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Harry Magdoff, John Bellamy Foster, Robert W. McChesney, Paul Sweezy
Pobreza mundial, pauperização
& acumulação de capital
Um discurso sobre a pobreza e a necessidade de reduzir a sua magnitude, se
não mesmo erradicá-la, ficou na moda hoje em dia. É um
discurso da caridade, no estilo século XIX, que não procura
entender os mecanismos sociais e económicos que geram a pobreza, embora
os meios científicos e tecnológicos para erradicá-la
estejam já disponíveis.
O CAPITALISMO E A NOVA QUESTÃO AGRÁRIA
Todas as sociedades antes dos tempos modernos (capitalista) foram sociedades
camponesas. Sua produção era regrada por vários sistemas
e lógicas específicos mas não aqueles que regem o
capitalismo numa sociedade de mercado, como a maximização do
retorno sobre o capital.
A moderna agricultura capitalista abrangendo tanto as fazendas
familiares em grande escala como as corporações do agribusiness,
igualmente ricas está agora empenhada num ataque maciço
à produção camponesa do terceiro mundo. O sinal verde
para isto foi dado na sessão de Novembro de 2001 da
Organização Mundial do Comércio (OMC) em Doha, Qatar.
Há muitas vítimas deste ataque e a maior parte são
camponeses do terceiro mundo, que ainda constituem mais da metade da
humanidade.
A agricultura capitalista governada pelo princípio do retorno sobre o
capital, que se localiza quase exclusivamente na América do Norte,
Europa, Austrália e no cone sul da América Latina, emprega apenas
umas poucas dezenas de milhões de agricultores que já não
são camponeses. Devido ao grau de mecanização e às
extensas dimensões das fazendas administradas por um
proprietário, a sua produtividade geralmente varia entre 1 a 2
milhões de quilogramas de cereais por agricultor.
Em agudo contraste, três mil milhões de agricultores estão
dedicados à agricultura camponesa. As suas terras podem ser agrupadas
em dois sectores distintos, com escalas de produção,
características económicas e sociais, e níveis de
eficiência muito diferentes. Um sector, capaz de beneficiar da
revolução verde, obteve fertilizantes, pesticidas, sementes
melhoradas e algum grau de mecanização. A produtividade destes
camponeses varia entre 10 mil e 50 mil quilogramas de cereais por ano.
Contudo, estima-se que a produtividade anual dos camponeses excluídos
das novas tecnologias esteja em torno dos 1000 quilogramas por agricultor.
O rácio da produtividade entre o mais avançado segmento
capitalista da agricultura mundial e o mais pobre, que estava em torno de 10
para 1 antes de 1940, está agora a aproximar-se dos 2000 para 1! Isto
significa que a produtividade progrediu muito mais desigualmente na área
da agricultura e da produção alimentar do que em quaisquer outras
áreas. Esta evolução conduziu simultaneamente à
redução dos preços relativos dos produtos alimentares (em
relação a outros produtos industriais e de serviços) a um
quinto do que era há cinquenta anos atrás. A nova questão
agrária resulta deste desenvolvimento desigual.
A modernização sempre combinou dimensões construtivas,
nomeadamente a acumulação de capital e o aumento da
produtividade, com aspectos destrutivos reduzir o trabalho ao estado de
uma mercadoria vendida no mercado, muitas vezes destruindo a base
ecológica natural para a reprodução da vida e a
produção, e polarizando a distribuição da riqueza a
um nível global. A modernização sempre integrou
simultaneamente alguns, pois mercados em expansão criam empregos, e
excluiu outros, que não foram integrados na nova força de
trabalho depois de terem perdido as suas posições nos sistemas
anteriores. Na sua fase de ascensão, a expansão capitalista
global integrou muitos juntamente com os seus processos de exclusão.
Mas agora, nas sociedades camponesas do terceiro mundo, está a excluir
um número maciço de pessoas e a incluir relativamente poucas.
A questão levantada aqui é precisamente se esta tendência
continuará a operar em relação aos três mil
milhões de seres humanos que ainda produzem e vivem em sociedades
camponesas na Ásia, África e América Latina.
Na verdade, o que aconteceria se a agricultura e a produção
alimentar fossem tratadas como qualquer outra forma de produção
submetida às regras da competição num mercado aberto e
desregulamentado, como foi em princípio decidido em Novembro de 2001 na
reunião da OMC em Doha? Será que tais princípios
estimulariam a aceleração da produção?
Alguém poderia imaginar que a comida trazida ao mercado pelos três
milhões de camponeses de hoje, depois de assegurarem a sua
própria subsistência, seria ao invés disso produzida por
vinte milhões de novos agricultores modernos. As
condições para o êxito de uma tal alternativa incluiriam:
1) a transferência de importantes parcelas de terra boa para os novos
agricultores capitalista (e estas terras teriam de ser arrancadas das
mãos das actuais populações camponesas); 2) capital
(para comprar bens e equipamento); e 3) acesso ao mercados consumidores. Tais
agricultores na verdade competiriam com êxito com os milhares de
milhões de camponeses do presente. Mas o que sucederia àqueles
milhares de milhões de pessoas?
Nestas circunstâncias, concordar com o princípio geral da
competição para produtos agrícolas e alimentos, impostos
pela OMC, significa aceitar a eliminação de milhares de
milhões de produtores não competitivos dentro do curto tempo
histórico de umas poucas décadas. O que transformará
estes milhares de milhões de seres humanos, a maioria dos quais
já são os pobres entre os pobres, que alimentam-se a si
próprios com grandes dificuldades. Num espaço de tempo de
cinquenta anos, o desenvolvimento industrial, mesmo na fantástica
hipótese de uma taxa de crescimento contínua de 7 por cento ao
ano, não poderia absorver nem um terço desta reserva.
O maior argumento apresentado a fim de legitimar a doutrina da
competição da OMC é que tal desenvolvimento aconteceu no
século XIX e no XX tanto na Europa como nos Estados Unidos, onde
produziu uma sociedade urbano-industrial e pós-industrial moderna, rica,
com agricultura moderna capaz de alimentar a nação e até
exportar alimentos. Por que não deveria este padrão ser repetido
nos actuais países do terceiro mundo?
Este argumento deixa de considerar os dois principais factores que tornam quase
impossível a reprodução deste padrão no terceiro
mundo. O primeiro é que o modelo europeu desenvolveu-se ao longo de um
século e meio juntamente com tecnologias trabalho-intensivas. As
tecnologias modernas utilizam muito menos trabalho e os recém-chegados
do terceiro mundo têm de adoptá-las para a suas
exportações industriais serem competitivas nos mercados globais.
O segundo é que, durante aquela longa transição, a Europa
beneficiou da migração maciça para as Américas do
seu excedente populacional.
A alegação de que o capitalismo realmente resolveu a
questão agrária nos seus centros desenvolvidos sempre foi aceite
por amplos sectores da esquerda, sendo um exemplo o famoso livro de Karl
Kautsky,
A questão agrária
, escrito antes da Primeira Guerra Mundial. A ideologia soviética
herdou tal visão e, com base na mesma, empreendeu a
modernização durante a colectivização stalinista,
com fracos resultados. Aquilo que sempre foi passado por alto é o facto
de que o capitalismo, enquanto resolvia a questão nos seus centros,
fazia isto gerando uma gigantesca questão agrária nas periferias,
a qual só pode resolver através do genocídio de metade da
espécie humana. Dentro da tradição marxista, apenas o
maoismo entendeu a magnitude do desafio. Portanto, aqueles que acusaram o
maoismo de ser um "desvio camponês" mostram por esta simples
crítica que lhes falta a capacidade analítica para compreenderem
o capitalismo imperialista, o qual eles reduzem a um discurso abstracto sobre o
capitalismo em geral.
A modernização através da liberalização do
mercado capitalista, como sugerido pela OMC e pelos seus apoiantes, alinha lado
a lado, sem sequer efectuar a necessária unificação, as
duas componentes: a produção alimentar a uma escala global
através de modernos agricultores competitivos baseados sobretudo no
norte e no futuro possivelmente também em alguns bolsões do sul,
e a marginalização, exclusão, e o avanço do
empobrecimento da maioria dos três mil milhões de camponeses do
actual terceiro mundo e finalmente seu isolamento em alguma espécie de
reservas. Combina portanto um discurso pro-modernização e
dominado pela eficiência com um conjunto de políticas
ecológicas-culturais-de contenção que permitam às
vítimas sobreviverem num estado de empobrecimento material (incluindo o
aspecto ecológico). Estas duas componentes podem portanto
complementar-se uma à outra, ao invés de entrarem em conflito.
Poderemos nós imaginar outras alternativas, e têm elas sido
debatidas amplamente? Alternativas nas quais a agricultura camponesa fosse
mantida durante o futuro visível do século XXI, mas que
simultaneamente entrasse num processo de contínuo progresso
tecnológico e social? Por este caminho, as mudanças poderiam
verificar-se a uma taxa que permitiria uma progressiva transferência dos
camponeses para empregos não-rurais e não-agrícolas.
Tal conjunto estratégico de objectivos envolve complexas
políticas mistas a níveis nacional, regional e locais.
Ao nível nacional implica macro políticas que protejam a
produção alimentar do campesinato da competição
desigual dos agricultores modernizados e das corporações do
agrobusiness locais e internacionais. Isto ajudará a garantir
preços internos dos alimentos aceitáveis desligados dos
preços dos mercados internacionais, os quais além disso
são enviesados pelos subsídios agrícolas do norte rico.
Tais objectivos políticos também questionam os padrões de
desenvolvimento industrial e urbano, os quais deveriam ser menos baseados em
prioridades orientadas para a exportação (exemplo: mantendo
salários baixos, o que implica preços baixo para alimentos) e
mais direccionados para a expansão do mercado interno socialmente
equilibrado.
Isto envolve, em simultâneo, um padrão global de políticas
a fim de assegurar a segurança alimentar nacional uma
condição indispensável para um país ser um membro
activo da comunidade global, desfrutando a indispensável margem de
autonomia e capacidade negocial.
A níveis regional e global implica acordos internacionais e
políticas que se afastem dos princípios doutrinários
liberais que regem a OMC substituindo-os com soluções
imaginativas e específicas para diferentes áreas, levando em
consideração as questões específicas e as
condições históricas e sociais concretas.
A NOVA QUESTÃO TRABALHISTA
A população urbana do planeta actualmente representa cerca da
metade da humanidade, pelo menos três mil milhões de
indivíduos, com camponeses formando uma porcentagem estatisticamente
não insignificante da outra metade. Os dados acerca desta
população permitem-nos distinguir entre aquilo que podemos
denominar classes médias e as classes populares.
Na etapa contemporânea da evolução capitalista, as classes
dominantes proprietários formais dos principais meios de
produção e administradores superiores associados ao seu
desempenho representam apenas uma minúscula fracção
da população global embora a fatia que retiram do rendimento
disponível das suas sociedades seja significativo. A isto acrescentamos
as classes médias no antigo sentido da expressão rentistas
não-assalariados, proprietários de pequenas empresas e
administradores médios, os quais não estão necessariamente
em declínio.
A grande massa de trabalhadores nos segmentos de produção
modernos consiste de assalariados que agora representam mais de quatro quintos
da população urbana dos centros desenvolvidos. Esta massa
está dividida em pelo menos duas categorias, cuja fronteira é
visível não só para o observador externo como está
realmente viva na consciência dos indivíduos afectados.
Há aqueles que podem ser etiquetados como classes populares
estabilizadas no sentido de que estão realmente seguros nos seus
empregos, graças entre outras coisas a qualificações
profissionais que lhes dão poder negocial junto aos empregadores e,
portanto, estão frequentemente organizados, pelo menos em alguns
países, em sindicatos poderosos. Em todos os casos esta massa traz
consigo um peso político que reforça sua capacidade negocial.
Outros constituem as classes populares precárias que incluem
trabalhadores enfraquecidos pela sua baixa capacidade negocial (em resultado
dos seus baixos níveis de qualificação, seu status como
não-cidadãos, ou sua raça ou o seu género) bem como
não-assalariados (aqueles formalmente desempregados e os pobres com
empregos no sector informal). Podemos etiquetar esta segunda categoria das
classes populares como "precários", ao invés de
"não-integrados" ou "marginalizados", porque estes
trabalhadores estão perfeitamente integrados na lógica
sistémica que comanda a acumulação de capital.
Da informação disponível para países desenvolvidos
e certos países do sul (dos quais extrapolámos dados) obtemos as
proporções relativas que cada uma das categorias acima definidas
representa na população urbana do planeta.
Embora os centros representam apenas 18 por cento da população do
planeta, uma vez que a sua população é urbana em 90 por
cento, eles constituem o lar para um terço da população
urbana mundial (ver tabela 1).
As classes populares representam três quartos da população
urbana mundial, ao passo que a subcategoria dos precários representa
dois terços das classes populares a uma escala mundial. (Cerca de 40
por cento das classes populares nos centros e 80 por cento nas periferias
estão na subcategoria precários). Por outras palavras, as
classes populares precárias representam a metade (pelo menos) da
população urbana mundial e muito mais do que isto nas periferias.
Um olhar à composição das classes populares urbanas
há meio século, logo a seguir à Segunda Guerra Mundial,
mostra que as proporções que caracterizavam a estrutura das
classes populares eram muitos diferentes daquelas que vieram a ser.
Naquela época, a parte do terceiro mundo não excedia a metade da
população urbana global (então da ordem de mil
milhões de indivíduos) contra os dois terços de hoje.
Megacidades, como aquelas que hoje conhecemos em praticamente todos os
países do Sul, ainda não existiam. Havia apenas umas poucas
grandes cidades, nomeadamente na China, na Índia e na América
Latina.
Nos centros, as classes populares beneficiaram, durante o período do
pós-guerra, de uma situação excepcional baseada nos
compromissos históricos impostos ao capital pelas classes trabalhadoras.
Este compromisso permitiu a estabilização da maioria dos
trabalhadores nos moldes de uma organização do trabalho conhecida
como o sistema da fábrica "fordista". Nas periferias, a
proporção dos precários que era, como sempre, maior
do que nos centros não excedia a metade das classes populares
urbanas (contra mais de 70 por cento hoje). A outra metade ainda consistia, em
parte, em assalariados estabilizados nos moldes da nova economia colonial e da
sociedade modernizada e, em parte, nos antigos moldes das indústrias
artesanais.
A principal transformação social que caracteriza a segunda metade
do século XX pode ser resumida numa única estatística: a
proporção das classes populares precárias ascende de menos
de um quarto para mais da metade da população urbana global, e
este fenómeno de pauperização reapareceu numa escala
significativa nos próprios centros desenvolvidos. Esta
população urbana desestabilizada aumentou em meio século
de 250 milhões para mais de 1500 milhões de indivíduos,
registando uma taxa de crescimento que ultrapassa aquela que caracteriza a
expansão económica, o crescimento da população ou o
próprio processo de urbanização.
Pauperização
não há palavra melhor para designar a tendência
evolutiva durante a segunda metade do século XX.
O facto em si mesmo geralmente é reconhecido e reafirmado na nova
linguagem dominante: "redução da pobreza" tornou-se um
tema recorrente entre os objectivos que as políticas governamentais
dizem executar. Mas a pobreza em questão é apresentada só
como um facto medido empiricamente, tanto de forma muito grosseira
através da distribuição do rendimento (linhas de pobreza)
ou de uma forma um pouco menos grosseira através de índices
compostos (tais como os índices de desenvolvimento humano propostos pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), sem nem mesmo
levantar a questão das lógicas e dos mecanismos que geram esta
pobreza.
A nossa apresentação destes mesmos factos vai mais além
porque permite-nos precisamente começar a explicar o fenómeno e a
sua evolução. Estratos médios, estratos populares
estabilizados e estratos populares precários estão todos
integrados dentro do mesmo sistema de produção social, mas eles
preenchem diferentes funções no mesmo. Alguns na verdade
estão excluídos dos benefícios da prosperidade. Os
excluídos são também uma parte do sistema e não
estão marginalizados no sentido de não estarem integrados
funcionalmente dentro do sistema.
A pauperização é um fenómeno moderno que não
é inteiramente redutível à falta de rendimento suficiente
para sobreviver. É realmente a modernização da pobreza e
tem efeitos devastadores em todas as dimensões da vida social. Os
emigrantes das zonas rurais estavam relativamente bem integrados dentro das
classes populares estabilizadas durante a idade de ouro (1945-1975) eles
tendiam a tornar-se trabalhadores fabris. Agora aqueles que chegaram
recentemente e os seus filhos estão situados nas margens dos sistemas
produtivos, criando condições favoráveis para a
substituição de solidariedades de comunidade por
consciência de classe. Enquanto isso, as mulheres são ainda mais
vitimizadas pela precariedade económica do que os homens, resultando na
deterioração das suas condições materiais e
sociais. E se os movimentos feministas sem dúvida conseguiram
avanços importantes no âmbito das ideias e do comportamento, os
beneficiários destes ganhos são quase exclusivamente mulheres das
classes médias, certamente não aquelas da pauperizadas classes
populares. Quanto à democracia, a sua credibilidade e portanto a
sua legitimidade é solapada pela sua incapacidade para reduzir a
degradação das condições de uma
fracção cada vez maior das classes populares.
A pauperização é um fenómeno inseparável da
polarização a uma escala mundial um resultado inerente da
expansão do capitalismo realmente existente, que por esta razão
devemos chamar imperialista por natureza.
A pauperização nas classes populares urbanas está
estreitamente ligada aos desenvolvimentos que vitimizam as sociedades
camponesas do terceiro mundo. A submissão destas sociedades às
exigências de expansão do mercado capitalista sustenta novas
formas de polarização social que excluem uma
proporção cada vez maior de agricultores do acesso à
utilização da terra. Estes camponeses que ficaram empobrecidos
ou sem terra alimentam ainda mais do que o crescimento populacional
a migração para os bairros de lata. Apesar disso, todos
estes fenómenos estão destinados a piorar enquanto os dogmas
liberais não forem desafiados, e nenhuma política correctiva
dentro desta estrutura liberal possa controlar a sua difusão.
A pauperização põe em questão tanto a teoria
económica como as estratégias das lutas sociais.
A vulgar teoria económica convencional evita as questões reais
que são colocadas pela expansão do capitalismo. Isto acontece
porque ela substitui uma análise do capitalismo realmente existente por
uma teoria de uma capitalismo imaginário, concebido como uma
extensão simples e contínua das relações de troca
(o mercado), apesar de o sistema funcionar e reproduzir-se na base da
produção capitalista e das relações de troca
(não simplesmente relações de mercado). Esta
substituição é facilmente emparelhada com uma
noção a priori, que não é confirmada nem pela
história nem por argumentos racionais, de que o mercado é
auto-regulador e produz um óptimo social. A pobreza assim só
pode ser explicada por causas que se decreta serem externas à
lógica económica, tal como o crescimento populacional ou erros
políticos. A relação da pobreza com o próprio
processo de acumulação é afastada pela teoria
económica convencional. O resultante vírus liberal, que polui o
pensamento social contemporâneo e aniquila a capacidade de entender o
mundo, para não falar transformá-lo, penetrou profundamente as
várias esquerdas constituídas desde a Segunda Guerra Mundial. Os
movimentos actualmente envolvidos em lutas sociais por "um outro
mundo" e uma globalização alternativa só serão
capazes de produzir avanços sociais significativos se se livrarem deste
vírus a fim de construir um debate teórico autêntico.
Enquanto não se livrarem deste vírus, os movimentos sociais,
mesmo os mais bem intencionados, permanecerão presos nas algemas do
pensamento convencional e portanto prisioneiros de propostas correctivas
ineficazes aquelas que são alimentadas pela retórica
referente à redução da pobreza.
A análise esboçada acima deveria contribuir para a abertura deste
debate. Isto porque ele restabelece a pertinência da
ligação entre acumulação de capital por um lado e o
fenómeno da pauperização social por outro. Cento e
cinquenta anos atrás Marx iniciou uma análise dos mecanismos por
trás desta ligação, a qual a duras penas foi prosseguida
desde então e de maneira nenhuma a uma escala global.
_______
[*]
Samir Amin é director do Fórum do Terceiro Mundo, em Dakar,
Senegal. Seus livros recentes incluem
Specters of Capitalism: A Critique of Current Intellectual Fashions
(Monthly Review, 1998), e
Obsolescent Capitalism: Contemporary Politics and Global Disorder
, a publicar pela Zed Books. Outros livros do autor:
U.S. Hegemony and the Response to Terror
Imperialism and Globalization
The Political Economy of the Twentieth Century
.
Artigos de Samir Amin já publicados por resistir.info:
A ambição desmedida e criminosa dos EUA
A senilidade do capitalismo
(entrevista)
Imperialismo e globalização
O original encontra-se em
http://www.monthlyreview.org/1003amin.htm
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
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