Observações metodológicas para o estudo da mundialização dirigida pelo capital financeiro

por Guillermo Almeyra [*]

'Indígenas', de Diego Rivera. 1- É, infelizmente, demasiado comum, sobretudo entre os economistas, analisar a mundialização dirigida pelo capital financeiro, essencialmente como tratando-se de políticas por este impostas, mediante os seus instrumentos político-financeiros (Organização Mundial de Comércio, Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial) e da pressão dos governos dos países centrais sobre os dos dependentes, como os latino-americanos.

Tais políticas e o comportamento dos números e estatísticas macroeconómicas constituem, no entanto, a matéria principal dos estudos a realizar. Além disso, muitas vezes ao falar de Estados, fala-se na realidade dos governos, do seu aparelho político e não propriamente da relação estatal, ou seja, da interacção, acção-reacção, que existe entre a sociedade civil e a sociedade política. Exclui-se, assim, o social e o subjectivo da análise do comportamento da mundialização dirigida pelo capital financeiro

Ora bem, o capitalismo não poderia funcionar sem a dominação, sem encher as mentes dos subordinados com ideias e valores que estes aceitam e interiorizam, considerando-as próprias do sentimento comum. Sem o sentimento, tão difundido, da inexistência de alternativa para a política neoliberal, sem o fatalismo, a confusão, a ignorância das maiorias, o capital financeiro não poderia impor as suas políticas contando apenas com o apoio de um punhado de elementos servis colocados nos governos.

Antes de tudo, é então necessário analisar as contradições no interior dos Estados. Estes, sendo embora capitalistas e realizando todos uma política similar, são muito diferentes, pois são o resultado de uma relação social, profundamente marcada pelas histórias, culturas e tradições de resistência das classes dominadas locais. É o que revela tão claramente, neste próprio momento, o levantamento insurreccional dos camponeses, operários e indígenas bolivianos.

Para analisar então a força relativa das políticas do capital financeiro mundial, há que avaliar o grau de aceitação ou de resignação que estas suscitam entre as massas. Desde Seattle, cresce sem cessar em todos os continentes a massa dos que procuram uma alternativa, têm esperança e não caíram na resignação fatalista. Como reflexo disto, nos próprios governos que aplicam as políticas neoliberais, como o mexicano, ninguém se atreve a apresenta-las como uma panaceia e, pelo contrário, começam as críticas públicas às mesmas políticas, precisamente para as poder continuar a aplicar.

É certo que a imensa maioria da população mundial não se coloca ainda a possibilidade de mudanças (na Argentina, por exemplo, o menemismo e outras forças de direita obtêm metade dos votos; e entre os que se opõem a esses sectores, conta-se uma boa porção que apoiou as políticas neoliberais e sente até nostalgia dos anos em que elas não afectavam senão os trabalhadores da indústria). No entanto, abriram-se importantes brechas na dominação. E mesmo os esforços dos governos dos países industrializados para evitar o aprofundamento da crise actual, com as suas medidas proteccionistas e estaticistas, minam as próprias bases teóricas do neoliberalismo e debilitam ainda mais a dominação. Sob os efeitos combinados dos movimentos sociais de massas e das contradições entre as distintas classes governantes e seus governos, a visão totalitária do mundo (o "pensamento único", o Fim da História de F. Fukuyama) está feita em pedaços. Dado que o capitalismo é uma relação de poder entre classes em conflito, a nova visão de si mesmas e dos seus exploradores-dominadores que as classes subordinadas possam desenvolver, reduz o poder das dominantes e estabelece novas correlações de forças. Visto que a economia é uma relação entre pessoas e não entre coisas e a política é economia concentrada, as mudanças subjectivas são fundamentais para analisar tanto a economia como a política, não como registo de factos consumados, mas como tendências em desenvolvimento.

2- Ao erro comum de analisar a economia e a política sem prestar muita atenção ao que está a mudar na visão do mundo e ao grau de decisão dos que, aparentemente de forma espontânea, reagem no imediato e dão forma aos movimentos sociais, acresce o dos especialistas, governamentais ou não, que fazem projecções económicas como se o seu país estivesse numa redoma ou na Lua, sem ter em conta o contexto internacional.

Um claro exemplo disto foi dado pela equipa de economistas do então candidato a presidente do México, Vicente Fox, ao prever um crescimento anual do PIB de 7%, sem ter em conta a elevada dependência do país em relação à economia dos Estados Unidos, já em recessão nessa altura. Como não se pode admitir que ter prometido criar um milhão de postos de trabalho num ano ou aquele nível de crescimento fosse apenas cínica demagogia eleitoral ou ignorância (ninguém no seu perfeito juízo mente descaradamente se a sua mentira lhe puder cair em cima num prazo de poucos meses), temos obrigatoriamente de deduzir que o localismo provinciano desses economistas e a sua concepção atrasada das relações entre os Estados (como se estivéssemos na época da Paz de Westfália e cada Estado correspondesse a um mercado claramente estabelecido nas suas fronteiras, dentro das quais podia fazer e desfazer com instrumentos económicos próprios) levou esses professores universitários, banqueiros e empresários a cometer erros de principiantes.

3- Estamos perante um aprofundamento da recessão estadunidense e mundial e perante uma redução do intercâmbio comercial mundial. Os acontecimentos bolivianos estimularão as resistências sociais e políticas no Brasil à política neoliberal do governo, terão repercussão nos movimentos rurais da Argentina, dificultarão a imposição do ALCA, mas, sobretudo, farão que a palavra América Latina seja sinónimo de insegurança para os investidores estrangeiros. Para manter uma política neoliberal, baseada na abertura às importações e no pagamento prioritário da dívida, é fundamental um montante significativo de investimentos estrangeiros frescos. Estamos, pois, na véspera de mudanças obrigatórias nas políticas de muitos governos, ao arrepio da sua vontade e à sua cultura política. Não se pode analisar a evolução num país sem o situar no seu contexto mundial.

4- Diga-se de passagem, se a invasão do Iraque demonstrou que as transnacionais não exercem um governo mundial, que os Estados imperialistas subsistem e têm contradições entre si, que longe de desaparecer a necessidade, para o capital imperialista, de invadir e ocupar outros territórios, essa necessidade torna-se ainda mais imperiosa quando os recursos são tendencialmente escassos e os territórios em que se encontram estão na mão de Estados não controláveis — "párias" — os acontecimentos na Bolívia, tal como os piquetes na Argentina, que são uma expressão do movimento operário e das suas tradições entre os operários desempregados, demonstraram por sua vez, que não é a multidão informe e indiferenciada a protagonista, o sujeito das mudanças sociais. Os erros das concepções económicas de Toni Negri não suportam a prova dos acontecimentos. Nem a lei do valor pode ser lançada fora sem a substituir por outra teoria mais adequada, nem se pode enterrar sem mais nem menos a teoria do imperialismo, sem ficar à deriva perante a crise do capitalismo mundial. A supressão teórica do conflito de classes (que, certamente, não explica tudo) leva a uma visão subjectiva das classes dominantes e dos seus planos e possibilidades e impede de ver o capitalismo como uma relação social em mudança.

A IMPOTÊNCIA DO "QUE SE VAYAN TODOS"

5- Gramsci sintetizava a sua visão do Estado como sendo um misto de coerção e de consenso. Se o consenso se debilita e se reduz a confiança no aparelho estatal (governo, instituições, aparelhos de mediação, como os partidos e direcções sindicais) os governos poderão ser mais duros, mas tornar-se-ão mais frágeis. Joachim Hirsch [1] sublinha que o debilitamento do Estado, devido à perda de consenso no plano nacional e à subordinação ao capital financeiro internacional, no plano mundial, abre brechas no aparelho de dominação. Além disso, a retirada do governo das actividades geradoras de consenso (destruição do sistema de saúde, educativo, de aposentações e da protecção legal aos trabalhadores, etc) abre caminho à substituição do governo por ONGs ou pela auto-organização e pela autogestão. Por isso a reivindicação de autonomia é generalizada em toda a América Latina, sobretudo no mundo rural e entre os indígenas, e as experiências de auto-organização e de auto-gestão de todo o tipo estão por toda a parte na ordem do dia. Estas experiências, seja dito de passagem, são o resultado da defesa perante a crise e da resistência às políticas que a provocam e agravam e, ao mesmo tempo, lançam as bases de poderes locais embrionários e de uma construção, horizontal e da base para o topo, de novas relações estatais não piramidais, democráticas, que se apoiam na democracia directa e não na delegação da representação política. Quando John Holloway [2] encara "mudar o mundo" (não criar outro novo), sem opor ao poder capitalista, em todos os campos, nenhum embrião de contra-poder, porque isso, segundo ele, reproduziria a dominação e o alheamento, move-se no campo das abstracções. Nem o exemplo zapatista confirma estas teses (pelo contrário, a formação das Juntas de Buen Gobierno com base regional nas zonas zapatistas de Chiapas, opõem ao Estado central um poder próprio), nem o exemplo boliviano abandona a tradição, em vigor desde 1952, do desenvolvimento do duplo poder. Holloway via no "que se vayan todos" (que se vão todos) uma palavra-de-ordem revolucionária. Na realidade, esta demonstrava uma desconfiança de milhares de pessoas no establishment , muitas das quais haviam, inclusive, votado por Menem e acreditado na insustentável patranha da convertibilidade. No entanto, essa consigna era vazia e reflectia impotência pois deixava nas mãos dos repudiados a decisão de "ir-se" (embora ou não). A reivindicação boliviana de uma Assembleia Constituinte, de um governo transitório que convoque eleições gerais imediatas e as reivindicações concretas operárias e camponesas não deixam margem — como as do EZLN ou as dos caceroleros — para nenhum tipo de elucubração interpretativa ambígua. Entendem-se directamente à luz da História das lutas sociais e do marxismo.

6- Os movimentos indígenas fundem-se com os movimentos camponeses desde o México até à Argentina, atravessando todo o continente.

No México 100 mil camponeses encheram as ruas da capital, organizados pela aliança de pequenos produtores chamada 'El Campo no Aguanta Más' que defende a revogação do capítulo agropecuário do Tratado de Livre Comércio Norte-americano (NAFTA) e exige ao Estado créditos, protecção, uma política de desenvolvimento. Na realidade, o seu projecto nacionalista esboça outro país, baseado no mercado interno, nas necessidades sociais, na aliança com os pequenos produtores estadunidenses e canadianos contra as transnacionais e as empresas agroquímicas. Ainda que os dirigentes zapatistas tivessem ignorado esse movimento (acusando-o de ser dirigido por oportunistas), a força da manifestação e da organização zapatista, camponesa e indígena (a Confederação Nacional Plano de Ayala, anterior ao EZLN), obrigou-os a vir agora falar em organizar os camponeses e a responder às suas reivindicações concretas (todos os 300 mil pequenos produtores de café, arruinados pelos preços mundiais do café, são indígenas). O movimento camponês abalou o anquilosado EZLN. A constituição das cinco regiões autónomas de Chiapas deveu-se em parte a esta necessidade de o EZLN se movimentar. Se bem que o EZLN, organização militar vertical, decidisse a constituição das Juntas de Buen Gobierno , designando os que as integrariam e sobre elas mantenha o seu controlo e vigilância, estas JBG administram a justiça, exercem funções de polícia, controlam a economia e o comércio das suas zonas respectivas. São, em resumo, órgãos de poder paralelo que, além do mais, se sobrepõem à tendência étnica, essencialista, de muitos municípios zapatistas para se organizarem em torno de uma etnia dominante (separando tojolobales zapatistas de tzeltales zapatistas, como no ex-município unificado Flores Magón)

Não está claro, para as JBG e para o EZLN, se a autonomia é apenas para os municípios indígenas que coincidem com uma comunidade etnicamente homogénea e se aparenta à autarquia ou se, pelo contrário, é sinónimo de auto-organização democrática local e não exclui as relações com o resto da sociedade. Tão pouco está claro se esta autonomia é o resultado não exportável do cerco militar e de 10 anos de resistência em Chiapas ou um modelo que se oferece a todos os índios (ou zapatistas) do país. No entanto, é indubitável que as JBG expressam um inegável progresso do EZLN e a contínua fragmentação do poder estatal central.

Na Montaña, na Costa Chica do estado mexicano de Guerrero, os indígenas, sobretudo amuzgos, mas em estreita relação com os outros grupos étnicos criaram a sua própria polícia comunitária. Esta vigia, detém, condena os delinquentes e impõem-lhe penas comunitárias. Reconhece formalmente o poder do estado local, a sua justiça e a sua polícia, mas depende de assembleias, que nomeiam os polícias e os seus chefes, e não se subordina às autoridades e instituições estatais (as próprias armas pertencem à comunidade). Também ali se decidiu aplicar a autonomia, do mesmo modo que em outras 18 comunidades de Michoacán, sem definir muito bem o que se entende por autonomia, mas sabendo muito bem que esta quer dizer não ao Estado opressor ao serviço dos exploradores.

No Equador, a Confederação de Nações Indígenas do Equador (CONAIE) já derrubou dois presidentes da República (Abdala Bucaram e Jamil Mahuad), tomou efemeramente o governo em aliança com grupos militares e civis e participou no actual governo do coronel Lucio Gutiérrez através do seu partido, o Pachakutik. Esta experiência de ruptura com a sua autonomia em relação ao governo e ao Estado, acarretou-lhe uma crise interna, entre os "participacionistas" e os que privilegiam a independência da organização, de tal modo que se retirou do governo, no qual militavam mais de 200 quadros indígenas. A facilidade com que se deixaram de lado as tradições e experiências, boas más, da esquerda equatoriana, o pragmatismo que substituiu a política, as ilusões de poder mudar o aparelho estatal a partir de dentro e a falta de uma política comum clara e coerente, deu um golpe muito duro no Pachakutik e na própria CONAIE. O próprio essencialismo índio (nada com os mestiços) reapareceu em força. Mas a vida das comunidades indígenas, que controlam os municípios que delas dependem, é garantia de autonomia, de controlo sobre os dirigentes e da sua renovação. A relação entre a comunidade indígena e o resto da população, assim como entre esta e as instituições, devem ser ainda profundamente discutidas, mas a autonomia é um dado adquirido.

Também na Bolívia se põe o problema do governo e do confronto entre o poder oficial e o dos trabalhadores. E entre os quechuas cocaleros, que antes eram mineiros (ou seja, o mais avançado do continente do ponto de vista político), e os camponeses aymaras há um abismo político. Enquanto os últimos falam de Kollasullo e seguem o seu mallcu, defendendo uma república índia, os primeiros fazem política de alianças e têm um programa político e social de mudanças de estruturas a nível nacional. É ainda cedo para ver como se resolverá a luta entre os dois poderes, se com um terrível massacre e uma ditadura militar pro-imperialista, se por uma saída de transição, favorecida pela divisão nas classes dominantes bolivianas e nas próprias forças armadas, que consista na renúncia do neoliberal Gonzalo Sánchez de Lozada e no fim dos seus planos de exportar gás através do Chile – ou seja, com uma vitória popular incompleta que prepararia uma nova prova de forças, mas dividiria aymaras e quechuas, Quispe e Morales.

Há que avaliar os movimentos sociais pela sua dinâmica, e não apenas pelas posições dos seus dirigentes ou pelos seus documentos. Pela dinâmica e pelas suas mobilizações, influem na política económica e na formação da consciência política das classes subordinadas.

7- Nos nossos países não faltam, por outro lado, os gurus, que confundem mobilizações com movimentos sociais duradouros, que vêm em qualquer luta dos camponeses a revolução social (como o faz J. Petras) e que avaliam os acontecimentos em cada país pelas posições dos governos (Lula seria um "traidor" e o Brasil encaminhar-se-ia para um neoliberalismo ainda pior, ou Gutiérrez, também "traidor", seria muito mais que a CONAIE). Aos que se desiludem porque antes, contra toda a lógica, se haviam iludido, aos que crêem que os governos e não os povos, fazem a historia, acrescem os neo-dependentistas, que depositam esperanças em caudilhos, Hugo Chávez ou Néstor Kirchner ou quem quer que seja, pois poderia até ser um Evo Morales, muito mais sólido teoricamente, mas que teria de lidar com a realidade de um país muito mais pobre que a Argentina ou a Venezuela. O neo-dependentismo marcha unido a um nacionalismo ou localismo que impede de ver os problemas reais e de combater a falta de preparação política das grandes massas. Necessita-se, sem dúvida, de mais protagonismo e peso do Estado na defesa do mercado interno, mas também se necessita ainda mais de outro Estado e de outro governo do mesmo, que redistribua os recursos que existem – na Argentina, por exemplo, encarando o problema do controlo da economia rural pela oligarquia, pois sem isso não há solução financeira nem plano de emprego, nem reconstrução e defesa do território e dos recursos naturais, nem há fim da corrupção. Isso exige economistas e profissionais socialistas, integrantes dos movimentos sociais, alheios ao dogmatismo, ao sectarismo e ao radicalismo impressionista e infantil. Se, em muitos países latino-americanos, há que construir uma esquerda, para o fazer há que construir também um pensamento coerente, ligado à realidade e aos movimentos sociais, criativo nas propostas económicas e políticas.

Buenos Aires, 13/Out/2003

[*] Doutor em Ciências Políticas (Univ. París VIII), professor investigador da Universidade Autónoma Metropolitana, unidade Xochimilco, do México, professor de Política Contemporânea da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional Autónoma do México. Campo de investigação: movimentos sociais, mundialização. Tese para o III Colóquio de Economistas Políticos da América Latina.

Notas
1- Joachim Hirsch, El Estado Nacional de Competencia , UAM-X, México, 2001
2- No seu livro Cómo cambiar el mundo sin tomar el poder , Buenos Aires, Herramienta-BUAP, 2002. Ver a minha crítica El dificultoso no asalto al no cielo , Memoria, México, 2002.
Acerca de Holloway ver também John Holloway e o grito do anarquismo não consciencializado e
O renovador pensamento do sr. John Holloway, ou o discurso da renúncia definitiva à revolução .

O original encontra-se em http://www.rebelion.org/economia/031029almeyra.htm .

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

06/Nov/03