1- Saber quem somos e o que somos
Saber quem somos é também saber com quem e com quê se realiza a nossa integração na sociedade. A questão é essencial e parece simples, mas o individualismo liberal tomou de tal forma conta das mentes através dos media que as pessoas nem tomam consciência de como esta questão é importante. Politicamente o que importaria seria discutir critérios, regras, processos. Nos media isto é obscurecido, passando-se à pessoalização dos temas, fomentando a mediocridade do pensamento.
Ninguém tem que se preocupar com os seus direitos e deveres coletivos, o sucesso é sempre individual. Assim é apresentada a vida, sobretudo aos jovens: só não serão felizes os que se auto excluem por “radicalismo de esquerda”. Para serem felizes devem esquecer a solidariedade sindical e a defesa dos direitos sociais: “obstáculos à liberdade”.
Eis a teoria da mais acabada manipulação ao sabor de interesses egoístas. Porém, será saudável adaptar-se a uma civilização mentalmente doente? Tão mentalmente doente que se é marginalizado por expressar opiniões lógicas e racionais. Foi o que a lavagem cerebral fez às pessoas. Uma disfuncionalidade refletida no drama dos ataques arbitrários, levados a cabo por gente aparentemente normal, nos EUA praticamente diários e que se expandem para países europeus.
No entanto, (parafraseando Pessoa) “não sabendo bem e não querendo que a alma o saiba bem”, somos permanentes vítimas da austeridade. Se há crise aplica-se austeridade; se não há aplica-se porque pode vir a haver.
Crise, ou a sua iminência, em termos capitalistas, é quando a taxa de lucro do grande capital não cresce. Aplica-se então a austeridade que se resume ao aumento da exploração capitalista: restrição dos direitos laborais, precariedade, aumento dos juros, redução das despesas sociais do Estado. Nada disto resolve os problemas e contradições do sistema, antes os agrava.
O lucro, mais precisamente a taxa de lucro do grande capital, é uma função que deve ser sempre crescente, resultante de variáveis independentes, aquelas sobre as quais se pode atuar, como o salário e as despesas do Estado, designadamente as sociais, sendo os seus recursos canalizados o mais possível para a finança e para o grande capital privado, pela redução de impostos, benefícios, privatizações, etc. Quando assim não acontece os media não se calam com o “Estado despesista”, o “Estado boa dona de casa” e outros disparates que só fazem sentido dentro dos dogmas da “democracia liberal”.
A democracia liberal é a versão atual do fascismo macarthista – neofascismo. O parlamentarismo é tolerado desde que na alternância de partidos que seguem as políticas ditadas pela oligarquia internacional. A prisão por opiniões expressadas, só quando se tornam demasiado incómodas, preferindo-se medidas de repressão económica: precariedade, legislação laboral cerceada de direitos, impedimento de acesso a lugares de direção em empresas privadas ou serviços estatais para quem não der provas de “ativo repúdio do comunismo (marxismo) e de todas as ideias subversivas” (antiliberalismo). Algo semelhante ao que no salazarismo se era obrigado a declarar para exercer quaisquer funções no Estado.
Assim funciona a “democracia liberal”, policiada pela UE e o FMI. Os media com seus subprodutos “informativos” e de entretenimento, têm por missão transformar a perceção da realidade, promovendo a alienação. A alienação consiste na perda de consciência e de controlo sobre o valor criado, o valor-trabalho: “Trabalho alienado, significa vida alienada, ser humano alienado, ser humano desapossado” (Marx, Manuscritos de 1844). Assim a redução do salário real por forma direta ou indireta (prestações sociais, juros) aumenta o desapossamento tanto do valor criado pela força de trabalho como do próprio ser pelo condicionamento dos direitos sociais.
Enquanto o descontentamento e os protestos percorrem as nações, o dinheiro não pode faltar para uma guerra longamente preparada, no sentido de impor os critérios geopolíticos dos EUA/NATO. "Nossa lavagem cerebral para a guerra atual é semelhante à de outras guerras", escreveu o jornalista e cineasta, John Pilger, em um tuíte, "mas nunca, na minha experiência como correspondente de guerra, foi tão implacável e desprovida de jornalismo honesto como nesta".
“As reportagens alinham-se com os interesses do império centralizado nos EUA, quase da mesma maneira como se fossem meios de propaganda administrados pelo governo”. (Caitlin Johnstone) Somos bombardeados vezes sem conta com as mesmas coisas que nos alienam da nossa condição pacifica e proletária, até aderirmos ao que a imaginação dos que nos controlam arquiteta, em função dos seus interesses e nós passarmos a ser “nós” – um coletivo fictício, alienado.
2 - Os outros “nós” e a irrelevância geopolítica da UE
A dissociação de identidade, resultado da alienação, transforma-nos em “nós”. Porque há nós da austeridade e endividamento, e o “nós” das políticas definidas pela UE/NATO, cujas prioridades são os interesses oligárquicos; o “nós” UE, NATO, transnacionais. É assim que as pessoas são levadas a votarem contra os seus verdadeiros interesses.
É necessário opor-nos à guerra, à austeridade, ao neoliberalismo, porém para isto não se pode perder a noção dos seus próprios interesses e da forma como deve evoluir a sociedade a que se pertence. Os media são o instrumento que leva muitos à situação de praticamente esquizoides, indivíduos desligados da realidade, interiorizando um imaginário que lhes é alheio, fragilizados pela manipulação de ameaças de crises económicas, de pandemias, de guerras, de países que supostamente nos podem atacar, enfim de condições de vida sem segurança. Não está longe do “bom povo” do fascismo salazarista.
A vivência comum é assim de insegurança e austeridade. A CE quer que Portugal reduza 2,5 mil milhões de euros à despesa pública. A Lagarde aumenta os juros e avisa que o BCE estará muito atento a subidas de salários. A Alemanha entrou em recessão, embora Scholz garantisse que a Alemanha enfrentaria a questão energética sem recessão. A zona euro também entrou em recessão, consequência de políticas energéticas estúpidas, falhadas sanções e incapacidade de resolver uma interminável crise.
A guerra na Ucrânia, está a destruir a Europa do ocidente, a sua economia vai-se afundando sem o gás natural russo de preço acessível. Em vez de uma ideia estruturada de crescimento e progresso, o que existe é palração sobre ideias vazias de conteúdo como a “descarbonização”, economia circular, economia digital. As perspetivas de futuro são assim absolutamente nebulosas, num mundo em mudança a desligar-se do que o ocidente (o “nós”) representa.
A UE foi incapaz de questionar o que implicavam as políticas dos EUA no Médio Oriente, Jugoslávia, Líbia, agora Ucrânia. Nunca os seus povos foram esclarecidos e consultados sobre o que se estava a “comprar” para o futuro, aplicando sanções à Rússia e outros países, alinhando numa guerra sem solução militar. A UE não passa de joguete dessas estratégias de domínio global. O mais espantoso é que os seus líderes sentem-se bem assim.
“As iniciativas dos líderes europeus são tão anti-europeias e anti-nacionais que mais parecem cônsules honorários dos Estados Unidos do que qualquer outra coisa” “as ondas de sanções, são apenas gesticulações bastante caóticas devido ao colapso do projeto ocidental inicial. [1]
A insanidade e a irresponsabilidade parece ter tomado conta dos dirigentes da UE. Borrell, chefe da diplomacia da UE, exemplo de irrelevância e nulidade, diz: "Este não é o momento para conversas diplomáticas sobre a paz. É o momento de apoiar militarmente a guerra”. "A única coisa que poderia ser chamada de plano de paz é a proposta de Zelensky”. Não satisfeito com isto, quer também sancionar terceiros países que não cumprem (!) as sanções aplicadas à Rússia, mesmo a Índia! O problema é que a Índia, os BRICS, os países da OCS, etc, não precisam da UE – a UE precisaria deles numa base de cooperação igualitária. Claro que isto não encaixa em mentalidades formatadas no neocolonialismo e imperialismo.
A UE não tem lideres capazes, está totalmente enfeudada aos neocons de Washington, e como se vê não querem outra coisa, embora os EUA enfrentem um endividamento insustentável, e o dólar a ser desligado do comércio mundial. Todos os meses uma dezena de milhões de dólares/euros ou mais são destinados à Ucrânia, um Estado fictício, sem meios económicos e financeiros, cuja existência atual se destina apenas a fazer o que foi há muito decidido em Washington.
Perante as crises o patusco Borrell diz que a UE planeia gastar em despesas militares 70 mil milhões de euros nos próximos três anos. Stoltenberg diz que é preciso apoiar a Ucrânia e cumprir novas e mais ambiciosas metas (?!) os países da NATO devem gastar pelo menos 2% do PIB em despesas militares.” A von der Leyen quer fortalecer o confronto com a China (!). Sholtz, esquecendo-se do que o governo alemão garantia arrogantemente há uns anos (Bachar - Al-Asssad não duraria seis meses) garante que “Já neste ano, poderemos tornar irreversível a derrota do agressor”. A Alemanha manterá o apoio a Kiev “pelo tempo que for necessário.” Porém a maioria dos cidadãos alemães, 64% segundo uma sondagem, opõe-se ao fornecimento de caças modernos para a Ucrânia e Scholz é vaiado num evento do SPD em Falkensee. [2]
Já o Presidente croata considera a liderança atual da UE a mais incompetente da história. "A Croácia não fez muito progresso nos últimos 10 anos como membro da UE e é hora de parar de idealizar e idolatrar a UE". “Os mecanismos da UE não são democráticos: a paz e a guerra são decididas por pessoas que não são eleitas e não pedem a opinião das nações".[3] Na realidade assim é.
3 - Outra guerra do dólar e o fim do mundo unipolar
A guerra da Ucrânia, diz Oleg Nesterenko, é a terceira guerra do dólar. Não se trata de proteger a Ucrânia – para isso bastaria terem implementado os acordos de Minsk – trata-se de antagonizar Moscovo no território da Ucrânia, porque não podem fazer guerra contra a Rússia diretamente. É uma guerra híbrida e por procuração contra a Rússia.[1]
Tresloucados exortam os países europeus a "correr riscos" para derrotar Moscovo – e não ter medo. Um jornalista polaco indigna-se com o australiano Malcolm Davies (ex-funcionário do Ministério da Defesa), que afirma que os mísseis nucleares táticos russos não são assustadores e apenas os covardes têm medo deles. O mesmo vale para a perspetiva de uma guerra nuclear, que "existe", mas "não deve deter o ocidente". Nada dizendo sobre as perdas humanas que a Ucrânia e a Polónia, sofreriam. [4]
Comentadores/propagandistas, podem exibir triunfalismo, mas o resto do mundo tira as suas conclusões, ao olhar para as dívidas dos EUA, as fragilidades do dólar, as crises económicas e sociais e um poder militar ineficiente, derrotado no Afeganistão, na Síria, agora na Ucrânia, que espalhou o caos no Iraque, na Líbia, em África. A guerra na Ucrânia abriu oportunidades para os demais países não serem colocados na mesma situação.
O império acumula derrotas, mas quer submeter militarmente a Rússia e se necessário também a China. Vale a pena refletir no significado de acontecimentos recentes, efetivas derrotas militares e geopolíticas:
A guerra na Ucrânia, evidenciou os limites do império e traçou um rumo diferente para o mundo, em que a Rússia e a China assumem protagonismo em iniciativas económicas e políticas (Cinturão e Rota da China, Organização de Cooperação de Shangai, União Económica Euroasiática, BRICS) e aceleram a criação de um sistema de pagamentos comum, desligando-se do dólar e aumentando a cooperação económica.
O ocidente – “nós” – afunda-se económica, social e politicamente. As “revoluções coloridas” à custa de milhões de dólares estão esgotadas. O mundo unipolar dominado pelos EUA conhece o seu fim. Para o comum das pessoas isto nada tem de particularmente mau, dado que são também vítimas desse sistema, podendo os povos recuperar a sua soberania e decidirem o seu destino sem o policiamento imperialista e a lavagem cerebral dos media ao seu serviço.