Linguagem privada — Vocabulário público

por Jamie Morgan [*]

Observa-se frequentemente que os economistas neoliberais falam a sua própria linguagem, altamente idiossincrática. Tal como os maçons, esta linguagem tem um núcleo privado que é incompreensível para a maioria e um vocabulário público, o qual — uma vez que retira o seu poder daquele incompreensível núcleo privado — pode efectivamente ser difícil de criticar. A resposta imediata do economista neoliberal é que a crítica é despropositada: a pessoa simplesmente não consegue/não pode entender.

Variações tecnocráticas em torno desta resposta têm sido desde há muito a arma principal nos arsenais das organizações que justificam ou simplesmente rejeitam os perigos de fluxos rápidos do capital global em busca daquela decimal extra de um lucro percentual. É também a resposta preferida do Banco Mundial e do FMI, apesar da apostasia de Joseph Stiglitz e de todas as provas em contrário em matéria de eficácia dos seus empréstimos condicionais e das políticas de governação económica. Mas que querem eles exprimir quando dizem: "Sabemos o que estamos a fazer, deixem isto connosco"?

A linguagem privada da ciência económica neoliberal baseia-se no método matemático. Tal como observou John Galbraith, a profissão de economista está organizada hierarquicamente, com a ciência económica heterodoxa na base, a ciência económica neoliberal no topo e a maior parte das formas matemáticas de ciência económica neoliberal no seu cume. Uma sondagem da American Commission on Graduate Education in Economics  revela bastante claramente que a fluência nesta linguagem privada é um passaporte para o prestígio e a promoção. Esta tendência para a matematização crescente da ciência económica significa que os aspectos do comportamento que não podem ser medidos e designados por um valor numérico são irrelevantes. Todo o comportamento económico é quantificável e pode ser expresso em termos de uns poucos princípios básicos que, por sua vez, permitem cálculos altamente complexos e análises de regressão. A relevância é portanto sobre aquilo que é apropriado para o método ao invés daquilo que é interessante acerca de algum aspecto do mundo. Isto por si só não seria um problema inultrapassável se não fosse a hipótese fundadora acerca do comportamento económico à qual é aplicado.

O neoliberalismo parte do princípio de que os homens/mulheres são estruturados para seguirem os seus próprios interesses e que os nossos auto-interesses são em última análise colectivamente positivos. Não podemos deixar de pensar em como seria diferente a visão traçada para nós por uma economia neoliberal — com as suas fórmulas e ilustrações gráficas sinistras — que tivesse partido do pressuposto de que os homens/mulheres estão estruturados para cooperar e partilhar. Infelizmente, ela segue o mesmo caminho que muitas figuras do Iluminismo primitivo, com a sua visão negativa da natureza humana e a sua visão optimista das consequências dessa natureza humana negativa em termos de competitividade. O neoliberalismo antecipa-se a Gordon Gecko — a cupidez é boa. Quando todos os homens/mulheres no mercado forem cúpidos em conjunto, uma ordem ideal emergirá espontaneamente. Neste sentido, todos os mercados são iguais. Porcos, bombas e divisas são intercambiáveis. Esta linguagem particular de quantidades mensuráveis movíveis encara a economia como um conjunto de escalas que tendem segundo a ordem natural das coisas para o equilíbrio. O máximo de cupidez possível será satisfeita dentro do limite de recursos escassos. Isto (com uma cara séria) chama-se bem-estar social óptimo. Na natureza competitiva do mercado um homem/mulher pode triunfar e acumular muito mais do que os outros com base nas suas características superiores de cupidez. Isto (ainda com uma cara séria) também se chama bem-estar social óptimo. Toda a gente tem a possibilidade de participar e é a satisfação total da cupidez e não a distribuição que conta. A cupidez competitiva é o dado. Uma vez que é inata, existe em todos os tempos e lugares. Em consequência, a economia neoliberal marginaliza a história, a geografia e as regras institucionais ou, melhor dizendo, vira o mundo da história, da geografia e das instituições de pernas para o ar.

Os lugares, os tempos e as organizações existem onde os homens/mulheres têm ideias. Existem onde reflectimos criticamente sobre a sociedade, a natureza e as nossas relações para com eles. Infelizmente, as ideias também se introduzem no modo de funcionamento dos modelos económicos neoliberais. Ideias significa que embora no passado a acção A tenha sido seguida pela acção B, amanhã pode não acontecer o mesmo. Isto torna a matemática difícil, mesmo se aquelas acções forem quantificavelmente auto-interesseiras no sentido neoliberal tradicional. Se os padrões só emergem após o acontecimento, a ciência económica neoliberal torna-se a 'ciência lúgubre' que todos sabemos ser. E o que dizer das ideias que não são facilmente submetidas a quantificação — o que dizer dos valores surgidos do horror que as estatísticas podem mostrar-nos — da pobreza, da fome e da desigualdade (que são perfeitamente compatíveis com o bem-estar social óptimo dos modelos neoliberais)? O que dizer de ideias como igualdade global, justiça, direitos humanos, direitos dos animais e consciência ambiental? Estas ideias 'distorcem' a ordem natural e o seu equilíbrio, negando-lhe o equilíbrio que o auto-interesse simples e sem entraves asseguraria. Na lógica da ciência económica neoliberal somos os nossos próprios piores inimigos, porque são as nossas boas ideias que tornam a realidade muito menos satisfatória do que a teoria.

A solução neoliberal para esta situação é simples. Ao invés de procurar a teoria que explique a realidade, dever-se-á fazer com que a realidade se conforme à teoria. É desta forma que a ciência económica neoliberal vira o mundo de cabeça para baixo. A história é para ser subjugada, os lugares homogeneizados e as instituições aplainadas. Quando Heikki Patomaki argumenta que o relatório da OCDE com a sua estrutura neoliberal não é simplesmente adequado para tratar de crises e instabilidade em mercados cambiais (FOREX), é isto que ele quer dizer. Não se trata tanto de os economistas neoliberais não verem o problema, mas sim de que o vêm invertido. Vêm-no em termos de uma teoria como a daquele director de colégio que pensava que a sua escola funcionaria muito mais eficientemente sem quaisquer estudantes. A solução neoliberal consiste em que deveríamos ter menos boas ideias. É aqui que a linguagem privada da ciência económica neoliberal se torna um vocabulário público. Ideias como a Taxa Tobin são anátema porque inacção, não intervenção e demissão são palavras-chave (watchwords) do neoliberalismo. Segundo o vocabulário público do economista neoliberal, a finalidade do Estado é precisamente servir o mais elevado objectivo de (cupidez competitiva) harmonia, mesmo que não a queiramos. O individualismo é o seu credo colectivo.

O individualismo neoliberal significa que somos livres de sermos diferentes desde que nos comportemos todos da mesma forma, de acordo com o modelo para a harmonia universal. Comportar da mesma forma significa desejar o mesmo tipo de coisas. Isto representa um incessante trabalhar para possuir e possuir para consumir, a fim de trabalhar um pouco mais a fim de possuir um pouco mais. Se nos preocuparmos com as consequências deste ciclo, se nos interrogarmos sobre se isto é tudo o que há, se escolhermos actuar colectivamente, estamos, segundo o economista neoliberal, confundindo o económico e o não económico. Trazendo valores políticos e sociais para áreas onde as decisões técnico-económicas devem reinar. Ao mesmo tempo, estaremos a ir contra o nosso próprio auto-interesse, distorcendo os processos que garantiriam a harmonia. Nós não entendemos a ciência económica, que é tarefa do economista, e deveríamos deixá-la para ele.

Para o economista neoliberal somos, portanto, tão individuais como a nossa próxima compra. Tal individualismo é a diferença entre uma vaca e uma outra vaca de uma zebra. Tal individualismo, com sua supressão de ideias, é bovino em todas as suas características. Aceitar, conformar-se, seguir. É o comportamento da manada sob qualquer outra denominação, porque ao individualismo é recusado o direito de pôr em causa o sistema que o produz. Quando emergem, tais questões permanecem do lado de fora das barreiras em Seattle e Barcelona. Elas constituem uma ameaça para a ordem tecnocrática porque trazem consigo a possibilidade de que as coisas possam ser de outro modo e de que a harmonia possa não ser verdadeiramente harmoniosa. Tal curiosidade não é tolerada e exprime, em nome do individualismo, inacção, não intervenção e demissão, organiza, actua, intervém e confronta.

A VULGATA PLANETÁRIA

A ciência económica neoliberal é a linguagem do poder. É a língua franca do Banco Mundial, do FMI, da OMC e dos países capitalistas mais avançados. Mas, e em detrimento da dissensão, o seu vocabulário público é também a linguagem dos grandes envolvimentos  (swathes)  da sociedade civil. Os cidadãos são cooptados simplesmente pela linguagem que usam. Este Verão avaliei quase 400 provas de exame de economia do comércio internacional de nível A. Respostas "correctas" incluíam asserções tais como: os sindicatos distorcem mercados e a utilização de medidas proteccionistas para indústrias nascentes pelos países mais pobres prejudica a eficiência competitiva global. A primeira é linguagem codificada para dizer que os direitos dos trabalhadores estão errados e a última para dizer que o mínimo custo é o melhor, não interessa quem suporta o custo do mínimo custo. Vencer a discussão em fóruns tais como o ATTAC e o PAE é mais difícil por causa disto, e este problema é agravado em certos sectores devido à maneira como o vocabulário neoliberal subverte a discussão.

Nos media populares dos EUA e do Reino Unido, por exemplo, as manifestações anti-capitalistas são retratadas como uma batalha dramática entre a ingenuidade juvenil e a sábia perícia e a experiência. O texto implícito é que se trata de um conflito geracional entre aqueles que aceitaram o inevitável e aqueles que não o aceitaram. O inevitável, naturalmente, é a linguagem do mundo de pernas para o ar do neoliberalismo. A linguagem básica, das forças, dos imperativos e das necessidades do mercado, face às quais só se pode aquiescer. A dissidência não é sobre visões económicas antagónicas, mas sim sobre a forma de pensar correcta e a casmurrice errada. Uma vez que a questão não é verdadeiramente encarada como um choque de ideias e sim de gerações, as atitudes de muitos jornalistas variam da condescendência ao cinismo. Em qualquer caso, a implicação é de que a socialização e a capitulação tratarão do problema de modo semelhante à forma como a contracultura dos anos Sessenta alimentou os operadores da Wall Street dos anos Oitenta.

O que tais atitudes dissimulam é que o problema não é a juventude mas a realidade da pobreza, fome, dívida e degradação ambiental e humana. Pode acontecer que os activistas (jovens e velhos) fiquem desiludidos pela amplitude do problema, sucumbam à alienação, ou fiquem perdidos pelo imperativo de terem de se alimentar e vestir. Mas isto somente vem ilustrar o poder e a desumanidade dos sistemas económicos humanos que o vocabulário público do neoliberalismo suporta. Os problemas que os críticos apontam permanecem intactos neste aspecto. A ciência económica precisa de fazer a sua própria Reforma — um Martinho Lutero capaz de traduzir a linguagem da hipocrisia e do ritual em linguagem comum.

PARA QUE SERVE O CRESCIMENTO ECONÓMICO?

No neoliberalismo, a optimização do bem-estar de Pareto refere-se a valores absolutos da produção. Apenas se preocupa com a distribuição na medida em que esta diga respeito à afectação de recursos a fim de aumentar o valor absoluto da produção total. O que é produzido e para quem é produzido não faz parte das suas preocupações. Poder-se-á pensar que, mesmo nestes termos, as instabilidades provocadas pela crescente autonomia das operações financeiras em relação à produção seriam uma preocupação fundamental para os neoliberais. Se não é o caso, é porque o neoliberalismo concebe a economia mundial como uma grande máquina que exige afinação e não re-concepção. Afinação significa pôr as pessoas a agir de modos mais previsíveis. O próprio sistema não é inerentemente instável, porque num mundo invertido demasiada intervenção constitui o mal e não a cura. É como dizer que as armas não matam pessoas, as pessoas é que matam pessoas. A pergunta fundamental que a ciência económica neoliberal não pode fazer, e da qual todas as outras perguntas jorram, é para que serve o crescimento económico. A resposta que ela não pode ouvir é que a ciência económica deveria ser tida em conta para que vivamos, mas nós não vivemos para a ciência económica.

[*] Jamie Morgan pertence ao comité editorial do Journal of Critical Realism e tem escrito numerosos artigos destinados a popularizar acontecimentos actuais e sobre a aplicação da ciência económica. Também está envolvido em investigações acerca da aplicação da Taxa Tobin, juntamente com Heikki Patomaki, e sobre questões de desenvolvimento, com Wendy Olsen. Ensina na Open University e faz parte do Anti-Capitalist Research Organization da Lancaster University.

O original deste artigo encontra-se em http://www.glovesoff.org/features/morgan_050703.html

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
Mai/03
act. 30/Set/13