Imperialismo e globalização
O imperialismo não é uma etapa, nem sequer é a etapa mais
alta do capitalismo: desde o começo que é inerente à
expansão do capitalismo. A conquista imperialista do planeta pelos
europeus e pelos seus filhos estadunidenses, realizou-se em duas fases, e
talvez estejamos a entrar na terceira.
A primeira fase deste empreendimento em desenvolvimento, organizou-se em torno
da conquista das Américas, de acordo com as regras do sistema mercantil
da Europa Atlântica daquela época. O resultado claro foi a
destruição das civilizações indígenas e a
Hispanização/Cristianização ou simplesmente o
genocídio total, sobre o qual se construiu os EUA. O racismo dos
colonos anglo-saxónicos explica porque é que o modelo se
reproduziu em todo o lado, na Austrália, na Tasmânia (o maior
genocídio da história), e na Nova Zelândia.
Se os católicos espanhóis actuavam em nome da religião que
devia ser imposta aos povos conquistados, os protestantes
anglo-saxónicos retiravam da sua leitura particular da bíblia, o
direito a eliminar os "infiéis". A infame escravatura dos
negros que se tornou necessária após o extermínio dos
índios, impôs-se bruscamente para assegurar que as partes
úteis do continente pudessem ser exploradas.
Hoje em dia não se pode duvidar dos motivos reais de todos estes
horrores, a menos que se ignore a sua relação íntima com a
expansão do capital. Contudo, os europeus contemporâneos aceitaram
o discurso ideológico que os justificava e as vozes de protesto
como a do Padre De Las Casas não encontraram muitos simpatizantes.
Os resultados desastrosos produzidos por este primeiro capítulo da
expansão capitalista mundial, fez com que mais tarde as forças de
libertação desafiassem a sua lógica. A primeira
revolução do hemisfério ocidental foi a dos escravos de
Santo Domingo (o que hoje é o Haiti), no fim do século XVIII,
seguida mais de um século depois pela Revolução Mexicana
em 1910, e 50 anos depois pela Revolução Cubana. Se não
cito aqui a famosa "Revolução Americana" ou a das
colónias espanholas que se seguiram, é porque estas só
transferiram o poder de decisão das metrópoles para os colonos,
de modo que estes continuaram a fazer o mesmo, perseguindo os mesmos projectos
ainda com maior brutalidade, só que sem ter de partilhar as
ganâncias com a "mãe pátria".
A segunda fase da devastação imperialista baseou-se na
revolução industrial e manifestou-se na subjugação
colonial da Ásia e da África. "Para abrir os mercados"
como o mercado do ópio que foi imposto aos chineses pelos
puritanos de Inglaterra e apoderar-se dos recursos naturais do globo,
foram os seus motivos reais, como já todos sabem.
A opinião europeia incluindo o movimento operário da
Segunda Internacional não vê estas realidades e aceita o
novo discurso legitimador do capital. Nesta ocasião tratou-se da famosa
"missão civilizadora". As vozes que expressaram o pensamento
mais claro da época foram as do burgueses cínicos, como Cecil
Rhodes, que apreciou a conquista colonial como um antídoto para a
revolução social em Inglaterra. Uma vez mais, as vozes de
protesto desde a da Comuna de Paris à dos bolcheviques
tiveram pouca ressonância. Esta segunda fase do imperialismo está
na origem do maior problema com que a humanidade se enfrentou: a imensa
polarização que aumentou a desigualdade entre as pessoas de uma
proporção de dois para um por volta de 1800 para a de 60 para 1
nos nossos dias, onde só 20% da população mundial se
encontra incluída nos centros que beneficiam com o sistema.
Ao mesmo tempo, essas "prodigiosas" conquistas alcançadas pela
civilização capitalista deram lugar às mais violentas
confrontações entre os poderes imperialistas que o mundo alguma
vez já viu. A agressão imperialista produziu novamente as
forças que resistiram a esse projecto: as revoluções
socialistas que ocorreram na Rússia e na China (o que não foi por
acaso, todas ocorreram em periferias que eram vítimas da expansão
polarizadora do capitalismo realmente existente) e as revoluções
de libertação nacional. A sua vitória permitiu meio
século de alívio, após a segunda guerra mundial, o que
aumentou a ilusão de que o capitalismo era obrigado a ajustar-se
às novas condições, a moderar-se, e chegar a civilizar-se.
A questão do imperialismo (e com ela, o seu oposto a
libertação e desenvolvimento) continua a manter-se e a ter peso
na história do capitalismo até ao presente. Desta forma, a
vitória dos movimentos de libertação que logo após
a Segunda Guerra Mundial ganharam a independência política em
nações da Ásia e de África, não só
puseram fim aos sistema colonialista como também, de certa maneira,
levaram ao final da era de expansão europeia que tinha começado
em 1492. Durante quatro séculos e meio, desde 1500 a 1950, essa
expansão tinha sido a adoptada pelo desenvolvimento do capitalismo
histórico, de modo que estes aspectos da mesma realidade tinham chegado
a ser inseparáveis. Para se ser mais exacto, o "sistema mundial de
1492" já estava comprometido em finais do século XVIII e
início do século XIX pela independência da América.
Mas esta ruptura, apenas foi aparente, uma vez que a referida
independência foi alcançada, não pelos indígenas ou
escravos importados pelos colonos (excepto no Haiti) mas pelos próprios
colonos, que pretendiam transformar a América numa segunda Europa. A
independência reconquistada pelos povos da Ásia e África
teve um significado diferente.
As classes dirigentes dos países coloniais da Europa não deixaram
de entender que se tinha virado uma pagina na história. Deram conta que
deviam abandonar o ponto de vista tradicional de que o crescimento da sua
economia capitalista doméstica estava unido ao êxito da sua
expansão imperial. Era o ponto de vista que tinha sido mantido
não só pelos poderes coloniais primordialmente Inglaterra,
França e Holanda como também pelos novos centros
capitalistas formados no século XIX Alemanha, EUA e Japão.
De acordo com isto, os conflitos intra-europeus e internacionais eram
inicialmente lutas pelas colónias do sistema imperialista de 1492.
Entendia-se que os EUA reservavam para si os direitos exclusivos do novo
continente.
A construção de um grande espaço europeu
desenvolvido, rico, que contara com um potencial tecnológico e
científico de primeira classe, e com fortes tradições
militares pareceu constituir uma sólida alternativa para
alicerçar um novo crescimento da acumulação capitalista
"sem colónias". Isto é, constituía uma base para
um novo tipo de globalização, diferente da do sistema de 1492. O
problema que se colocava, era como, de que maneira, este novo sistema mundial
podia diferenciar-se do antigo, se continuava a ser tão polarizado como
o anterior, ainda que com uma nova base, ou se deixara de ser assim.
Sem dúvida que esta construção, muito longe de estar
terminada, e que atravessa uma crise que põe em causa o seu significado
a longo prazo, continua a ser uma tarefa difícil. Não se
encontraram fórmulas que tornem possível a
reconciliação das realidades históricas de cada
nação, que tanto pesam na formação de uma Europa
politicamente unida. Associado a isto, a visão de como este
espaço económico e político europeu pode encaixar no novo
sistema global, que tampouco está construído, faz com que tudo
permaneça ambíguo, para não dizer nebuloso. Será
este espaço económico rival de outro grande espaço, o que
foi criado na segunda Europa pelos EUA? A ser assim, de que modo esta
rivalidade afectará as relações da Europa e dos EUA com o
resto do mundo? Ou actuarão concertadamente? Neste caso, os europeus
aceitarão participar como sócios nesta nova versão do
sistema imperialista de 1492, mantendo as suas opções
políticas em conformidade com as de Washington? Sob que
condições é que a construção da Europa
poderia ser parte de uma globalização que pusera fim ao sistema
de 1492?
Hoje presenciamos a uma terceira vaga de devastação do mundo por
uma expansão imperialista, apoiada pelo colapso do sistema
soviético e dos regimes nacionalistas populares do terceiro mundo. Os
objectivos do capital dominante continuam a ser os mesmos o controlo da
expansão dos mercados, o saque dos recursos naturais da terra, a
superexploração das reservas de trabalho na periferia
ainda que tudo isto seja perseguido em condições que são
novas e em vários aspectos muito diferentes das que caracterizavam a
fase precedente do imperialismo. O discurso ideológico desenhado para
assegurar o predomínio dos povos da tríade central (EUA, Europa
Ocidental e Japão) foi remodelado e agora assenta no "direito de
intervir", que supostamente se justifica na "defesa da
democracia", "nos direitos dos povos" e nas
"humanitarismo". Os exemplos de duplicidade são tão
flagrantes que para os africanos e asiáticos chega a ser óbvio o
cinismo com que se usa esta linguagem. A opinião ocidental, no entanto,
respondeu com o mesmo entusiasmo como perante as justificações
das primeiras fases do imperialismo.
Mas ainda mais: para alcançar este fim, os EUA levam a cabo uma
estratégia sistemática, concebida para assegurar a sua absoluta
hegemonia, mediante uma demonstração de poder militar que os
consolida em relação a todos os sócios da tríade.
Deste ponto de vista, a guerra do Kosovo desempenhou uma função
crucial, obter a total capitulação dos estados da Europa, que
apoiaram a posição americana sobre os novos "conceitos
estratégicos" adoptados pela NATO, imediatamente após a
"vitória" em 23-25 de Abril em 1999. Neste "novo
conceito" (referido rudemente no outro lado do Atlântico como
"a Doutrina Clinton"), a missão da NATO fica, para todos os
efeitos práticos, estendida a toda a Ásia e África (os
EUA, já desde a Doutrina Monroe, se reservavam no direito de intervir na
América), o que vem a ser uma admissão de que a NATO já
não é uma aliança defensiva mas sim uma arma ofensiva dos
EUA. Ao mesmo tempo, esta missão é definida nos termos mais vagos
que se possam imaginar, para incluir novas "ameaças" (crime
internacional, "terrorismo", o "perigoso" armamento de
países que estão fora da NATO, etc.), o que torna possível
justificar quase qualquer agressão que possa interessar aos EUA. Clinton
não se fez rogar para se referir aos "estados desonestos",
aos que haveria de atacar "preventivamente", sem especificar o que
queria dizer com desonestidade.
Acresce a isto que a NATO se liberta de toda a obrigação de
só actuar a mando das Nações Unidas, que é tratada
com um desprezo semelhante ao que mostraram os poderes fascistas à Liga
das Nações (há uma assombrosa similitude nos termos
utilizados).
A ideologia norte-americana é cuidadosa em esconder o seu produto
o projecto imperialista na inefável linguagem da
"missão histórica dos EUA". Uma tradição
herdada dos seus primórdios de "padres fundadores", seguros da
sua inspiração divina. Os liberais norte-americanos, no sentido
político do termo, os que se consideram "a esquerda" da sua
sociedade, compartilham desta ideologia. De acordo com isto, consideram a
hegemonia norte-americana como necessariamente "benigna", como fonte
de progresso assente em princípios morais e em práticas
democráticas; que existe para dar vantagens a quem, a seus olhos,
não são vitimas desse projecto, mas sim seus
beneficiários. A hegemonia norte-americana, a paz universal, a
democracia e progresso material, juntam-se como conceitos inseparáveis.
É como se vivessem noutro mundo.
A incrível adesão da opinião pública europeia (e
particularmente a opinião da esquerda, em lugares onde tem a maioria) em
torno deste projecto a opinião pública nos EUA é
tão ingénua que não levanta quaisquer problemas
é uma catástrofe que não deixará de ter
consequências. As intensas campanhas dos mass-media sobres as
regiões onde ocorrerá a intervenção
norte-americana, explica este amplo acordo. Para além disto as pessoas
no ocidente estão de facto convencidas, porque os EUA e os países
da EU são "democráticos", os seus governos são
incapazes de ter "más intenções", algo que fica
reservado para os sangrentos "ditadores" do Oriente. Estão
tão cegos por esta convicção que nem consideram a
influência decisiva dos interesses do capital dominante. E assim, uma vez
mais, os povos dos países imperialistas se privam de uma
consciência clara.
Desenvolvimento e democracia: aspectos inseparáveis de um mesmo movimento
A democracia é um requisito absoluto do desenvolvimento. Porém,
temos de explicar porquê, em que condições, porque foi
só muito recentemente que esta ideia foi, ao que parece, comumente
aceite. Até há bem pouco tempo atrás, o dogma dominante no
Ocidente, Oriente e Sul, era que a democracia constituía um
"luxo" que ao qual só se teria acesso quando o
"desenvolvimento" tivesse resolvido os problemas materiais da
sociedade. Esta foi a doutrina oficial partilhada pelos círculos
dirigentes do mundo capitalista (pelos EUA para justificar o seu apoio aos
ditadores militares da América Latina e pelos europeus para justificar
os seus próprios regimes autocráticos em África); pelos
estados do terceiro mundo (onde o desenvolvimento latino-americano se expressou
tão claramente); e pela Costa do Marfim, Quénia, Malawi, e muitos
outros países, que demonstraram que os países socialistas
não foram os únicos a governar-se com partidos únicos, e
pelos governantes dos sistemas soviéticos.
Mas agora, da noite para o dia, a proposição inverteu-se no seu
contrário. Em todo o lado, ou em quase todo o lado, há um
discurso oficial quotidiano acerca da preocupação pela
democracia, a certificação da democratização que
quando outograda na devida forma, é uma
"condição" para obter ajuda das grandes e ricas
democracias, etc.. A credibilidade desta retórica é
particularmente duvidosa quando o princípio de "dois pesos e duas
medidas", que é aplicado com perfeito cinismo, de um modo
tão claro e inequívoco, revela, na prática, a verdadeira
prioridade dada a outros objectivos, não declarados, que os
círculos dominantes tentam alcançar por pura e simples
manipulação. Isto não é negar que certos movimentos
sociais, mesmo que não todos, possam ter objectivos democráticos,
que a democracia é, de facto, uma condição para o
desenvolvimento.
Democracia é um conceito moderno, no sentido que coincide com a mesma
definição de modernidade se, como sugiro, entendemos por
modernidade a adopção do princípio que o ser humano,
individual e colectivamente (isto é, em sociedade) é
responsável pela sua história. Antes de formularem tal conceito,
os povos tiveram que libertar-se das alienações
características das formas de poder que precederam o capitalismo, como a
alienação da religião, ou as que tomaram a forma de
"tradições" concebidas como permanentes, como factos
transhistóricos. As expressões da modernidade, e da necessidade
de democracia inerente, datam da Idade do Iluminismo. A modernidade em
questão, é por isso um sinónimo de capitalismo, e a
democracia que dele emergiu, é limitada como o resto, como o é o
próprio capitalismo. As suas formas históricas burguesas
que são as únicas conhecidas e praticadas até agora
constituem-se apenas como um estádio. Nem a modernidade nem a democracia
alcançaram o limite do seu desenvolvimento potencial. É por isso
que prefiro o termo "democratização", que realça
o aspecto dinâmico de um processo ainda não terminado, ao termo
"democracia", que reforça a ilusão que podemos
encontrar uma forma definitiva para ela.
O pensamento social burguês, baseou-se desde os seus começos,
desde a Idade do Iluminismo, na separação entre os diferentes
domínios da vida social entre outras, a sua vertente
económica e a sua vertente política e a
adopção de diferentes princípios específicos, que
se supõe ser a expressão das exigências particulares da
"razão" em cada um destes domínios. De acordo com este
ponto de vista, a democracia é um princípio racional da boa
administração pública. Desde que os homens (naquela
época não havia nenhuma razão para incluir as mulheres)
ou, mais precisamente, certos homens (os que eram mais bem educados, ou mais
bem acomodados), os razoáveis, teriam a responsabilidade de fazer as
leis sobre as quais se vivia e seleccionar, por eleição, aquelas
pessoas que se encarregariam de as aplicar. Por outro lado, a vida
económica, era dirigida por outros princípios que também
eram concebidos como a expressão das exigências da
"razão" (sinónimo de natureza humana): a propriedade
privada, o direito de ser empresário, a competição nos
mercados. Conhecemos este conjunto de princípios como os do capitalismo,
que em si mesmos nada têm a ver com os da democracia. Especialmente no
caso de pensarmos em democracia como implicação de igualdade
de igualdade entre os homens e mulheres, claro, mas também a
entre todos os seres humanos (tendo em mente que a democracia americana ignorou
os seus escravos até 1865 e ignorou todos os mais elementares direitos
civis aos seus descendentes até 1960), dos proprietários e
não proprietários (note-se que a propriedade privada só
existe quando é exclusiva, isto é, quando há quem nada
tenha).
A separação dos domínios políticos e
económicos levanta a questão da convergência e
divergência dos resultados das lógicas específicas que os
governam. Por outras palavras, poderá a "democracia"
(símbolo taquigráfico para o governo da vida política) e o
"mercado" (símbolo taquigráfico para o governo da
actividade económica), ser vistos como convergentes ou divergentes? O
postulado em que se baseia o discurso em uso, que é elevado a status de
verdade auto-sustentada e evidente, que não há necessidade de
discuti-lo, afirma que os termos convergem. Supostamente, a democracia e o
mercado enredam-se reciprocamente, a democracia requer mercado e vice-versa. E
nada pode estar mais longe da verdade, como demonstra a história real.
Os pensadores do Iluminismo eram, contudo, mais exigentes que o comum dos
nossos contemporâneos. Ao contrário destes últimos,
perguntavam-se por que é que havia convergência, e em que
condições. A sua resposta à primeira pergunta inspirava-se
no seu conceito de "razão", o denominador comum para os modos
de governo experimentados para a democracia e para o mercado. Se os homens
são razoáveis, então o resultados das suas
opções políticas só podiam vir reforçar os
resultados produzidos pelo mercado. Isto é dizer, então, como
condição óbvia, que o exercício dos direitos
democráticos está reservado para os seres providos de
razão, para certos homens, não mulheres, que, como sabemos,
são guiadas somente pelas suas emoções e não pela
razão; nem, já agora, pelos escravos, pobres e desprovidos (os
proletários), que só obedecem aos seus instintos. A Democracia,
deve pois basear-se em certificações de propriedade, e ficar
reservada para aqueles que simultaneamente são cidadãos e
empresários. Então, naturalmente, é provável que as
suas opções eleitorais sejam sempre, ou quase sempre,
consistentes com os seus interesses como capitalistas. Mas isto ao mesmo tempo
significa, que na sua convergência com a economia, para não dizer
subordinação, a política perde a sua autonomia. A
alienação económica funciona aqui em plenitude, ocultando
este facto.
A posterior extensão dos direitos democráticos a outros para
além dos cidadãos empresários, não foi um resultado
espontâneo do desenvolvimento capitalista nem a expressão de um
requisito necessário a esse desenvolvimento. Muito pelo
contrário, esses direitos foram ganhos gradualmente pelas vítimas
do sistema a classe operária, e mais tarde, as mulheres. Foi o
resultado de lutas contra o sistema, ainda que o sistema as tenha encorpado
para adaptar-se a elas, para "recuperar" os seus benefícios,
como se costuma dizer. Como e a que custo? Esta é a pergunta que devemos
fazer aqui...
Esta extensão dos direitos revela necessariamente uma
contradição, expressa através do voto democrático,
entre a vontade da maioria (os explorados pelo sistema) e o destino que o
mercado lhes reserva; o sistema corre o risco de se tornar instável,
até explosivo. Ao menos, existe o risco e a possibilidade
de o mercado em questão se submeter à expressão dos
interesses sociais, que não coincidem com os interesses do capital, o
qual dá prioridade ao domínio económico. Por outras
palavras, existe o risco para alguns (capital) e a possibilidade para outros
(cidadãos-trabalhadores) de que o mercado seja regulado em termos
diferentes dos daqueles que trabalham na estreita lógica unilateral.
Isto é possível e, supostamente, sob certas
condições, chegou a acontecer, como no estado de bem-estar do
pós-guerra.
Mas esse não é o único modo de apaziguar a
divergência entre a democracia e o mercado. Se a história concreta
produz circunstâncias tais que os movimentos sociais críticos
chegam a não ter alternativas frente à ideologia dominante,
então a democracia é esvaziada de todo o seu conteúdo e
segue o caminho do mercado, que pode chegar a ser perigoso para ele. Você
pode votar livremente, da forma como quiser: branco, azul, verde, rosa ou
vermelho. Faça o que fizer, não surtirá efeito, já
que o seu destino é decidido em outra parte, fora do âmbito do
parlamento, no mercado. A subordinação da democracia ao mercado
(e não a sua convergência) reflecte-se na linguagem
política. A palavra "alternância" (mudar a cara do poder
e continuar a fazer a mesmo) substitui a palavra "alternativa" (que
significa fazer algo diferente).
Esta alternância advém somente de uma parte insignificante deixada
pela regulação do mercado, o que é de facto, um sinal de
que a democracia está em crise. Debilita a credibilidade e a
legitimidade dos procedimentos democráticos e pode levar rapidamente a
uma troca da democracia por um consenso ilusório baseado, por exemplo,
no chauvinismo religioso ou étnico. Desde o seu início que a tese
de que haveria uma convergência "natural" entre a democracia e
o mercado continha o perigo de chegarmos a este ponto. Pressupunha uma
sociedade reconciliada consigo mesma, uma sociedade sem conflito, como sugere
alguma interpretação pós-modernista. Mas as
evidências são conclusivas no sentido de que as
relações do mercado capitalista global geraram ainda maiores
desigualdades. A teoria de que a convergência a
noção de que o mercado e a democracia convergem é um puro
dogma: uma teoria para uma política imaginária. Esta teoria
é, no seu próprio domínio, a contrapartida da
"economia pura", que é a teoria, não do capitalismo
realmente existente, mas sim de uma economia imaginária. Tal como o
dogma do fundamentalismo do mercado, que em todo o lado diminui frente à
realidade, já não podemos igualmente aceitar a
noção popular que hoje se propaga que a democracia converge com o
capitalismo.
Pelo contrário, hoje estamos de olhos muito bem abertos perante o
potencial autoritário latente no capitalismo. A resposta do capitalismo
ao repto apresentado pela dialéctica do indivíduo versus
colectivo (social) contém, efectivamente, esse perigoso potencial.
A contradição entre o indivíduo e o colectivo, que
é inerente em qualquer sociedade a qualquer nível da sua
realidade, foi superada, em todos os sistemas sociais antes dos tempos
modernos, mediante a negação do primeiro termo isto
é, pela domesticação do indivíduo pela sociedade. O
indivíduo só é reconhecido pelo seu status na
família, nos grupos, na sociedade. Na ideologia do mundo (capitalista)
moderno, o termo de negação inverteu-se: a modernidade reclama a
si mesma os direitos do indivíduo, ainda que em oposição
à sociedade. Em minha opinião, esta inversão, é
apenas uma pré-condição da libertação, o
começo da libertação. Porque ao mesmo tempo liberta um
potencial para a revolta permanente entre as relações entre os
indivíduos. A ideologia capitalista expressa esta realidade
através da sua ética ambígua: folgada vida à
competição, que sobreviva o mais forte. O efeito devastador de
tal ideologia é, por vezes, contido pela coexistência de outros
princípios éticos, a maioria de origem religiosa herdados de
outras formas sociais anteriores. Mas se estas barreiras caiarem, e a ideologia
unilateral dos direitos do indivíduo for levada ao extremo sem as
versões popularizadas por De Sade ou Nietzche, ou a sua versão
americana só produzirá horror, autocracia e fascismo suave
ou duro.
Penso que Marx subestimou este perigo. Talvez ao não se preocupar em
desenvolver ilusões que estimulassem saudosismos do passado, não
previu todo o potencial reaccionário da ideologia burguesa em
relação ao indivíduo. Dirigiu as suas preferências
à sociedade americana, com o pretexto que não sofria dos
vestígios feudais do passado que travavam o progresso na Europa.
Atrever-me-ia a sugerir, pelo contrário, que o passado da Europa feudal
continha algumas características positivas em seu favor. Basta ver o
nível de violência que domina a vida diária nos EUA, que
está fora de toda a proporção com o que ocorre na
Europa... poderá isto atribuir-se à ausência de
antecedentes pré-modernos nos EUA? Para ir mais longe, não
poderíamos atribuir a estes antecedentes, onde existam, um papel
positivo na emergência de uma ideologia pós-capitalista que
salienta os valores da generosidade e solidariedade humana? A sua
ausência não estará a reforçar a submissão ao
poder dominante da ideologia capitalista? É uma casualidade que,
precisamente o autoritarismo "brando" (alternado com fases de
autoritarismo duro, como o da experiência do McCartismo poderá
fazer recordar todos aqueles que têm branqueado a sua memória da
história recente) é uma das características permanentes do
modelo norte-americano? É por pura casualidade que por esta razão
os EUA detenham um modelo de democracia de baixo nível, ao ponto que a
proporção de pessoas que se abstém de votar não se
vê em mais nenhuma parte e que outro facto que não é
acidental sejam precisamente os deserdados que ficam à margem das
votações em massa?
De que modo uma síntese dialéctica mais avançada do que o
capitalismo pudera reconciliar os direitos do indivíduo com os da
colectividade? De que modo esta possível reconciliação
podia dar mais transparência à vida individual e à vida em
sociedade? Esta são perguntas que não tentaremos desenvolver
aqui, apenas se propõem soltas, e que talvez constituam um repto
à concepção burguesa de democracia e identificam os seus
limites históricos.
Se, então, não há convergência, nem mesmo uma
convergência "natural", entre o mercado e a democracia, devemos
entender que o desenvolvimento entendido no seu sentido corrente de
crescimento económico acelerado através da expansão de
mercados (até agora tem havido poucas experiências de
desenvolvimento de uma forma diferente) é compatível com algum
grau avançado de democracia?
Não faltam factos que apoiem esta tese. Os "êxitos" da
Coreia, de Taiwan, do Brasil sob a ditadura militar, e dos populismos
nacionalistas em sua fase de ascensão (Nasser, Boumedienne, o Iraque de
Baath, etc.) não se realizaram por sistemas que tiveram muito respeito
pela democracia. Anteriormente, a Alemanha e Japão, na fase em que
captaram o momento, foram certamente menos democráticos que os seus
rivais Britânicos ou franceses. As experiências socialistas
modernas, foram ligeiramente democráticas, e ocasionalmente registraram
altos índices de crescimento. Por outro lado, pode-se observar que a
Itália democrática do pós-guerra se modernizava com uma
rapidez e uma profundidade, que o fascismo, com toda a sua verborreia, nunca
alcançou, e que a Europa ocidental, com a sua social democracia
avançada (no estado de bem estar do pós-guerra), experimentou o
mais prodigioso crescimento na história. Pode-se fortalecer a
comparação a favor da democracia enumerando incontáveis
ditaduras que só engendram estagnação e ainda massas
devastadoras de dificuldades interconectadas.
Poderíamos, então, adoptar uma posição reservada e
relativista, e recusar restabelecer qualquer espécie de
relação entre o desenvolvimento e a democracia, e dizer se
são compatíveis ou não, e isso dependeria de
condições concretas específicas? Essa atitude é
aceitável se nos contentarmos com a definição
"ordinária" de desenvolvimento, identificado com o crescimento
acelerado do sistema. Mas isto já não é aceitável,
se nós atendermos à segunda das três
proposições no começo deste estudo. Entender que o
capitalismo globalizado é por natureza polarizador e que o
desenvolvimento é um conceito crítico, que implica que o
desenvolvimento deve ocorrer dentro do marco da construção de uma
alternativa, a sociedade pós-capitalista. Esta construção
só pode ser o produto da vontade e da acção progressista
do povo. Existirá uma definição de democracia diferente
à que está implícita nessa vontade e nessa
acção? É neste sentido que a democracia é
verdadeiramente uma condição para o desenvolvimento. Mas esta
é uma proposição que não tem nada a ver com a que o
discurso dominante tenta dizer sobre este tema. A nossa
proposição conclui dizendo que, com efeito, não
poderá haver socialismo (se usarmos este termo para designar uma
alternativa pós-capitalista melhor) sem democracia, mas também
não pode haver progressos na democratização sem uma
transformação socialista. O observador "realista" que
estava à espera disto de mim, não perderá tempo a apontar
o facto da experiência do socialismo realmente existente ir contra a
validade da minha tese. Verdade. A versão popular do marxismo
histórico soviético efectivamente decreta a
abolição da propriedade privada e a sua
substituição pela propriedade social. No entanto, nem Marx nem
Lenine chegaram a esta simplificação. Para eles, a
abolição da propriedade privada constituía apenas um
primeiro passo no sentido de possibilitar a evolução para a
propriedade social. A propriedade social será uma realidade no momento
em que a democratização atingir substanciais progressos e no
momento em que os produtores intervierem em todas as decisões tomadas
aos mais diversos níveis, quer no seu local de trabalho, quer nas
cúpulas do estado. O mais optimista dos indivíduos não
poderia imaginar o alcançar deste cenário em qualquer parte do
mundo quer se trate dos EUA, da França ou do Congo em
poucos anos; da mesma forma, foi com optimismo que se proclamou o concretizar
do socialismo em poucos anos. Exige-se assim uma nova cultura, composta por
sucessivas gerações que se transformam mediante a sua
própria acção.
O leitor facilmente se aperceberá que há uma analogia, e
não uma contradição, entre: 1) o funcionamento no
capitalismo histórico, da relação entre o liberalismo
utópico e a direcção pragmática; 2) o funcionamento
na sociedade soviética, da relação entre o discurso
ideológico socialista e a direcção real. A ideologia
socialista de que aqui se fala é a bolchevique que, tal como a
socialdemocracia europeia anterior a 1914 (sem estar em desacordo com esta
neste ponto), não criticou a convergência "natural" das
lógicas estabelecidas entre os diferentes domínios da vida social
e atribuiu um "significado" linear e fácil ao curso
"necessário" da história. Esta é sem
dúvida uma maneira de interpretar o Marxismo histórico, mas
não a única (não é certamente a minha leitura de
Marx). A convergência é expressa assim da mesma maneira: quando
vista de forma dogmática, a direcção da economia imposta
pelo Plano (substituído pelo mercado) obviamente produz uma resposta
apropriada às necessidades. A democracia apenas pode reforçar as
decisões do Plano, opor-se a ele seria irracional. Contudo, o socialismo
demasiado imaginativo está contra os objectivos da
direcção do socialismo realmente existente, que enfrenta
problemas reais e sérios, entre outros, por exemplo, o desenvolvimento
das forças produtivas para "aproveitar um timing indicado". Os
poderes estabelecidos tendem para estas práticas cínicas que
não podem ser aceites. O totalitarismo é comum aos dois sistemas
e expressam-se da mesma maneira, mediante uma mentira sistemática. Se as
suas manifestações foram mais violentas na URSS, isto deve-se ao
facto do atraso a vencer ser sem dúvida maior, enquanto que o progresso
que se desenvolvia no Ocidente tinha confortáveis almofadas (sendo
frequente as expressões de "totalitarismo light" ou brando,
nas situações de consumismo nos períodos de crescimento
fácil).
Abandonar a tese da convergência e aceitar a do conflito entre as
lógicas dos diferentes domínios, é um pré-requisito
para a interpretação da história, de maneira a conciliar a
teoria com a realidade. É também o pré-requisito para
desenhar estratégias que permitam a realização de
acções efectivas isto é, realizar progressos aos
diferentes níveis da sociedade. A íntima relação
entre o desenvolvimento social e a democratização, seno que
são conceitos inseparáveis, nada tem a ver com aquilo que
é definido e proposto pela ideologia dominante. O seu pensamento
é sempre de segunda classe, confuso e ambíguo e, ao
contrário do que aparenta, reaccionário. Assim sendo, é o
instrumento perfeito do poder dominante do capital.
A democracia é necessariamente um conceito universalista, não
admitindo nenhum desvio a esta sua característica essencial.
Porém, o discurso dominante- mesmo aquele que provém de
forças autodenominadas de esquerda no fundo, uma
interpretação desvirtuada da democracia, que nega a unidade da
espécie humana e favorece por seu turno "raças",
comunidades", "grupos culturais", etc. A política de
identidade dos anglo-saxões é um exemplo claro da
negação de uma real igualdade dos indivíduos. Desejar
ingenuamente, embora com as melhores das intenções, formas
específicas de "desenvolvimento comunitário"
que serão reclamadas depois, foi algo que se surgiu por vontade expressa
democraticamente nas comunidades (nas Índias Ocidentais nos
subúrbios de Londres, entre os magrebinos em França, ou entre os
negros nos EUA, etc.) o que significa encerrar os indivíduos
dentro dessas comunidades e essas comunidades dentro dos limites apertados das
hierarquias que impõem esse sistema. Trata-se, no fundo, de um tipo de
apartheid não reconhecido como tal.
O argumento utilizado pelos promotores deste tipo "desenvolvimento
comunitário" parecia pragmático ("fazer algo pelos
despojados e pelas vítimas que se juntaram a essas comunidades") e
democrático ("as comunidades estão dispostas a afirmar-se
como tal"). Sem dúvida muitos conceitos universalistas foram e
continuarão a ser meramente retóricos, sem nenhuma
estratégia de acção concreta para a
transformação do mundo, que necessariamente teria que considerar
um conjunto de formas concretas de luta contra a opressão sofrida por
estes grupos minoritários. De acordo, porém a opressão a
não pode ser abolida se ao mesmo tempo lhe impusermos um espaço
dentro do qual se irá reproduzir, mesmo que com contornos mais suaves.
A vinculação que os membros destas comunidades oprimidas sentem
pela sua própria cultura de opressão, por muito que respeitemos,
em abstracto, os seus sentimentos, é, no entanto, um produto da crise da
democracia. Porque a efectividade, a credibilidade e a legitimidade da
democracia foram honradas, que os indivíduos buscam um refúgio na
ilusão de uma identidade particular que os possa proteger. Deparamo-nos,
assim, com a afirmação de cada uma destas comunidades
(religiosas, sexuais, étnicas) faz dos seus próprios valores (que
não têm um significado universal). O culturalismo, como foi dito
antes, não é o complemento da democracia, nem tão pouco
uma forma de a aplicar concretamente, mas a sua contradição.
A globalização das lutas sociais:
Condições para uma retoma do desenvolvimento
Os cenários do futuro dependem largamente da nossa visão sobre as
relações entre as fortes tendências objectivas e as
respostas que os povos e das forças sociais de que são compostas,
dêem que representam essas tendências. Assim, há um elemento
de subjectividade, de intuição, que não se pode eliminar.
Contudo, é positivo, já que significa que o futuro não
está programado de antemão, que é produto da
imaginação criativa, para usar a forte expressão de
Castoriadis, tem o seu lugar na história.
É particularmente difícil fazer previsões num
período como o nosso, quando todos os mecanismos políticos e
ideológicos que governam a conduta dos diversos intervenientes
desapareceram. Quando o período do pós- segunda guerra mundial
terminou, a estrutura da vida política colapsou.
Tradicionalmente as lutas políticas e a vida política
conduziam-se no contexto dos estados nacionais, cuja legitimidade não
era questionada (a legitimidade de um governo podia questionar-se, mas
não a de um estado). Atrás e por dentro do estado, os partidos
políticos, os sindicatos, e umas quantas grandes
instituições como as associações nacionais
de empresários e os círculos que os média designavam por
"classe política" ... constituíam a estrutura
básica do sistema onde se expressavam os movimentos políticos, a
luta de classes, e as correntes ideológicas. Mas agora, constatamos em
quase todos os lugares do mundo, que estas instituições perderam,
toda ou quase toda, a sua legitimidade. As pessoas "já não
acreditam nelas". Assim, em seu lugar, surgiram "movimentos" de
diversa natureza, movimentos centrados nas reivindicações dos
Verdes, o movimento das mulheres, movimentos pela democracia e justiça
social, e movimentos que afirmam a sua identidade como comunidades
étnicas ou religiosas. Esta nova forma de vida política é,
por isso, altamente instável.
Valeria a pena discutir concretamente a relação entre essas
reivindicações dos movimentos e a crítica radical da
sociedade (isto é, do capitalismo realmente existente) e a
direcção da globalização neoliberal. Já que
alguns destes movimentos se juntam ou podem juntar-se para o
retrocesso da sociedade projectada pelos poderes dominantes, e outros, pelo
contrário, não se interessam nem nada fazem para se opor. Alguns
movimentos são manipulados e apoiados pelos poderes dominantes, de forma
aberta ou encoberta, e outros combatem-nos veemente esta é a
regra na nova e ainda não muito bem estabelecida vida política.
Há uma estratégia política global para o governo mundial.
O objectivo desta estratégia é provocar a maior
fragmentação possível das forças potencialmente
hostis ao sistema, apadrinhando a atomização das formas de
organização estatais da sociedade. Que haja tantas e tantas
Eslovénias, Chechenias, Kosovos e Kuwaits, e quantas mais melhor! Em
relação com isto, torna-se bem-vinda a possibilidade de manipular
as reivindicações baseadas nas identidades separadas. A
questão da identidade de uma comunidade seja étnica,
religiosa, ou de qualquer outra classe é um dos problemas
centrais da nossa época.
O princípio democrático básico, que implica um verdadeiro
respeito pela diversidade (nacional, étnica, religiosa, cultural e
ideológica), não pode tolerar nenhuma excepção. A
única maneira de sustentar a diversidade é mediante a
prática de uma genuína democracia. Falhando isto, chega a ser
inevitável um instrumento que o adversário pode usar para os seus
próprios fins. Mas a este respeito, as diversas esquerdas na
história também têm faltado. Nem sempre, mas muito menos do
que se costuma dizer. Um exemplo entre outros: a Jugoslávia de Tito foi
quase um modelo de coexistência de nacionalidades, numa base de
igualdade, mas não na Roménia. No terceiro mundo, no
período de Bandung, os movimentos de libertação nacional
não se concertavam para unir os diferentes grupos étnicos e
comunidades religiosas contra o inimigo imperialista. Muitas classes dirigentes
na primeira geração dos estados africanos, eram realmente
trans-étnicas. Mas poucos poderes foram capazes de administrar a
diversidade democraticamente ou, quando se beneficiavam com ela, de
mantê-la. A sua débil inclinação democrática
produziu resultados deploráveis tanto neste domínio como na
administração de outros problemas das suas sociedades. Quando
chegou a crise, as classes dirigentes muito pressionadas, e sem poderes para
confrontar, chegaram a potenciar a separação de alguma comunidade
étnica, que foi usado como um meio para prolongar o seu
"controlo" sobre as massas. Ainda em muitas autênticas
democracias burguesas, a diversidade entre as comunidades está longe de
ser administrada correctamente. A Irlanda do Norte é um claro exemplo.
O culturalismo tem sido um êxito na medida que tem falado na
administração democrática da diversidade. Por culturalismo
quero significar que as diferenças em questão são
"primordiais", às quais se deve dar "prioridade"
(sobre as diferenças de classe, por exemplo), inclusivamente, estas
diferenças são trans-históricas, isto é, são
baseadas em invariáveis históricas. (este último é
frequentemente o caso com os culturismos religiosos, que facilmente deslizam
para o ocultismo e fanatismo).
Para sair deste imbróglio das reivindicações relacionadas
com a identidade, proponho o que penso ser um critério essencial. Os
movimentos cujas reivindicações estão ligadas à
luta contra a exploração e por uma democracia mais ampla em todos
os seus domínio, são progressistas. Pelo contrário, os que
se representam a si mesmos, como carentes de um "programa social"
(já que pressupõem que tal não é importante) e que
se declaram "não hostis à globalização"
(porque também não é importante) a posteriori que
se declaram adversos ao conceito de democracia (que acusam ser uma
invenção do Ocidente) são abertamente
reaccionários e servem na perfeição os interesses do
capital dominante. O Capital dominante tem consciência disto e apoia as
suas exigências (ainda que os média tirem vantagens do seu
bárbaro conteúdo para expor os povos que são suas
vítimas), usando e manipulando estes movimentos.
A democracia e o direito dos povos, invocados hoje por esses mesmos
representantes do capital dominante, dificilmente se podem conceber, excepto
como meios políticos da direcção neoliberal na crise
contemporânea mundial, como complementos dos meios económicos. A
democracia em questão depende de cada caso. O mesmo é verdade em
respeito ao "bom governo", de que também falam. Até
porque isto fica inteiramente ao serviço das prioridades que
impõem as estratégias dos EUA/Tríade, e é
também cinicamente usado como instrumento. Daí a extensa
aplicação dos dois pesos e duas medidas. Por exemplo, nada de
intervenções em favor da democracia no Afeganistão ou nos
países do Golfo Pérsico, assim como não se meteram ainda
nos caminhos de Mobutu, ou hoje, nos de Savimbi, e de muitos outros
amanhã. Em alguns casos os direitos dos povos são sagrados (hoje
no Kosovo, amanhã no Tibete), e em outros casos são esquecidos
(na Palestina, no Curdistão, Chipre, em relação aos
Sérvios da Krajina, que os Croatas expulsaram pela força, etc.).
Inclusive o terrível genocídio do Ruanda não ocasionou
nenhuma investigação séria sobre as responsabilidades dos
estados que deram o seu apoio diplomático aos governos que o prepararam
abertamente. Sem dúvida que a abominável conduta de certos
regimes facilita a tarefa de arranjar pretextos que são fáceis de
explorar. Mas o silêncio cúmplice em outros casos retira toda a
credibilidade a estes discursos sobre a democracia e o direitos dos povos.
É-nos impossível deixar de cumprir requerimentos da luta pela
democracia e respeito pelos povos, sem os quais não há progresso.
É este felizmente o caso que estamos a assistir nesta nova fase de
ascensão das lutas em que estão envolvidos os povos
trabalhadores, vítimas do sistema. Os sem terra no Brasil; os salariados
e desempregados, em alguns países da Europa; sindicatos que incluem a
grande maioria daqueles que recebem um salário (na Coreia do Sul ou na
África do Sul); jovens e estudantes que trazem consigo as classes
trabalhadoras urbanas (como na Indonésia) e a lista cresce cada
dia. Estas lutas sociais estão destinadas a expandir-se. Serão
certamente muito pluralistas, o que é uma das características do
nosso tempo. Sem dúvida que este pluralismo surge dos resultados
acumulados dos chamados "novos movimentos sociais" os
movimentos feministas, os movimentos ecologistas, os movimentos
democráticos. Claro que terão que enfrentar diferentes
obstáculos ao seu desenvolvimento, dependendo do tempo e do lugar.
O problema central aqui é qual a relação que
existirá entre os conflitos dominantes, refiro-me aos conflitos globais
entre as diversas classes dominantes isto é, os estados
cuja geometria possível tratei de delinear aqui. Quem vencerá?
As lutas sociais estarão subordinadas, contidas no mais amplo contexto
imperial-global dos conflitos, controladas pelo poder dominante e mobilizadas
pelos seus propósitos se não mesmo simplesmente manipuladas? Ou,
pelo contrário, as lutas sociais ganharão autonomia e
forçarão o poder a adaptar-se às suas exigências?
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[*]
Director do Gabinete Africano do Terceiro
Fórum Mundial, uma associação não governamental
internacional para a Investigação e o Debate com sede em Dakar
(Senegal). É autor de
numerosos livros e artigos, incluindo "Espectros do Capitalismo",
publicado Monthly Review Press, 1998. Tradução de Susana Paisana.
O original deste artigo encontra-se na publicação venezuelana
http://www.koeyu.com/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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