A ambição desmedida e criminosa dos EUA
O mundo produz, os Estados Unidos consomem.
A "vantagem" dos Estados Unidos é a vantagem de um predador
cujo déficit é coberto pelo aporte de outros, consentido ou
forçado. Os meios usados por Washington para compensar suas
deficiências são de naturezas diversas: violações
unilaterais repetidas do liberalismo, exportação de armamentos em
grande parte impostos a aliados subalternos, busca de rendas
petrolíferas suplementares (que pressupõe a
imposição da ordem entre os produtores, motivo real das guerras
na Ásia Central e no Iraque).
Desde os anos 80, quando é anunciado o colapso do sistema
soviético, desenha-se uma opção pela hegemonia que
conquista a classe dirigente dos Estados Unidos. Levados pela vertigem de seu
poder armado, desde então sem concorrente, os Estados Unidos decidem
afirmar sua dominação, pelo desencadeamento de uma
estratégia estritamente militar de "controle do planeta".
A estratégia política de acompanhamento do projeto prepara os
seus pretextos, seja quando se trate do terrorismo, da luta contra o
narcotráfico ou da acusação de produção de
armas de destruição em massa.
A "guerra preventiva", formulada desde então como um
"direito" que Washington invoca para si, faz abolir logo de
início qualquer direito internacional. A Carta das Nações
Unidas proíbe o recurso à guerra, salvo no caso de
legítima defesa; e submete a condições severas sua
eventual intervenção militar, que deve ser comedida e
provisória. Todos os juristas sabem que as guerras empreendidas desde
1990 são perfeitamente ilegítimas e portanto que, em
princípio, os que assumiram a responsabilidade de desencadeá-las
são criminosos de guerra. As Nações Unidas já
são tratadas pelos Estados Unidos, mas com a cumplicidade de outros
países, como foi no passado tratada a Liga das Nações
pelos Estados fascistas.
A abolição do direito dos povos, já consumada, substitui o
princípio da igualdade pelo da distinção entre um
Herrenvolk* (o povo dos Estados Unidos e acessoriamente o de Israel) que tem o
direito de conquistar o "espaço vital" que julga
necessário, e os outros povos, cuja própria existência
não é nem mesmo tolerável, a não ser que não
represente uma "ameaça" ao desenvolvimento de projetos dos
autoproclamados "senhores do mundo". Tornamo-nos todos, aos olhos do
establishment de Washington, uns "peles- vermelhas", quer dizer,
povos que não têm direito à existência a não
ser na medida em que não prejudiquem a expansão do capital
transnacional americano.
ESTADO DA ECONOMIA
Quais são esses interesses "nacionais" que a classe dirigente
dos Estados Unidos se reserva o direito de invocar como melhor lhe
pareça? Na verdade, essa classe possui um único objetivo -
"fazer dinheiro" -, tendo o Estado americano se colocado aberta e
prioritariamente a serviço do segmento dominante do capital
constituído pelas transnacionais dos Estados Unidos.
Esse projeto é imperialista no sentido mais brutal, pois não se
trata de gerenciar o conjunto das sociedades do planeta para integrá-las
num sistema capitalista coerente, mas somente de saquear os seus recursos. A
redução do pensamento social aos postulados de base da economia
vulgar, reforçada pela disposição dos meios militares que
se conhecem, é responsável por essa derivação
bárbara que o capitalismo carrega em seu interior e que o
desembaraça de todo sistema de valores humanos, substituído pela
submissão às pretensas leis do mercado. Pela história de
sua formação, o capitalismo americano se prestava a esse
reducionismo de modo ainda melhor do que o das sociedades européias.
Pois o Estado americano e sua visão política foram formados para
servir a economia e nada mais, abolindo por isso mesmo a relação
contraditória e dialética entre a economia e a política. O
genocídio dos índios, a escravidão dos negros, a
sucessão de ondas de migrações substituindo a
maturação da consciência de classe pelo confronto de grupos
que partilhariam pretensas identidades comunitárias (manipuladas pela
classe dirigente) produziram uma gestão política da sociedade por
um partido único do capital, em que os dois segmentos partilham as
mesmas visões estratégicas globais, partilham retóricas
adequadas para se dirigir a cada um dos "eleitorados" da pequena
metade da sociedade que crê no sistema o bastante para se dar o trabalho
de ir votar. Privada da tradição pela qual os partidos
operários social-democratas e comunistas marcaram a
formação da cultura política européia moderna, a
sociedade americana não dispôs de instrumentos ideológicos
que lhe permitissem resistir à ditadura do capital.
Se esse projeto deve se desenvolver durante ainda um certo tempo, ele
não gerará mais do que um caos crescente, exigindo uma
gerência cada vez mais brutal a cada golpe, sem visão
estratégica a longo prazo. No limite, Washington não
buscará mais reforçar alianças verdadeiras, o que imporia
fazer concessões. Governos fantoches, como o de Karzai no
Afeganistão, cumprem melhor a tarefa enquanto o delírio da
potência militar levar à crença da
"invencibilidade" dos Estados Unidos. Hitler pensava assim.
"VANTAGEM DO PERDEDOR"
A opinião geral mais corrente é que o poder militar dos Estados
Unidos constituiria apenas a ponta do iceberg, prolongando uma superioridade do
país em todos os domínios, notadamente os econômicos, e
ainda os políticos e culturais. A submissão à hegemonia
que ele preconiza seria, portanto, incontornável.
O exame das realidades econômicas, porém, não dá
apoio a tal opinião. O sistema produtivo dos Estados Unidos está
longe de ser "o mais eficiente do mundo". Ao contrário, quase
nenhum de seus segmentos teria certeza de vencer os seus concorrentes num
mercado verdadeiramente aberto como o imaginado pelos economistas liberais.
É prova disso o déficit comercial do país que se agrava de
ano para ano, tendo passado de 100 mil milhões de dólares em 1989
a
450 mil milhões em 2000. Além disso, tal déficit se refere
a
praticamente todos os segmentos do sistema produtivo. Mesmo o excedente de que
se beneficiavam os Estados Unidos no domínio dos bens de alta
tecnologia, que era de 35 mil milhões em 1990, desde então deu
lugar
a um déficit. A concorrência entre o Ariane e os foguetes da Nasa,
o Airbus e o Boeing mostra a vulnerabilidade da vantagem americana. Diante da
Europa e do Japão para os produtos de alta tecnologia, da China, da
Coréia e dos outros países industrializados da Ásia e da
América Latina para os bens manufaturados triviais, diante da Europa e
do Cone Sul da América Latina para a agricultura, os Estados Unidos
não triunfariam, provavelmente, sem o recurso dos meios
"extra-econômicos" que violam os princípios do
liberalismo impostos aos seus concorrentes!
A economia americana vive como parasita em detrimento de seus parceiros no
sistema mundial. "Os Estados Unidos dependem, para 10 por cento de seu
consumo industrial, de bens cuja importação não é
coberta pelas exportações de produtos nacionais" (E. Todd.,
Depois do Império, página 80).
O mundo produz, os Estados Unidos consomem. A "vantagem" dos Estados
Unidos é a vantagem de um predador cujo déficit é coberto
pelo aporte de outros, consentido ou forçado. Os meios usados por
Washington para compensar suas deficiência são de naturezas
diversas: violações unilaterais repetidas do liberalismo,
exportação de armamentos em grande parte impostos a aliados
subalternos, busca de rendas petrolíferas suplementares (que
pressupõe a imposição da ordem entre os produtores, motivo
real das guerras na Ásia Central e no Iraque). Resta dizer que o
essencial do déficit americano é coberto pelos aportes em
capitais provenientes da Europa e do Japão, aos quais se deve
acrescentar a punção exercida em nome do serviço da
dívida imposta à quase totalidade da periferia do sistema mundial.
A solidariedade dos segmentos dominantes do capital transnacional de todos os
parceiros desse trio é real, e se exprime por sua adesão ao
neoliberalismo globalizado. Os Estados Unidos são vistos nessa
perspectiva como os defensores (militares, se necessário) desses
"interesses comuns". Washington não busca "partilhar com
eqüidade" os lucros de sua liderança. Os Estados Unidos se
empenham, ao contrário, em tornar vassalos seus aliados, e dentro desse
espírito não estão preparados para deixar a seus aliados
subalternos do trio mais do que concessões menores. Esse conflito de
interesses estará destinado a se agudizar a ponto de desencadear uma
ruptura na Aliança Atlântica? Não é
impossível, mas é pouco provável.
O conflito promissor se situa num outro terreno. O das culturas
políticas. Na Europa, uma alternativa de esquerda se mantém
sempre possível. Essa alternativa imporia simultaneamente uma ruptura
tanto com o neoliberalismo quanto com o alinhamento às
estratégias políticas dos Estados Unidos. O excedente de capitais
que a Europa se contenta até agora em "colocar" nos Estados
Unidos poderia então ser alocado a um relançamento
econômico e social, sem o que esse relançamento continuará
impossível. Mas, assim que a Europa escolhesse, por esse meio, dar
prioridade a seu desenvolvimento econômico e social, a saúde
artificial da economia dos Estados Unidos entraria em colapso e a classe
dirigente americana se veria em confronto com seus próprios problemas
econômicos e sociais. Eis por que "a Europa será de esquerda
ou não será nada".
A LÓGICA DE HITLER
As causas que estão na origem do enfraquecimento do sistema produtivo
dos Estados Unidos são complexas. Mas são estruturais. A
mediocridade dos sistemas de ensino geral e da formação, produto
de um preconceito tenaz que favorece sistematicamente o "privado" em
detrimento do serviço público, é uma das razões
mais importantes da crise profunda que a sociedade dos Estados Unidos atravessa.
A opção militarista dos Estados Unidos ameaça todos os
povos. É proveniente da mesma lógica que foi no passado a
lógica de Adolf Hitler: modificar pela violência militar as
relações econômicas e sociais em favor do Herrenvolk do
momento. Essa opção, ao se impor à frente do
cenário internacional, sobredetermina todas as conjunturas
políticas, pois a efetivação do desencadeamento desse
projeto fragilizaria a um ponto extremo os avanços que os povos pudessem
obter por suas lutas sociais e democráticas. Pôr em xeque o
projeto militarista dos Estados Unidos se torna então a tarefa
primordial, a responsabilidade maior, para todos. Sem dúvida, um certo
número de governos do Terceiro Mundo é odioso. Mas o caminho para
a necessária democratização não passa, certamente,
por sua substituição por regimes fantoches vindos nos blindados
do invasor, abandonando os recursos de seu país à pilhagem das
transnacionais americanas.
O combate para pôr em xeque o projeto dos Estados Unidos é, com
certeza, multiforme. Comporta aspectos diplomáticos (defender o direito
internacional), militares (se impõe o rearmamento de todos os
países para enfrentar as agressões projetadas por Washington -
nunca esquecer que os Estados Unidos utilizaram armas nucleares quando tinham o
seu monopólio e renunciaram a elas durante o tempo em que não
tinham mais esse monopólio) e políticos (notadamente no que se
refere à construção européia e à
reconstrução de uma frente dos não-alinhados).
O combate contra o imperialismo dos Estados Unidos e sua opção
militarista é o combate de todos os povos, de suas vítimas
maiores da Ásia, África e América Latina, dos povos
europeus e japoneses condenados à subordinação, mas
também igualmente do povo americano. Saudemos aqui a coragem de todos
aqueles que, "no coração da besta", recusam se
submeter, como seus predecessores recusaram ceder ao macarthismo dos anos 1950.
Como aqueles que ousaram resistir a Hitler, eles conquistaram todos os
títulos de nobreza que a história pode conceder. A classe
dominante dos Estados Unidos será capaz de voltar atrás do
projeto criminoso a que aderiu? Uma pergunta que não é
fácil de ser respondida. Evidentemente, algumas derrotas
políticas, diplomáticas e talvez mesmo militares poderiam
encorajar as minorias que, no seio do establishment dos Estados Unidos,
aceitariam renunciar às aventuras militares nas quais seu país se
engajou.
Se tivessem reagido em 1935 ou 1937, os europeus teriam conseguido deter o
delírio hitlerista. Reagindo somente em setembro de 1939, eles se
infligiram dezenas de milhões de vítimas. Atuemos para que,
diante do desafio dos neonazistas de Washington, a resposta seja mais precoce.
[*]
O autor é egípcio, formou-se em Paris e
dirige o Fórum do Terceiro Mundo em Dacar, autor de "A
Acumulação em Escala Mundial".
Publicado originalmente na revista brasileira
Caros Amigos
, edição 73, abril de 2002.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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