nos limites absolutos do processo
real de valorização. Embora ele deva expandir-se eternamente,
pela sua própria lógica, ele encontra cada vez menos
condições para tal, nas suas próprias bases. Daí
resulta um duplo acto de desespero, uma fuga para a frente: por um lado, surge
uma pressão assustadora para ocupar ainda os últimos recursos
gratuitos da natureza, por fazer até mesmo da "natureza
interna" do ser humano, da sua alma, da sua sexualidade, do seu sono o
terreno directo da valorização do capital e, com isso, da
propriedade privada. Por outro, as infraestruturas públicas de
propriedade do Estado devem ser geridas, também, por sectores do
capitalismo privado.
SOCIEDADE AUTO-CANIBALÍSTICA
Mas essa privatização total do mundo mostra definitivamente o
absurdo da modernidade; a sociedade capitalista torna-se
auto-canibalística. A base natural da sociedade é
destruída com velocidade crescente; a política de
diminuição dos custos e a terceirização a todo o
preço arruinam a base material das infraestruturas, o conjunto
organizador e, com isso, o valor de uso necessário. Há tempos
é conhecido o caso desastroso das ferrovias e, de modo geral, dos meios
de transporte, outrora públicos: quanto mais privados, tanto mais
deteriorados e mais perigosos para a comunidade. O mesmo quadro se constata
nas telecomunicações, nos correios etc. Quem hoje precisa, com
uma mudança de casa, mandar instalar um telefone novo passa por
incumprimento de prazos, confusão de competências entre as
instâncias "terceirizadas" e técnicos
pseudo-autónomos e praguejantes. O correio alemão, que se
transformou num consórcio e
global player
ansioso por sua capitalização nas Bolsas, em breve
distribuirá cartas na Califórnia ou na China; em troca, o
serviço mais simples de entrega mal continua a funcionar internamente.
Que prodígio sectores inteiros de actividade serem ajustadas a
salários baixos, as zonas de entrega de poucos carteiros dobradas e
triplicadas, e as filiais, extremamente desguarnecidas! As
estações de correio ou de caminho de ferro transformam-se em
quilómetros cintilantes de lojas estranhas à sua alçada,
enquanto a qualidade do serviço próprio decai. Quanto mais
estilizados os escritórios, tanto mais miserável o serviço.
PRIVATIZAÇÃO —>
AUMENTO DE PREÇOS
Apesar de todas as promessas, a privatização significa cedo ou
tarde não só a piora mas também o aumento drástico
de preços. Porque és pobre, tens de morrer mais cedo: com a
privatização crescente dos serviços de saúde, essa
velha sabedoria popular recebe novas honras mesmo nos países industriais
mais ricos. A política de privatização não
dá trégua nem sequer às necessidades humanas mais
elementares. Na Alemanha, as casas de banho das estações de
combóio passaram a ser recentemente controladas por uma empresa
transnacional chamada "McClean", que cobra pela
utilização de um mictório tanto como por uma hora de
estacionamento no centro da cidade. Portanto agora já se diz: se
és pobre, tens de mijar nas calças ou aliviar-te ilegalmente!
A privatização do abastecimento de água na cidade
boliviana de Cochabamba, que, por determinação do Banco Mundial,
foi vendida a uma "empresa de água" norte-americana, mostra o
que ainda nos espera. Em poucas semanas, os preços foram elevados a tal
ponto que muitas famílias tiveram de pagar até um terço
dos seus rendimentos pela água diária. Juntar água da
chuva para beber foi declarado ilegal, e ao protesto respondeu-se com o envio
de tropas. Logo também o sol não brilhará de
graça. E quando virá a privatização do ar que se
respira? O resultado é previsível: nada funcionará mais,
e ninguém poderá pagar. Nesse caso, o capitalismo terá de
fechar tanto a natureza como a sociedade humana por "escassez de
rentabilidade" e abrir uma outra.
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Filósofo alemão. O original deste artigo encontra-se em
http://www.krisis.org
("Die Privatisierung der Welt"). Tradução de
Luís Repa publicada na Folha de São Paulo de 14/Jul/02.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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