Mark Jones, um revolucionário

por Michael Keaney [*]

Mark Jones, com a sua filha. Mark Jones faleceu pacificamente na quarta-feira, 9 de Abril de 2003. A sua morte foi uma surpresa considerando que estava a recuperar-se de uma doença séria que o atacara em Fevereiro. Entretanto, ele não sofria e foi capaz de enviar os seus melhores votos a todos os seus amigos.

Mark era um comunista comprometido, dedicado à luta contra o capitalismo enquanto sistema, e pela criação de alguma coisa melhor. Mas o seu utopismo era casado com um realismo vivo, pelo qual ele reconhecia as possibilidades que ascendiam a partir das contradições que se verificam no interior do desenvolvimento capitalista global e, cada vez mais, os limites ecológicos deste desenvolvimento, e a herança de pilhagem e degradação que seria legada a qualquer ordem socialista que lhe sucedesse. Isto deu à sua contribuição para a luta um recorte único, e muitas vezes de uma dureza cortante.

Mark era a corporificação da imposição de Marx de criticar implacavelmente tudo o que existe. E ele fazia-o, sem pena de si próprio ou de qualquer outro. Uma vez contou-me, por exemplo, que foi "provavelmente um erro" fazer uma campanha tão dura no referendo de 1975 sobre a retirada britânica da CEE. Era porque reconhecera que a maior ameaça para a sobrevivencia do mundo era, e é, o imperialismo dos EUA, manipulado como é para alimentar um insaciável e infernal apetite pelo consumo e, consequentemente, para a exaustão dos recursos mundiais a expensas finais do próprio planeta. Isto explica o seu prolongado interesse pela economia política do petróleo, e a sua crença de que, em retrospectiva, a década de 1970 podia ser encarada como um período de profunda reestruturação do capitalismo global cujos efeitos estão agora a ser mais amplamente reconhecidos.

Com os seus inegáveis talentos e energia ilimitada, Mark poderia facilmente ter-se dedicado ao enriquecimento pessoal em termos materiais. Ele não era pobre, mas não há dúvida de que uma mentalidade mais vulgar voltada só para o dinheiro te-lo-ia premiado se tivesse seguido esse rumo. Analogamente, ele poderia muito facilmente ter perseguido a fama académica, mesmo dentro dos agora relativamente pequenos círculos de professores marxistas. Mas o seu trabalho ao fundar a Conference of Socialist Economists e o seu jornal, Capital and Class , em meados da década de 1970 não o cegou para as armadilhas da auto-gratificação do ego que tais importantes projectos apresentavam. Nisto ele partilhava muito em comum com Doug Dowd, cujo artigo de Abril de 1982, "Marxism for the few, or, let'em eat theory" condensa resumidamente a visão de Mark do marxismo académico.

Mark não endossava os excessos mais anti-teóricos de Edward Thompson, cujo ataque ao estruturalismo althusseriano então na moda foi o assunto de "The Poverty of Theory" (1978). Mas ele concordava com o objecto do ataque de Thompson, ou seja, a pretensão académica e o engrandecimento pessoal a expensas do movimento mais vasto. Abster-se dos prémios potenciais do marxismo académico deve ter parecido um rumo arriscado naquele tempo. Apesar de tudo, Paul Q. Hirst, em resposta a Thompson, refutou que o fluxo intelectual e organizacional criado pela expansão da educação superior e o desenvolvimento social e político paralelo das décadas de 1960 e 1970 houvesse "criado as condições para uma intelligentsia marxista em escala maciça". Mas Mark viu claramente, e muito mais cedo do que a maior parte, como esta intelligentsia marxista exigiria uma ligação organica com a classe operária e os novos movimentos sociais então emergentes, do contrário ficaria atrofiada.

E nisto ele estava certo. Thompson, com todos os seus erros teóricos, rejeitou a pretensão académica e morreu como havia vivido — apaixonadamente comprometido com a causa do socialismo. Hirst é agora um importante e festejado académico no campo dos estudos da globalização, mas não é claro qual a contribuição política que ele está a fazer. E de qualquer forma, o que aconteceu à "intelligentsia marxista numa escala maciça"? Poucos permaneceram marxistas. A maior parte foi levado pela corrente principal, de uma forma ou de outra, os melhores deles praticando um institucionalismo empírico, os restantes descobrindo as excitações do pós-modernismo ou, pior ainda, revertendo a uma espécie de libertarianismo juvenil, como no caso de Frank Furedi e Cia. Ao rejeitar as tentações da glória académica marxista, Mark atingiu de longe maiores elevações do intelecto enquanto manteve o seu marxismo intacto.

Mark passou uma parte da sua vida a viver e a trabalhar na União Soviética e, depois, na Rússia pós-soviética. Ele testemunhou o colapso do sistema soviético a partir de dentro, a trabalhar por algum tempo com o New Statesman enquanto passava o seu tempo em Moscovo a investigar os arquivos recém-abertos sob a política de Gorbachev da Glasnot. Foi numa feira de livros na década de 1980 que ele teve de pagar o seu compromisso com a verdade, quando publicou, pela primeira vez desde a década de 1920, escritos de Leon Trotsky. Devido a isto foi detido pelo KGB, assunto de que ele se ria anos depois. Realmente, ele desmentia toda a sua imerecida reputação de "stalinista", uma calúnia utilizada por sectários e oponentes burgueses. Mas o que o entusiasmava mais era ter lido os documentos de uma revolução, nos quais os argumentos que encolerizavam os participantes principais eram postos a nú diante dele de uma forma que negava o que disseram tantos académicos ao longo de décadas. Foi esta experiência que parcialmente informou o seu uso posterior da Internet como um instrumento de organização e de estratégia.

O colapso da União Soviética deu a Mark visões penetrantes (insights) negadas à vasta maioria do seres humanos, incluindo especialmente aqueles conselheiros americanos como Jeffrey Sachs e Larry Summers, cuja falta de perícia não os impediu de inflingir o caos à Rússia pós-soviética. Uns poucos amigos de Mark que ocuparam posições relativamente elevadas nas instituições soviéticas cometeram o suicídio, ao invés de viver para testemunhar aquilo que previram, correctamente como se verificou, que viria a ser uma catástrofe em escala inimaginável. As conquistas da era soviética foram sistematicamente destruídas em nome da libertação do povo russo (tal como na actual situação no Iraque), na louca crença de que ao destruir o Estado as instituições do capitalismo milagrosamente cresceriam e o nirvana do livre mercado seguir-se-ia.

Ao invés disso, e muito previsivelmente, verificou-se o roubo por atacado numa escala gigantesca, em que uns poucos oportunistas bem colocados aproveitaram-se da rica colheita tornada disponível pelo colapso simultâneo do Estado soviético e da conivência dos conselheiros americanos e da sua administração Yeltsin lacaia. A escala da destruição provavelmente nunca será entendida no ocidente, sujeitos como estamos a uma contínua barragem ideológica a recordar-nos das maldades de Stalin e da sua herança. Mas as experiências testemunhadas por Mark deram-lhe uma visão que muitos marxistas no ocidente não puderam ter, pelo que eles concluiram que a actividades das suas vidas foram inúteis e que deveriam fazer as pazes com a social-democracia e defender o que restava da área pública na sociedade capitalista.

Assim, Mark foi capaz de continuar a desenvolver uma perspectiva rigorosamente marxista da conjuntura e não cair na armadilha das políticas de identidade, "novas" políticas, ou as tais políticas amigas do consumidor que estavam a ser apregoadas como a resposta "progressista" da semana aqui no ocidente.

Novela de Mark Jones. A experiência directa de Mark no colapso soviético e na desintegração russa fez com que ele tivesse um amplo material para escrever vários livros. Mas muito daquilo era tão fantástico, segundo os seus editores, que ele foi incapaz de produzir o que teria sido um relato definitivo de um crime de enorme magnitude. Tivemos de esperar vários anos antes que fragmentos de evidência daquele crime tivesse sido tornados públicos, como nos trabalho de pessoas como Michael Reddaway e Dmitri Glinski, Janine Wedel e mesmo Robert Service. Mas ele chegou demasiado cedo e, assim, resolveu por tanto quanto podia de realidade na ficção, assinando a novela "Black Lightning" , publicado em 1995 por Victor Gollancz.

Outra da grandes fortalezas de Mark foi a sua recusa do sectarismo. Enquanto rejeitava qualquer noção de rendição ao capitalismo enquanto vitória final sobre a luta socialista, Mark mais cedo e mais claramente do que a maior parte viu que as lutas mutuamente destrutivas entre stalinistas e trotsquistas e quaisquer outras "posições" tendo como base a leitura "correcta" das autoridades "correctas" eram absolutamente sem sentido, ajudando apenas aqueles que estavam aparentemente contra. Ele argumentou que não importa quem teria sucedido a Lenin, ou mesmo se Lenin tivesse vivido mais 20 anos, aquilo que agora conhecemos como stalinismo teria emergido — um produto da "mentalidade de Estado guarnição", como Henry Liu o chamou, e que implicou profundamente o ocidente naqueles crimes a fim de desacreditar a possibilidade de alternativas ao capitalismo.

Durante todo o seu tempo como um activista da Internet, Mark insistiu em que "temos de nos mover para a frente", que as antigas batalhas foram muitas vezes erradas de qualquer forma e que agora elas eram mesmo mais irrelevantes do que antes. Daí a sua generosidade em relação àqueles com as mais diversas experiências anteriores, cujo comprometimento com o socialismo ultrapassa toda consideração quanto à sua adesão a qualquer seita ou autoridade. Mark preocupava-se especialmente em construir pontes entre o movimento verde e a política marxista, reconhecendo que enquanto a última tinha os recursos teóricos e estratégicos, eram os verdes que eram os mais organizados e dedicados na luta política. Na medida em que se fosse sério e sincero, Mark tratava-o com igual sinceridade. A sua impaciência era reservada para gente que desperdiçava tempo e era narcisista ao utilizar a Internet como um meio de demonstrar as suas próprias imaginadas proezas de debate ou de esperteza. No entanto, Mark podia manter relações muito cordiais com aqueles que estavam politicamente em profundo desacordo com ele.

Mark era uma fonte incansável de ideias. Esteve entre os primeiros a reconhecer o potencial da Internet, e para isso brindou-nos com várias listas de discussão com foco num objectivo particular, mas sempre destinadas à emancipação final do homem através da revolução socialista. Assim foram, as mailing lists Leninist-International, a Crashlist e a sua sucessora, a A-list. Enquanto isso, Mark participou em outros forums tais como a PEN-L e mais especialismente a Marxism list. Seus encorajamentos individuais fora da lista foram bem documentados, muitos de forma comovente como o fizeram Macdonald Stainsby e Jim Craven. Na verdade, a sugestão de Jim de que a energia de Mark permanece connosco é apropriada — não só Mark patrocinou a criação de listas de discussão na Internet como foi responsável pelo "left book club", o projecto (blueprint) para um Partido Europeu dos Trabalhadores, e muito mais que não posso recapitular aqui.

Fui feliz por ter conhecido Mark há dois anos atrás, encontrando-o na PEN-L e beneficiando dos encorajamentos fora da lista na minha investigação acerca da Grã-Bretanha na década de 1970, uma período de grande importância no entendimento do presente. Encontrámo-nos em Londres em Julho de 2001 e resolvemos trabalhar juntos no futuro. Em Outubro de 2001 Mark lançou a A-List, destinada a ser um lugar em que as conexões entre eventos locais aparentemente aleatórios e não conectados podiam ser colocados num contextos explicitamente global. Esta lista pretendia ser um complemento ao trabalho já importante e valiosa de outras listas, como a Marxism e a Leninist-International. Consciente de que não podia confiar na sua saúde indefinidamente, ele planeou passar a administração da A-List para mim, como se verificou em Fevereiro de 2002. Felizmente, entretanto, sua saúde manteve-se e ele foi um ardente participante e co-moderador até Fevereiro deste ano, quando sua saúde começou a piorar. Por esta altura estávamos em contacto telefonico regular, habitualmente uma vez por semana, além das trocas de emails fora da lista. Durante a nossa última conversação no fim de Fevereiro ele queixou-se de que havia contraído uma espécie de doenças do estomago que lhe estava a causar grande desconforto e que lhe fora administrada morfina, o que o aborrecia muito. Contudo, ainda era capaz de falar lucidamente de acontecimentos actuais e também dizia que, como tinha de administrar os seus recursos cuidadosamente, teria de retirar-se das listas e dedicar-se à recuperação e à escrita de um livro provisoriamente intitulado "Oil and imperialism" . Qualquer um que tenha conhecido bem o Mark saberá duas coisas: primeiro, que tal livro teria sido o relato definitivo daquilo que é obviamente a questão central enfrentada hoje pela planeta Terra; segundo, que ele sabia estar a correr contra o tempo e utilizou toda a sua força disponível até aos últimos minutos para acabar este trabalho. Por agora, parece que ele não teve êxito, o que apenas sublinha o sentimento de termos sido dolorosamente privados daquilo que nos legaria. Contudo, dada a vasta quantidade dos seus escritos que permanecem a flutuar no eter, há amplas pistas para narrativa que Mark estava em processo de sintetizar.

Mark deixa atrás de si uma herança incrivelmente rica, da qual somos uma parte. Como escreveu Jim Craven, a sua energia, de que tinha tanta, apenas mudou de forma. Acredito que ela resida em cada um de nós, e que não podíamos pedir nada melhor para ajudar-nos nestes tempos sombrios.

Em gratidão pela vida de Mark Jones.

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[*] Moderador de A-List .

Alguns dos escritos de Mark Jones podem ser encontrados em http://www.marxmail.org/ .

Este in memoriam encontra-se em http://resistir.info .

13/Abr/03