Esta guerra ao terrorismo é treta

por Michael Meacher [*]

.         Tem-se dado uma atenção desmesurada – e com muita propriedade – às razões pelas quais a Grã-Bretanha entrou na guerra contra o Iraque. Mas muito pouca atenção se tem dado ao porquê de os EUA terem ido à guerra, e isso também ilumina os motivos britânicos. A explicação convencional é que, após as Torres Gémeas terem sido atingidas, a retaliação contra as bases da Al Qaeda no Afeganistão foi um primeiro passo óbvio para o lançamento de uma guerra global contra o terrorismo. Então, e porque Saddam Hussein foi acusado pelos governos norte-americano e britânico de possuir armas de destruição maciça, a guerra podia estender-se também ao Iraque. Mas esta teoria não corresponde a todos os factos. A verdade pode ser muito mais tenebrosa.

        Agora sabemos que os planos para a criação de uma Pax Americana global foram desenhados por Dick Cheney (agora vice-presidente), Donald Rumsfeld (secretário de Defesa), Paul Wolfowitz (vice-secretário de Defesa), Jeb Bush (o irmão mais novo de George Bush) e Louis Libby (chefe de gabinete de Cheney). O documento, intitulado “Reconstruindo as defesas da América”, foi escrito em setembro de 2000 pelo entidade neoconservadora Projeto para o Novo Século Americano (PNAC, da sigla em inglês).

        O plano mostra que o gabinete de Bush tinha a intenção de tomar controlo militar da região do Golfo Pérsico, quer Saddam Hussein estivesse ou não no poder. Lá se diz que “enquanto o conflito não resolvido com o Iraque dá justificação imediata, a necessidade para uma presença militar americana substancial no Golfo transcende a questão do regime de Saddam Hussein”.

        Os planos do PNAC confirmam um documento anterior atribuído a Wolfowitz e Libby, onde se dizia que os EUA devem “desencorajar nações industrialmente desenvolvidas de questionar a nossa liderança ou mesmo aspirar a um papel regional ou global de maior relêvo”. O documento também afirma que aliados-chave como o Reino Unido são “o meio mais eficiente para os EUA exercerem uma liderança global”. Afirma, ainda, que as missões de paz “precisam mais da liderança política americana do que das Nações Unidas”. Diz mais: “Mesmo se Saddam sair de cena”, as bases americanas na Arábia Saudita e no Koweit permanecerão (…), uma vez que “o Irão pode tornar-se uma ameaça aos interesses dos EUA tão grande como o Iraque”. O documento ainda destaca a China como forte candidato a “mudança de regime”, dizendo que “é altura de se aumentar a presença de forças americanas no sudeste asiático”.

        O documento sugere a criação de “forças espaciais norte-americanas” para dominar o espaço, e o controlo total do ciberespaço para impedir “inimigos” de usar a Internet contra os EUA. Indica, ainda, que os EUA devem considerar o desenvolvimento de armas biológicas “que possam visar genotipos específicos [e] possam tirar a guerra biológica dos domínios do terror e transformá-la numa ferramenta politicamente utilizável”.

        Finalmente – escrito um ano antes de 11 de setembro – o plano aponta a Coreia do Norte, a Síria e o Irão como regimes perigosos, e diz que a sua existência justifica a criação de “um sistema de comando e controlo global”. Estes são os planos dos EUA para o domínio global. Mas, antes que possam ser descartados como agenda de fantasistas de direita, parece claro que estes planos nos dão uma explicação muito melhor daquilo que realmente aconteceu antes, durante e depois do 11 de setembro do que a tese da guerra global ao terrorismo. Isto pode ser visto de várias maneiras.

        Primeiro, está claro que as autoridades norte-americanas pouco ou nada fizeram para impedir os eventos de 11 de setembro. É conhecido que pelo menos 11 países deram aos EUA aviso prévio sobre os ataques. Dois veteranos da Mossad foram a Washington em agosto de 2001 para alertar a CIA e o FBI sobre a existência de uma célula de 11 terroristas que se estava a preparar para uma grande operação (Daily Telegraph, 16 de setembro de 2001). A lista que eles forneceram incluía o nome de quatro dos sequestradores do 11 de setembro, nenhum dos quais foi preso.

        Era conhecido já em 1996 que existiam planos para atingir alvos em Washington com aviões. Depois, em 1999, um relatório do US National Intelligence Council notou que “suicidas da Al Qaeda podiam fazer despenhar um avião cheio de explosivos sobre o Pentágono, o Quartel-General da CIA ou a Casa Branca”.

        Quinze dos sequestradores de 11 de setembro obtiveram vistos na Arábia Saudita. Michael Springman, o antigo chefe do departamento de vistos do consulado norte-americano de Jeddah, declarou que, desde 1987, a CIA concede ilicitamente vistos a candidatos não qualificados do Médio Oriente e trá-los para os EUA para serem treinados em tácticas terroristas para actuar na guerra do Afeganistão em colaboração com Ben Laden (BBC, 6 de novembro de 2001). Parece que esta operação continuou depois da guerra do Afeganistão, mas por outros motivos. Foi também divulgado que, nos anos 90, cinco dos sequestradores receberam treino em instalações militares norte-americanas de alta segurança (Newsweek, 15 de setembro de 2001).

        Indícios importantes anteriores a 11 de setembro não foram verificados. O estudante de aviação franco-marroquino Zacarias Moussaoui (de quem agora se pensa ter sido o 20º sequestrador) foi preso em agosto de 2001 após um instructor ter informado que ele mostrou um interesse suspeito em apreender a manobrar grandes aviões comerciais. Quando os agentes dos EUA souberam por agentes franceses que ele tinha ligações a islâmicos radicais, eles obtiveram um mandato para lhe revistar o computador, que continha pistas para a missão de 11 de setembro (Times, 3 de novembro de 2001). Mas essas pistas foram abandonadas pelo FBI. Um agente escreveu, um mês antes do 11 de setembro, que Moussaoui poderia estar a planear lançar um avião contra as Torres Gémeas (Newsweek, 20 de maio de 2002).

        Tudo isto torna ainda mais surpreendente – da ponto de vista da guerra ao terrorismo – que tenha havido uma reacção tão lenta ao atentado propriamente dito. Do primeiro sequestro só se suspeitou às 8h20 e o último avião sequestrado despenhou-se na Pensilvânia às 10h06. Nem um único caça foi lançado a investigar, a partir da Base Aérea de Andrews, a apenas 10 milhas de Washington, até que o terceiro avião sequestrado embatesse no Pentágono às 9h38. Porque não? Mesmo antes de 11 de setembro, já havia procedimentos padrão da autoridade aérea norte-americana (FAA) para interceptar aviões sequestrados. Entre setembro de 2000 e junho de 2001, os militares norte-americanos lançaram caças em 67 ocasiões para perseguir aviões suspeitos (AP, 13 de agosto de 2002). É um requerimento legal nos EUA que, uma vez que um avião se desvie significativamente de seu plano de vôo, caças sejam lançados para investigar.

        Será que esta inacção foi simplesmente o resultado da displicência de gente em posições chave, ou ignorante das evidências? Ou poderiam as operações de segurança aérea norte-americana ter sido deliberadamente paralisadas em 11 de setembro? Se esse é o caso, porquê, e a mando de quem? O antigo promotor criminal federal John Loftus disse: “A informação pelos serviços de inteligência europeus antes de 11 de setembro era tão extensa que já não é possível para a CIA ou para o FBI alegarem incompetência como defesa”.

        A resposta norte-americana depois do 11 de setembro não é melhor. Não houve nenhuma tentativa séria de apanhar Ben Laden. No final de setembro e princípio de outubro de 2001, os líderes dos dois partidos islâmicos paquistaneses negociaram uma extradição de Ben Laden para o Paquistão para ser julgado pelo 11 de setembro. Contudo, como o comprovam delarações reveladoras de um agente norte-americano, ao “estabelecer objetivos muito específicos e de curto prazo” os EUA arriscar-se-iam a um “colapso prematuro do esforço internacional, se, por algum acaso, o Sr. Ben Laden fosse capturado”. O chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas norte-americanas, general Myers, foi ao ponto de dizer que “o objetivo nunca foi apanhar Ben Laden” (AP, 5 de abril de 2002). Robert Wright, o agente do FBI que denunciou a inacção da sua organização, disse à ABC News (19 de dezembro de 2002) que o quartel-general do FBI não queria prisões. E, em novembro de 2001, a Força Aérea dos EUA queixou-se de que tivera os comandantes dos Taliban e da Al Qaeda à vista por mais de dez vezes nas seis semanas anteriores, mas que não puderam agir porque não receberam, a tempo, a autorização para atacar (revista Time, 13 de maio de 2002). Nenhum desses factos, todos de domínio público, é compatível com a ideia de uma guerra real e determinada ao terrorismo.

Essa lista de provas faz sentido, porém, quando confrontada com os planos do PNAC. Daí se depreende que a chamada “guerra ao terrorismo” está a ser usada principalmente como um pretexto de treta para atingir objetivos geopolíticos e estratégicos norte-americanos mais amplos. De facto, o próprio Tony Blair insinuou isso mesmo quando disse a um comité da Câmara dos Comuns: “Para dizer a verdade, não havia meio de obter consenso público para um súbito ataque ao Afeganistão se não fosse pelo 11 de setembro” (Times, 17 de julho de 2002). Da mesma forma, Rumsfeld estava tão determinado a obter um bom pretexto para atacar o Iraque, que em dez diferentes ocasiões pediu à CIA para encontrar provas ligando o Iraque ao 11 de setembro; repetidamente, a CIA voltou de mãos vazias (revista Time, 13 de maio de 2002).

De facto, o 11 de setembro ofereceu um pretexto extremamente conveniente para por em acção o plano do PNAC. Mais uma vez, existem provas claras de que os planos para uma acção militar contra Afeganistão e Iraque já estavam prontos muito antes do 11 de setembro. Um relatório preparado para o governo norte-americano (e submetido ao grupo de estudos energéticos do vice-presidente Cheney) pelo Baker Institute of Public Policy declarava, em abril de 2001, que “os EUA continuam prisioneiros do seu dilema energético. O Iraque permanece uma influência destabilizadora do […] fluxo de petróleo para os mercados internacionais a partir do Médio Oriente”. O relatório ponderou que, porque isto era um risco inaceitável para os EUA, uma “intervenção militar” era necessária (Sunday Herald, 6 de outubro de 2002).

Provas semelhantes existem com respeito ao Afeganistão. Em 18 de setembro de 2001, a BBC informou que Niaz Niak, um antigo secretário dos Negócios Estrangeiros do Paquistão, fora avisado por autoridades norte-americanas, durante um encontro em Berlim, em meados de julho de 2001, de que “uma acção militar contra o Afeganistão iria por diante em meados de outubro”. Até julho de 2001, o governo dos EUA via o regime dos Taliban como uma fonte de estabilidade na Ásia Central, que possibilitaria a construção de oleodutos de hidrocarbonetos a partir dos campos de gás e petróleo no Turquemenistão, Uzbequistão e Cazaquistão, através do Afeganistão e do Paquistão, e até ao Oceano Índico. Mas, confrontados com a recusa dos Taliban em aceitar as condições norte-americanas, os representantes dos EUA ameaçaram-nos: “Ou aceitam a nossa oferta de uma alcatifa de ouro, ou vamos enterrá-los sob uma alcatifa de bombas” (Inter Press Service, 15 de novembro de 2001).

Dados estes antecedentes, não surpreende que alguns tenham entendido o falhanço dos EUA em impedir os ataques do 11 de setembro como um meio para criar um excelente pretexto para atacar o Afeganistão numa guerra que, claramente, tinha sido planeada muito antes. Há um possível precedente para isto. Os arquivos nacionais dos EUA revelam que o presidente Roosevelt usou exactamente esta abordagem com relação a Pearl Harbor em 7 de dezembro de 1941. Aviso prévio dos ataques tinha sido recebido, mas essa informação nunca chegou à frota naval norte-americana. A consequente indignação nacional persuadiu um público relutante a unir-se à Segunda Guerra Mundial. Da mesma maneira, os planos de setembro de 2000 do PNAC afirmam que o processo para transformar os EUA na “força dominante de amanhã” poderá ser muito longo “se não houver um evento catalizador ou catastrófico – como um novo Pearl Harbor”. Os ataques de 11 de setembro permitiram aos EUA carregar no botão “Go” para uma estratégia de acordo com a agenda do PNAC, a qual, de outra maneira, teria sido politicamente impossível de implementar.

O principal motivo para essa cortina de fumo política é que os EUA e o Reino Unido estão a começar a ficar sem fornecedores seguros de petróleo. Por volta de 2010, o mundo muçulmano controlará 60% da produção mundial de petróleo e, ainda mais impoortante, 95% da restante capacidade mundial de exportação de petróleo. À medida que a procura cresce, decresce a oferta, continuamente desde os anos 60.

Esta situação leva a uma crescente dependência de fornecedores estrangeiros de petróleo tanto para os EUA como para o Reino Unido. Os EUA, que em 1990 produziram domesticamente 57% de suas necessidades energéticas, deverão limitar-se a 39% em 2010. Da mesma forma, o Reino Unido deverá confrontar-se com uma severa carência de combustíveis por volta de 2005. O governo britânico confirmou que 70% da nossa eletricidade virá do gás em 2020, e 90% desse gás será importado. Nesse contexto, deve notar-se que o Iraque tem 110 triliões de pés cúbicos das reservas de gás, para além das suas reservas petrolíferas.

Um relatório da comissão dos interesses nacionais norte-americanos de julho de 2000 salientou que a fonte mais promissora de recursos energéticos no mundo era a região do Mar Cáspio, que poderia aliviar a dependência norte-americana dos sauditas. Para diversificar as rotas a partir do Cáspio, um oleoduto sairia dali para o Oeste até ao porto turco de Ceyhan, cruzando o Azerbeijão e a Geórgia; e outro sairia para o Leste até à fronteira com a Índia, cruzando o Afeganistão e o Paquistão. Este último socorreria a debilitada central energética da Enron em Dabhol, na costa ocidental indiana, na qual a empresa enterrou 3 biliões de dólares e cuja sobrevivência económica dependia do acesso a gás barato.

Quanto ao Reino Unido, está longe de ser parte desinteressada nessa embrulhada em torno dos últimas reservas de hidrocarbonetos do planeta – e isto pode explicar em parte a participação britânica nas acções militares dos EUA. Lord Browne, presidente da BP, advertiu Washington para não repartir os recursos petrolíferos iraquianos somente entre empresas norte-americanas após a guerra (Guardian, 30 de outubro de 2002). E, quando o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico se encontrou com Khadaffi na sua tenda no deserto em agosto de 2002, afirmou-se que “o Reino Unido não quer ficar atrás de outras nações européias, que já se estão a posicionar por vantagens com relação aos contractos petrolíferos potencialmente lucrativos” com a Líbia (BBC Online, 10 de agosto de 2002).

A conclusão de toda esta análise é certamente a de que a “guerra global ao terrorismo” tem todas as marcas de um mito político propagado para pavimentar o caminho de uma agenda completamente diferente – o objetivo dos EUA de hegemonia global, construído ao redor do controlo pela força dos recursos energéticos necessários para executar o projecto. Será que a cumplicidade neste mito e uma participação menor neste projecto é de facto uma aspiração apropriada para a política externa britânica? Se fosse necessário justificar uma posição britânica mais objectiva, conduzida pelas nossas próprias metas independentes, toda esta saga deprimente certamente provê as provas necessárias para uma mudança radical de rota.

[*] Deputado, ministro britânico do Meio-Ambiente, de maio de 1997 a junho de 2003.

O original encontra-se em The Guardian , 06/Set/03. Tradução de PCO.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

15/Set/03