Rússia e Estados Unidos: Uma nova relação estratégica
após a agressão militar contra o Iraque?

por Francisco Brown Infante [*]

Em outros tempos a Rússia teve dirigentes que sabiam o que fazer. A agressão militar desencadeada pelos EUA e Inglaterra contra o Iraque colocou em xeque a política exterior russa: em sua orientação estratégica com relação ao Ocidente, deverá o Kremlin aprofundar seus vínculos com a Europa ou, ao contrário, continuar mantendo como máxima prioridade sua aliança estratégica com os Estados Unidos?

Para um setor da elite política russa, Moscou deverá continuar e ampliar seu acordo com Paris e Berlim na oposição a uma solução militar para o conflito do Iraque, com o sentido de confirmar a formação de uma “superpotência euro-asiática” integrada pela Rússia, França e Alemanha, que deve estruturar-se como um contrapeso estratégico à hegemonia unilateral dos Estados Unidos.

Esta posição está apoiada especialmente em considerações geopolíticas. Uma vitória norte americana na guerra contra o Iraque permitiria a Washington garantir sua presença militar em todos os países situados no flanco sul das fronteiras russas, com exceção do Irã, um cenário que colocaria Moscou em uma difícil posição numa área antes definida como de interesse estratégico para o país, a partir da qual estaria substancialmente limitada sua influência político-militar na referida região.

Em setores da hierarquia militar existe igualmente inquietação sobre as mudanças que se poderiam produzir no entorno geográfico próximo às fronteiras do sul da Rússia, além de descontentamento e irritação devido à passividade dos dirigentes do país ante este possível desenvolvimento dos acontecimentos. Tais sentimentos são compartilhados pelas forças políticas nacionais patrióticas, que desde há algum tempo vêm expressando seu desacordo com o acentuado “atlantismo” da política exterior russa.

Como elemento adicional na análise das alternativas futuras da política exterior russa deve ter-se em conta que a posição de repúdio à guerra conta com um consistente apoio de 82% da população.

Neste sentido, pesquisas recentemente realizadas indicam que — apesar de não ser tão maciça e atuante como ocorreu durante a agressão norte americana à Iugoslávia em 1999 — cerca de 37% dos entrevistados consideram que os Estados Unidos agride unicamente para apossar-se do petróleo iraquiano, e cerca de 29% acreditam que a agressão reflete o desejo de Washington de consolidar sua hegemonia mundial, o que leva o Kremlin à sua atitude contrária à guerra.

Outros analistas, assim como a maior parte dos políticos russos, consideram que, ao contrário, a Rússia deverá manter o rumo inicialmente adotado de uma aliança estratégica com os Estados Unidos, participando dos lucros da guerra movida contra o país árabe. As divergências surgidas entre ambos os países, motivadas pelo conflito do Iraque — sugerem os que defendem esta variante — ainda que tenha levado a um certo esfriamento dos vínculos bilaterais não os abalaram sensivelmente e os mantiveram nos níveis alcançados após os acontecimentos de 11 de setembro de 2001.

A partir deste pressuposto, não é aceita a posição russa de condenar a agressão ao Iraque, argumentando que ela fere os interesses do país: “A Rússia poderá pagar caro — analisa o cientista político russo Andrei Piontkowzkj — o erro estratégico de opor-se à superpotência que são os Estados Unidos”.

Um argumento adicional que está sendo debatido para fundamentar este futuro caminho da diplomacia russa é constituído pelos interesses russos, nada desprezíveis, com relação ao Iraque, que incluem tanto a dívida acumulada por este país com Moscou desde os tempos da antiga URSS, como a significativa presença de consórcios petrolíferos russos na indústria de petróleo iraquiana. De outro lado, — argumentam os partidários de uma aliança estratégica com Washington — seriam fechadas para Moscou as portas da Organização Mundial do Comércio (OMC) caso perca o apoio dos Estados Unidos, e, sob o outro aspecto, seriam abalados seus tradicionais vínculos com os Estados da região do Golfo.

Dessa forma, produz-se realmente o ressurgimento do dilema da política exterior russa pós-soviética: consolidar um aliança estratégica com a Europa ou, com os Estados Unidos. Apesar da existência destes dois enfoques, tudo parece sugerir que o Kremlin não optará por uma reorientação fundamental de sua política exterior no sentido de reduzir ou limitar suas relações com Washington. Ao contrário, serão feitos novos esforços para ampliar e consolidar as mesmas. Os seguintes elementos mostram as grandes probabilidades deste cenário:

  • Ao mesmo tempo em que a Rússia mostrou certa firmeza na sua posição junto com a França e a Alemanha de repelir a guerra contra o Iraque e a possibilidade de apresentar seu veto ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, a determinação de última hora de Washington e Londres de não apresentar a segunda resolução que legitimaria a agressão, evitou-lhe — no momento decisivo — um pronunciamento neste sentido. É curioso o fato de que os partidários da guerra expressaram sua irritação contra a coerência com que França manteve a ameaça da aplicação do veto, sem incluir a Rússia em suas críticas.

  • Enquanto a França manteve clara e consistentemente sua posição contra a guerra expressa pelo seu Presidente, no caso da Rússia foi “delegada” a tarefa de expressar a posição do Kremlin ao chanceler Igor Ivanov. Deste modo, o presidente russo conseguiu eximir-se de apresentar-se publicamente como um adversário pessoal das posições bélicas norte americanas e inglesas, mesmo quando ressaltou em várias oportunidades a necessidade de ater-se às normas do Direito Internacional e à autoridade do Conselho de Segurança.

  • Apesar de o Kremlin ter lamentado o ultimato que a administração Bush deu ao Iraque, considerando-o como “ilegal e ao mesmo tempo como ameaça de eliminação do governo de um Estado soberano mediante a aplicação da violência militar” é de se notar que algumas horas antes de consumar-se a agressão, os presidentes Putin e Bush mantiveram uma conversa telefônica, no decorrer da qual os dois presidentes concordaram em que “os contatos bilaterais [entre os dois países] são tão importantes como nunca em tempos de crise, como a atual” segundo informou o serviço de imprensa da presidência da Russa. Para os observadores, esta coincidência de critérios mostra uma determinação recíproca de não estremecer as relações bilaterais.

  • Em recentes declarações o chanceler Ivanov expressou a idéia de que “apesar das diferenças continuamos sendo sócios. Não somos adversários. E os sócios devem buscar conjuntamente uma saída para a situação que se formou, me refiro à situação criada em torno do Iraque”. Para o Kremlin esta determinação não está isenta de importantes desafios internos. Trata-se, sobretudo, da reação que pode haver entre a população russa de religião mulçumana perante esta agressão. No Daguestão, por exemplo, uns 8.000 voluntários – todos veteranos da guerra no Afeganistão – proclamaram a disposição de se juntar à resistência armada do povo iraquiano, eventualidade que se concretizada poderá provocar a irritação de Washington.

De tudo o que foi exposto deduz-se que o establishment político russo – surpreendido pela posição sustentada pelo Kremlin contra uma agressão militar ao Iraque – encontra-se dividido no que diz respeito à posição que doravante a Rússia deverá adotar face aos Estados Unidos.

Nesta fratura do consenso interno o Kremlin parece buscar apoio junto aos políticos e aos oligarcas da indústria do petróleo que apostam no aprofundamento e consolidação da aliança estratégica com Washington. E assim, finalmente, a avaliação de um setor majoritário da classe política russa apóia-se em um rigoroso pragmatismo: após a vitória dos Estados Unidos sobre o Iraque, durante o processo de reconstrução do arrasado país árabe, tudo voltará a ser como antes, no sentido de que tanto a ONU como a Rússia serão levadas em conta.

Partindo do exposto, apesar de ter existido diferença de opinião em relação ao tema Iraque, é de se esperar que os vínculos russo-norte-americanos permanecerão e serão ampliados, independentemente das formas concretas, das várias direções dos mesmos e do formato concreto que adotarem e terão que se ajustar muito mais aos interesses e aspirações dos Estados Unidos que aos da Rússia. E isto terá, seguramente, uma importante projeção nas relações políticas internacionais daqui para a frente.

[*] Investigador do Centro de Estudios Europeos, de La Habana.
Tradução de Esther Maria Duarte Lucio Bittencourt


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

01/Abr/03