A senilidade do capitalismo
Entrevista ao economista egípcio Samir Amin
por Pedro de Oliveira
[*]
Samir Amin é um dos mais prestigiados pensadores marxistas da
atualidade. Intelectual e economista egípcio, diretor do Fórum
do Terceiro Mundo em Dakar (Senegal) e do Fórum Mundial das
Alternativas, tem suas teses nos campos da teoria do desenvolvimento
econômico, história, sociologia, cultura e ciências sociais
em estudo e debate por todo o mundo.
Amin expressa uma crítica fundamentada à
globalização neoliberal. Defende que se contraponha à
utopia reacionária da globalização neoliberal o projeto de
um sistema mundial policêntrico. Afirma que as políticas
neoliberais fracassaram tanto no terreno social quanto econômico. As
políticas neoliberais, identificadas com o seu projeto de
globalização, estimularam a criação de blocos
regionais sob a égide do grande capital financeiro. Essa prática
tem demonstrado que os problemas dos povos, em vez de se resolverem, agravam-se
porque as políticas neoliberais fomentam o divisionismo e ampliam
as divergências entre os países periféricos.
Por outro lado, essa estratégia contribuiu para tornar mais evidente a
necessidade de uma globalização da unidade, da solidariedade .
As obras de Samir Amin estão traduzidas em muitos idiomas. Dentre elas
destacam-se:
O desenvolvimento desigual: ensaio sobre as formações sociais do
capitalismo periférico; O Intercambio Desigual e a
Lei do Valor; A acumulação em escala mundial;
Classes e nações no materialismo histórico.
Esta entrevista foi realizada em fevereiro de 2002, durante o 2
°
Fórum Social Mundial em Porto Alegre (RS), pela revista
Príncipios.
Manteve-se o tom coloquial a fim de não prejudicar a autenticidade do
discurso de Samir Amin, um intelectual revolucionário habituado a
expressar conceitos e idéias profundos em linguagem muito simples.
O neoliberalismo a atual fase do capitalismo
Samir Amin
O capitalismo entrou em uma nova fase do seu desenvolvimento e o
imperialismo (o estado supremo do capitalismo) também. O caráter
permanente do capitalismo desde as suas origens e em sua expansão
mundial é dividido em fases sucessivas, com suas características
próprias. Esse processo inclui as relações entre o
conteúdo universal e a periferia, com suas funções
específicas em cada uma das etapas do desenvolvimento capitalista. Em
todas as fases anteriores dos imperialismos (pois o imperialismo sempre esteve
no plural) havia conflitos violentos que ocuparam, em grande medida, todo o
cenário histórico.
Atualmente há algo novo: há um
imperialismo coletivo
dos EUA, da Europa e do Japão. Esse processo se dá de
tal forma que no entanto nem o capital nem a burguesia se tornam
transnacionais, pois o capital transnacional e a burguesia transnacional sempre
tiveram raízes em um país do centro. Não há nem
mesmo um capital transnacional europeu há um capital
transnacional britânico, francês, alemão, mas não
europeu. E, no entanto, há suficientes interesses comuns para governar
o mundo, no conjunto do sistema mundial, a tal ponto suas
contradições e seus conflitos se apresentam como
secundários.
Defendo a tese de que entramos numa fase de um
imperialismo coletivo
. E por que existe esse
imperialismo coletivo
? A hipótese que levanto para provocar a discussão é a
seguinte: até há uns 30 anos, o grau de
centralização do capital era tamanho que uma grande empresa, para
se firmar como tal, deveria ser capaz de levar vantagem sobre a
concorrência oligopólica. Não estou falando da
concorrência que consta nos manuais do capitalismo imaginário e do
discurso dos líderes, mas num grande mercado nacional quer seja o
mercado dos EUA, o maior, ou então os mercados da Alemanha, da
França, da Grã-Bretanha, talvez até do Mercado Comum
Europeu. O tamanho do mercado para o qual as grandes empresas devem-se
direcionar para entrar no jogo é um mercado de centenas de
milhões de compradores solventes potenciais. Seja isso para uma nova
marca de carro ou de outra mercadoria, com exceção dos produtos
de consumo mais banais, mais comuns. E para que essas empresas consegam
impor-se num mercado desse tamanho passam por uma espécie de
torneio. Primeiro há o torneio nacional, do
qual sai um vencedor, que irá enfrentar o mercado internacional.
O capitalismo procedeu dessa forma durante séculos, até há
uns 30 ou 40 anos. Agora há uma fonte de informações
ditadas pelas escolas norte-americanas. É preciso, de vez em quando,
verificar o que preconizar para a gestão dos negócios
não para se deixar impressionar pela inteligência ou pela
profundidade da análise, mas pelo tipo de raciocínio e de
informação que desenvolvem. E o que se descobriu? Uma grande
empresa deve ganhar a batalha num mercado constituído de n
compradores eventuais: mil milhões mais do que a
população dos EUA e da Europa somadas. São todos juntos
que participam do Mercado Mundial. Dito de outra forma, a
multiplicação da centralização do capital deu um
salto qualitativo e o primeiro torneio o das
eliminatórias nacionais não existe mais.
Agora tudo acontece pela Internet. As grandes empresas que surgem com novos
produtos lançam-se diretamente no mercado mundial pela Internet.
Há a consciência de uma guerra de negócios. Assim, sabe-se
que a tarefa do capital e da burguesia transnacionais, agora, é
administrar coletivamente esse Mercado Mundial, o que não os impede de
se destruírem entre si. Mas é a regra do capitalismo, seja no
mercado nacional ou em qualquer outro mercado. Essa é a novidade.
Vivemos sob esse
imperialismo coletivo
.
A senilidade do capitalismo e a nova direita
O que chamamos de uma nova direita compreende os social-democratas e os
socialistas que se formaram com o neoliberalismo e a atual
globalização. Defino essa nova direita como a
adesão coletiva ao Mercado Mundial, regida por dois princípios: o
neoliberalismo e o imperialismo.
Como se pode gerir coletivamente esse Mercado Mundial? Nessa questão
surgem dois aspectos: o caráter senil do capitalismo e a necessidade de
gerir o Mercado Mundial com uma violência inédita e cada vez maior
devido à característica senil do imperialismo coletivo.
Primeiramente, analisemos esse sistema, senilizado. Em torno disso surgiram
estudos, há uns 30 anos, a respeito do capitalismo que apresentava
características novas, e tardias. Foram feitas boas análises,
por exemplo, a respeito da crítica à globalização
atual, ou a leitura crítica da atual revolução
científica e tecnológica.
Há também um discurso dominante, do poder, a respeito da
revolução tecnológica, que se proporia a resolver todos os
problemas da humanidade, etc. Essa revolução tecnológica
decompõe de forma atual a organização do trabalho. Ela
não aboliu as classes, mas decompôs as formas internas da
organização das classes e as recompõe. Estamos num
período impreciso, de onde decorre a fraqueza, porque as classes
decompostas ainda não foram recompostas. Portanto, é um momento
favorável a uma ofensiva do capital. Houve o financiamento (etc) com
várias nuances. Acrescento as características de senilidade,
principalmente em dois níveis mais importantes. Um relaciona-se a essa
revolução científica e tecnológica, pois todas as
revoluções científicas e tecnológicas internas,
desde a primeira Revolução Industrial e Têxtil, a
construção de estradas de ferro, o petróleo, o
automóvel, o avião, a eletricidade, tudo deslocava o trabalho
direto e indireto da produção e da média da
produção, o que significa que tudo reduzia o emprego a uma
posição relativa à produção final, mas
exigia maior relação informativa e do emprego no setor forte, o
que dava ao capital um meio de tomar consciência da realidade.
O capital é a propriedade do capital , e a propriedade dos meios de
produção segue cada etapa da Revolução Industrial e
têxtil. O controle tornava-se cada vez mais forte e definido pelos
pedidos desse sistema de produção. A atual
revolução tecnológica e científica tem uma natureza
nova, por se apoiar em dois ramos novos: a informática e a
genética. As duas permitem um aumento gigantesco da produtividade.
Deve-se examinar essa revolução com todos os perigos que
comporta, pois suscita uma questão: produzir o quê? para fazer o
quê? Não podemos comemorar essa característica nova, que
levou a uma fase com um grau de conhecimento científico, que permitiria
estabelecer outras relações sociais, desenvolver valores e
riquezas, que permitiria pelo menos resolver todos os problemas materiais da
humanidade de uma forma bastante conveniente. Não é o caso,
porque permanecemos nas relações da produção
capitalista, o que, em princípio, leva a perguntar quem é o dono
desses meios. Mas o capital vale menos. Aquele que controla para ter o
controle de tudo significa pouca coisa, pois pode ser um novo software, o que
significa que entramos na seriedade e na duração da crise.
O desemprego está se alastrando. O trabalho direto não é
deslocado para um trabalho indireto, mas para o desemprego. Ou seja, o
capitalismo, como um sistema em expansão da
exploração, é claro se expande de forma que seja
aí que a capacidade de produção se desenvolva.
É o primeiro ponto da senilidade.
Eles trabalham como se toda a revolução industrial tivesse
ocorrido num mundo ideal, sem classes. O mundo poderia trabalhar como num
manual, mas não é o que acontece.
A segunda característica da senilidade
: em todos os Estados considerados inferiores os imperialistas eram
agressivos, numa posição de conquistadores, e o capital
arrebanhado era exportado para fazer coisas que não fazia nos
países de origem: lançava as estruturas do centro para a
periferia. etc. Vieram construir estradas de ferro no Brasil, portos
marítimos etc. Exportar para lançar a estrutura material da
exploração do capitalismo-imperialismo. Se observarmos como
funciona o sistema imperialista de hoje, verificaremos que é uma
caricatura. O centro de tudo os EUA não exporta capitais,
só importa. É o único país do mundo que vive muito
acima de suas capacidades o que leva à definição de
parasita, de um indivíduo senil , que vive graças à
pensão que recebe do trabalho dos outros. Perante tamanha
exploração ninguém reclama. É a
segunda marca da senilidade
. Como há um
imperialismo coletivo
, os outros parceiros o alimentam caso dos europeus e dos japoneses.
Com essa sistemática, cada país paga para manter esse
cadáver ambulante.
Terceira característica de senilidade
: no nível ideológico, a burguesia, a cultura burguesa é
portadora dos valores universais de conquista, valores universais terrivelmente
corrosivos da relação de exploração, a
relação de classes, de trabalho, baseada na cultura das Luzes,
com seu racionalismo. O terceiro aspecto dessa senilidade é o abandono
dessa cultura universal. Se mantivermos a ideologia dominante, o discurso
dominante de hoje, teremos uma fonte norte-americana, fabricada pelos
norte-americanos. É uma ideologia pobre, não é
universalista, é uma mistura de comunidade, de especificidade, de
não sei mais o quê. O capitalismo sempre exerceu a prática
política fragmentada, mas não ousou criar uma
legislação ideológica e cultural para colonizar, para
senilizar, para universalizar a cultura. Colonizar, na verdade, é
explorar por explorar, mas a legislação existe aí para
nada.
Estamos sob essa ideologia, que eu classificaria de magra, de uma magreza
terrível, com um discurso vazio a respeito da adversidade, da
especificidade religiosa, cultural etc, um traço incrível, um
substituto dos valores universais, com um empobrecimento da democracia, que
chegou ao nível de palhaçada com as eleições dos
norte-americanos.
Quarto aspecto da senilidade
: nós, que sofremos tudo isso, parecemos uma excrescência da
própria natureza, porque eles acham que somos diferentes porque somos
muçulmanos, hindus, negros, porque somos não sei o quê. Ou
seja, é o abandono da referência universalista o quarto elemento
da senilidade. E foi Pablo Casanova quem percebeu isso primeiro, há
alguns anos, levando-nos a refletir a respeito de seu estudo da nítida
transformação do tipo de ser que é o burguês. Mas
as classes dominantes, na história do capitalismo, quer seja o
burguês empreendedor, industrial, da Provence, da Alemanha, da Inglaterra
ou da velha aristocracia luso-brasileira do Nordeste, o conjunto dessas classes
constituem as classes exploradoras, as classes dominantes, claro, mas elas
tinham um quadro de referência, que na ideologia burguesa se chamava de
direito burguês, de Estado de Direito. Eles tinham também uma
hegemonia cultural, que proporcionava uma espécie de legitimidade ao seu
poder. Eram ladrões, usurpadores, concordo, mas não tinham a
ousadia observada junto a todas as classes dirigentes dos EUA, do
México, de qualquer país da Europa ou da África. A
burguesia sempre teve seu domínio na política, com seus bandidos,
mas dominava os acontecimentos e, eventualmente, punia. Mas, agora, é o
que se chama de degradação da democracia, de escândalo
permanente. Não estou falando apenas do pequeno escândalo, da
pequena corrupção de ordem política, mas, do comportamento
mafioso, sem respeito pelo Estado de Direito. Isso vem dos grandes
capitalistas. Provavelmente, espero, vão estourar em alguns dias os
escândalos dos grandes banqueiros, dos grandes financistas. E o
presidente dos EUA está incluído. Bush está envolvido na
trapaça que as classes médias detectaram. É ótimo.
Mas é também o caso da máfia na Rússia. A
burguesia americana tornou-se mafiosa, isso generalizou-se. Quando se examinam
até mesmo suas teses de classes dirigentes, atualmente, em
relação às gerações anteriores da burguesia,
pode-se verificar a sua pobreza, com o abandono das referências e isso
quer dizer também que é uma crise hereditária, que passa
de uma geração a outra. São bandidos, como os da
Máfia, de forma que o seu momento de glória desapareceu.
Portanto, o que pode esse capitalismo senil oferecer ao mundo? Vocês
percebem o caso de Tony Blair, que abriu a Grã-Bretanha à
concorrência a tal ponto que agora há firmas coreanas
que se instalaram na Escócia, porque encontram ali um mercado melhor do
que na Coréia. Isso significa que a social-democracia, que remonta
à aristocracia de ontem, defende uma classe operária num quadro
imperialista. É aí que entram os defensores da aristocracia
operária britânica. E como gerir as periferias industrializadas,
como no Brasil, em Duque de Caxias (RJ), por exemplo? O que o capitalismo
tenta fazer é simplesmente subalternizar a indústria, por meio de
uma política que não é qualificada, pois o discurso
é legitimador de uma abertura à concorrência, de
proteção do monopólio pelo reforço da propriedade
intelectual e industrial, etc. E é assim, pela
subalternização completa das indústrias da periferia.
Portanto, quanto mais morta for a região, mais marginalizada, isto
é, não tem mais a função de se integrar, não
tem mais utilidade para o sistema de exploração capitalista, o
que significa que o sistema capitalista não pode mais atender nem
falo das necessidades, mas da expectativa a enorme massa de pessoas.
É por esse motivo que passaram a usar, cada vez mais, os meios
violentos. Mas essa também é uma característica de
senilidade do sistema, que passa a produzir, seguindo sua lógica
interna, de forma massificada, relativizando, isto é, tendo uma
hegemonia política suficiente para as coisas se reproduzam por si mesmas
e, assim, prolifera cada vez mais a violência. Quem é o
responsável por essa reviravolta? O candidato de direito é os
EUA, pois desde 1945 a vantagem comparativa absoluta se acentuou em
relação a todos os outros, não militarmente, não
tomando como referência a tradição militar dos
exércitos europeus mas numa nova tradição de como
matar, de como massacrar. E eles são eficientes nisso. Portanto,
estão na liderança da violência, do imperialismo coletivo.
Quando se examinam as séries de Guerras como a do Golfo e outras.
verifica-se que são guerras sem fim, que são guerras para
instalar uma relação de força contra os povos, com a
escolha de planos estratégicos, de controle militar. Eles não
bombardearam a França ou o Canadá, mas utilizam de uma maneira
diferente e mais ampla os meios policiais mesmo entre eles
recorrendo ao novo macartismo. A novidade no discurso de Bush e dos outros,
ultimamente, é que acabaram convencendo os cidadãos
norte-americanos de que os terroristas estão entre eles. Quem se
manifestasse contrariamente aos neoliberais, às economias mundiais,
seria um terrorista. Acabou se instalando uma super-direita, cujo programa
é demagógico, próprio de uma super-direita, e seus alvos
principais são o aborto, os homossexuais e não sei mais o
quê. E o resto pode ser bombardeado, pois o que importa são os
aspectos de ordem moral. E, assim, os EUA adquiriram uma força enorme
com essa superdireita, que é a base policial do novo macartismo. Quando
se toma como referência um país como a Itália, onde sobe ao
poder um primeiro ministro como Berlusconi, dizem que é
necessário tomar medidas mais rígidas, por causa do terrorismo.
Bem, esse é o plano, a estratégia, a lógica do
funcionamento.
Com a necessidade de o sistema aplicar a violência não há o
perigo de que se instale algum tipo de neofascismo?
Samir Amin
Talvez, não sei, depende da luta. Apesar de estar preocupado eu
não sou um especialista na perspectiva da cultura não
creio que mesmo nos EUA, com todas as limitações deles, se
chegue a esse ponto. Quanto à Europa, sou mais otimista, pois há
tradições político-culturais do partido, da esquerda, que
não permitiriam que as coisas resvalassem assim.
A democracia quase se torna uma piada com as eleições, e pode
gerar uma ditadura odiosa, que as pessoas receberiam com prazer, pensando:
vamos massacrar. Mas, ao mesmo tempo, essa democracia da
tradição radical inscreve-se totalmente no neoliberalismo. O
resultado: a Argentina de hoje. Qual é a saída? Há
duas: uma ruim e outra boa. A ruim é o restabelecimento de uma ditadura
violenta, para chegar à mesma coisa: ao neoliberalismo. Na verdade,
é o que os americanos e os europeus querem. E, provavelmente, é
o que quer a classe dirigente argentina, seja ela ex-peronista ou ex-radical.
Percebe-se, assim, que todos os discursos sobre o mercado, sobre a democracia,
podem levar a uma ditadura, não necessariamente militar, mas policial.
Essa é uma saída possível. A segunda saída,
à esquerda, passaria pela convergência muito ampla de
forças políticas e sociais, englobando as classes populares
o principal setor e as classes médias usadas pelo
neoliberalismo. Elas poderiam impor a democracia, com uma
conotação social não diria socialista. Ou seja,
com a redistribuição, a retomada da produção, com a
proteção ao mercado interno, aspectos necessários na
Argentina. Isso seria remar contra a maré, porque as forças
políticas argentinas foram tão massacradas e assassinadas pela
ditadura, que para as forças democráticas que emergiram dela
não será fácil construir um futuro diferente, humanizado.
Não digo que seja impossível. É difícil, e desejo
que consigam. Isso significa que chegamos a um ponto em que a democracia
burguesa, sem conflitos sociais, ou se torna social com o socialismo
, atendendo às necessidades reais das pessoas, de forma objetiva,
o que não significa que será construída em dois tempos
mas há gestões burguesas possíveis ou, de
outra forma, será construída pela violência.
Talvez fosse bom destacar a cumplicidade europeia.
Samir Amin
Sim, até agora é um fato, e se acentuará se o projeto
europeu for tomado ao pé da letra, pois as burguesias européias
vivem desse projeto de construir a grande Europa, a maior potência
econômica, sobre uma base de tradição democrática,
etc e tal. Eu uso o termo retraimento do projeto europeu. Atualmente, eu
chamo o projeto europeu de vôo europeu com um projeto americano.
Não existe mais distinção, seja no nível
econômico, com o controle de todas as instituições
econômicas, e agora o principal é o Mercado Comum Europeu. Eu
chamo o Banco Mundial de Ministério da Propaganda, pois se encarrega de
fazer discursos do tipo: vamos cuidar dos pobres, da pobreza, da
saúde. O fomentador, como não administra a
relação dólar, euro, marco e iene, é uma autoridade
monetária colonial exercida sobre os outros. O outro fato é o
Clube de Capital Transnacional, com um único Estado por trás: os
EUA. A gestão econômica agrada aos europeus, como vimos no
episódio do Comitê Europeu, que convocou os fundos europeus, e
associou-se aos americanos para pressionar o Terceiro Mundo. E agiu de forma
européia. Os governos europeus, incluindo-se aí os governos
socialistas, preocupam-se com a política da gestão
econômica, sob o comando americano, o que é uma
posição que pode lhes proporcionar um capital transnacional
europeu. No domínio político-comunitário temos a OTAN,
que se tornou a expressão da comunidade internacional. E o que é
a OTAN? É uma aliança assimétrica de governo. Não
se concebe a OTAN intervindo sem a bênção americana.
É inconcebível! No entanto, aceita-se o pacto. Será
durável? Eu, que sou otimista, acho que não. Não porque
o capital transnacional europeu entre em conflito com o americano. Essa
é uma ilusão, mas uma ilusão alimentada pelo nacionalismo
europeu, que quer fazer valer o euro e a futura força armada
européia. E a diferença entre o euro e o dólar é a
fragilidade do projeto europeu. Atrás do dólar há um
Estado: o Estado americano. Há um Tesouro, que é o Tesouro
americano. Há um presidente, que é o presidente dos EUA, que
toma as decisões. E o que há por trás do euro? Um
conglomerado de banqueiros irresponsáveis, mesmo perante seus
próprios governantes, mesmo diante do governo europeu, que não
existe. Portanto, não é nada. Parece piada. Mesmo as pessoas
de esquerda da Europa, mais precisamente da França, defenderam
idéias européias e não francesas. É claro que os
europeus podem constituir-se numa força militar comum européia,
pois eles têm a tradição militar, mas não é
preciso aprender o francês ou o alemão quando se entra numa
guerra. Nisso, eles podem ser melhores do que os americanos e fabricar uma
força militar européia. Mas a questão não é
essa. A quem obedeceria esse exercito europeu? Um general pode ser
francês ou alemão, pois eles têm uma boa
tradição, mas não é esse o problema, e sim o
comando político: o vôo europeu dos americanos. Na minha
opinião, uma mudança não pode ocorrer a partir de um credo
ingênuo e, infelizmente, ele se manifesta até na esquerda na
Europa. O capital transnacional europeu tem seus interesses próprios.
Eles têm interesses comuns com o capital transnacional americano e sabem
disso. Eu havia dado o exemplo de Tony Blair, que fez de sua aristocracia
operária o que antes haviam feito com os hindus. O francês
não caminha com os americanos na mídia, reivindica a
exceção cultural, assumindo interesses intelectuais que
não entram em contradição frontal com o capital. Mas a
Europa não é só o capital europeu. Na minha
opinião, o sucesso do Attac como movimento social assinala a
diferença. O partido socialista e o governo socialista fazem uma
política neoliberal hegemonista, em sentido único, e neste
momento em que o partido comunista aceita o governo socialista e mesmo se
teoricamente, na retórica, há alguma reticência verbal, ele
está no governo, aceitando a mesma política neoliberal
hegemônica americana. Attac atua politicamente fora do partido de
esquerda, das forças da esquerda e, em alguns meses, recebeu o apoio de
milhões de militantes reais, mais do que os do partido comunista ou de
outro partido qualquer, a tal ponto que são os outros que lhe vão
fazer a corte, com todo o perigo que isso comporta. É só um
exemplo, pois sabemos que eles não farão uma
revolução. Mas nós sabemos que na Europa há um
potencial de rejeição real ao neoliberalismo americano. Na minha
opinião, vai acontecer algo. Como e quando, não sei. A priori
não quero dizer que serão os partidos comunistas que irão
se regenerar e salvar a sociedade, ou se serão os outros. Não
quero dizer nada nessa linha, porque não tenho uma bola de cristal, mas
talvez nem um lado nem o outro faça nada, o que seria uma
catástrofe. E isso pode acontecer na nossa história, mas acho
que há um potencial real na Europa, que conserva a esperança.
Qual é o papel da China?
Samir Amin
Faz um ano que não disponho de muita informação nova a
respeito da China. Li um artigo, em várias línguas, com um ponto
de interrogação a respeito do socialismo de mercado,
que é a expressão oficial e as alternativas não são
finais, mas são como etapas ou uma transição. Li a
colocação das condições que poderiam ser
aceitáveis ou não uma solução definitiva, uma
última etapa como o momento atual, com a condição de que o
socialismo de mercado seja uma combinação da
produção capitalista e de regulamentação social
não socialista, social e natural, isto é, assegurar
pelo menos o direito da regulamentação da
distribuição da renda em grande escala, com
1. Uma redistribuição das redes de abastecimento de água,
para atender as populações desfalcadas pela história e
pela geografia;
2. Assegurar a solidariedade nacional;
3. Um grau de controle das relações com o exterior, que
permitiria impedir ser subalternizado pelo capital internacional dominante.
Quando examinamos esses três elementos, na realidade chinesa nos
últimos vinte anos, o efeito é discutível, pois
não é nem zero nem 100, fica nos 50, isto é, há uma
dimensão desse peso político de regulamentação real
e forte. É o motivo pelo qual há quem não esteja
satisfeito com a China. Os americanos estão berrando a troco do
quê? Se não estivesse acontecendo nada, não se
incomodariam, mas muitos chineses dizem com todo o direito e com
razão que é muito pouco, principalmente em nome da
democracia comunista. É uma democracia que não renunciou ao
utopismo comunista. Quem pensa dessa maneira? A classe dirigente, o
establishment chinês pensa poder concretizar esse sonho sem necessidade
de falar.
___________
[*]
Pedro de Oliveira
é jornalista e membro da direção nacional do PCdoB.
Esta entrevista será publicada pela revista brasileira
"Princípios"
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resistir.info
agradece a autorização para publicá-la antecipadamente.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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