Na segunda-feira, 17 de Junho, a Organização do Tratado do Atlântico Norte lançou a OPERAÇÃO STEADFAST NOON, seu exercício anual de capacidade para travar um conflito nuclear. Considerando que o guarda-chuva nuclear da NATO se estende exclusivamente sobre a Europa, o facto indiscutível é que a STEADFAST NOON é nada mais do que um treino da NATO para travar guerra nuclear contra a Rússia.
Guerra nuclear contra a Rússia.
O leitor deveria meditar nisto for um momento.
Não se preocupe, a porta-voz da NATO, Oana Lungscu, tranquilizou o resto do mundo afirmando que o objetivo do STEADFAST NOON é garantir que a capacidade da NATO para combater uma guerra nuclear “permanece segura e eficaz”. É um exercício “de rotina”, não ligado a quaisquer eventos do mundo atual. Além disso, nenhumas armas nucleares “reais” serão utilizadas – só armas “falsas”.
Nada de preocupante nisto.
Entra em cena no teatro nuclear Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO. Numa declaração à imprensa em 11 de Outubro, Stoltenberg afirmou que “a vitória da Rússia na guerra contra a Ucrânia será uma derrota da NATO”, anunciando antes de modo sinistro: “Isto não pode ser permitido”.
Para este objetivo, declarou Stoltenberg, os ensaios STEADFAST NOON continuariam tal como programados. Estes ensaios, disse ele, eram um importante mecanismo dissuasor frente às “veladas ameaças nucleares” russas.
Mas eles não estavam relacionados a quaisquer eventos atuais do mundo.
Entra em cena Volodymir Zelensky, no palco à esquerda. Ao falar ao Instituto Lowy, um think tank não partidário da Austrália, o presidente ucraniano apelou à comunidade internacional a que empreendesse “ataques antecipativos (preemptive), ação preventiva” contra a Rússia para deter a utilização potencial de armas nucleares contra a Ucrânia por parte da Rússia.
Apesar de muitos observadores interpretarem as palavras de Zelensky como implicando um pedido para que a NATO executasse um ataque nuclear antecipativo contra a Rússia, ajudantes de Zelensky rapidamente tentaram corrigir o registo, dizendo que ele estava simplesmente a pedir mais sanções.
Entra em cena Joe Biden, no palco central. Ao falar numa sessão de angariação de fundos em 6 de Outubro, o presidente dos Estados Unidos disse que “Pela primeira vez desde a crise cubana dos mísseis, temos uma ameaça direta do uso de uma arma nuclear se de facto as coisas continuarem a resvalar pelo caminho que seguem”.
Biden prosseguiu: “Temos um sujeito que conheço razoavelmente bem. Ele não está a brincar quando fala acerca da utilização potencial de armas nucleares ou de armas biológicas ou químicas porque os seus militares, pode-se dizer, têm um desempenho significativamente baixo.
Biden concluiu: “Eu não penso que haja qualquer coisa tal como a capacidade de utilizar facilmente uma arma nuclear tática e não acabar com um Armagedão”.
Apesar de a Casa Branca ter deixado bastante claro que os comentários de Biden eram a sua visão pessoal, e não baseadas em qualquer nova inteligência respeitante à postura nuclear russa, o facto de um presidente dos EUA falar acerca da possibilidade de um “Armagedão” nuclear deveria provocar calafrios em todo o indivíduo são do mundo.
Nenhuma conversa do Kremlin acerca de armas nucleares táticas
Em primeiro lugar, não houve nenhuma conversa acerca do emprego de armas nucleares táticas por parte do Kremlin.
Zero.
O presidente russo, Vladimir Putin, indicou que a Rússia utilizaria “todos os meios à sua disposição” para proteger a Rússia. Ele disse isto mais recentemente em 21 de Setembro, num discurso na TV anunciando mobilização parcial, em que acusou o ocidente de empenhar-se em “chantagem nuclear”, citando “declarações de alguns representantes de alta categoria dos estados líderes da NATO acerca da possibilidade de usar armas nucleares de destruição em massa contra a Rússia”.
Putin estava a aludir a uma declaração de Liz Truss feita antes da sua eleição como primeira-ministra da Grã-Bretanha, quando, em resposta a uma pergunta sobre se ela estaria pronta a tomar a responsabilidade de ordenar a utilização do arsenal nuclear britânico, respondeu: “Penso que é um dever importante do primeiro-ministro e estou pronta a fazê-lo”.
“Quero recordar-lhe” o que disse Putin:
“que o nosso país também tem vários meios de destruição e em alguns componentes mais modernos do que aqueles dos países da NATO. E se a integridade territorial do nosso país for ameaçada, certamente utilizaremos todos os meios à nossa disposição para proteger a Rússia e o nosso povo”.
As declarações de Putin foram coerentes com as do ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, o qual num discurso à 10ª Conferência de Moscovo sobre Segurança Internacional, feito em 16 de Agosto, asseverou que a Rússia não utilizaria armas nucleares na Ucrânia. De acordo com Shoigu, as armas nucleares russas são autorizadas para utilização sob “circunstâncias excecionais” tal como descrito na doutrina russa publicada, nenhuma das quais se aplica à situação na Ucrânia. Qualquer conversa sobre o uso de armas nucleares na Ucrânia por parte da Rússia, disse Shoigu, era “absurda”.
[Relacionado: Scott Ritter: The Onus Is on Biden & Putin]
Aparentemente não para Biden, o qual apesar da sua afirmação de que conhece Putin “razoavelmente bem”, entendeu tudo errado ao falar acerca do potencial para conflito nuclear.
O risco não é de que Rússia comece uma guerra nuclear anticipativa sobre a Ucrânia.
O risco é que a América o faça.
A promessa de Biden de “política de propósito único”
Biden tomou posse em Fevereiro de 2021 prometendo consagrar na doutrina nuclear dos EUA uma “política de propósito único”, sob a qual “o único propósito do nosso arsenal nuclear deveria ser deter – e, se necessário, retaliar – um ataque nuclear”.
E agora, em meados de Outubro de 2022, a América encontra-se numa situação em que o próprio presidente teme um potencial “Armagedão” nuclear.
Se alguma vez houvesse um momento para Biden cumprir a sua promessa, seria agora.
Mas ele permanece em silêncio.
O perigo inerente no silêncio de Biden é que Putin e outros responsáveis russos preocupados com a segurança nacional do país devem confiar na doutrina nuclear existente publicada pelos EUA, a qual continua a consagrar uma política de antecipação (pre-emption) nuclear desde a administração do presidente George W. Bush. Sob esta doutrina, armas nucleares são apenas outra ferramenta ao dispor dos militares, a ser usada como e quando necessário, incluindo ocasiões em que a destruição de alvos no campo de batalha para o simples propósito de ganhar uma vantagem operacional é o objetivo.
Alguém pode argumentar que esta espécie de antecipação não nuclear tem o seu próprio valor dissuasor, uma espécie de intuição “louca” (“madman”) que faz um oponente perguntar-se se o presidente poderia atuar de um modo tão irracional.
“Chamo a isto a Teoria do Louco” (Madman Theory), disse confirmadamente o presidente Richard Nixon ao seu assistente, Bob Haldeman, durante a Guerra do Vietname. “Quero que os norte-vietnamitas acreditem que chegou ao ponto em que posso fazer qualquer coisa para parar a guerra. Basta apenas dizer-lhes “pelo amor de Deus, sabe que Nixon está obececado com o comunismo. Não podemos contê-lo quando está raivoso – e ele tem a mão sobre o botão nuclear – e assim o próprio Ho Chi Minh estará em Paris num par de dias a implorar pela paz”.
Madman Theory
O antigo presidente Donald Trump deu nova vida à “teoria do louco” de Nison, dizendo que se a Coreia do Norte continuasse a ameaçar o Estados Unidos “deparar-se-ia com fogo, fúria e poder tal como este mundo nunca viu previamente”. Trump prosseguiu com três reuniões cara-a-cara com o líder norte-coreano Kim Jung-Un num esforço fracassado para provocar a desnuclearização da península coreana.
Foi sob a administração Trump que a US Navy implantou a ogiva nuclear de baixo rendimento W-76-2 no seu submarino Trident lançador de mísseis balísticos, dando ao presidente uma maior amplitude de opções quanto ao emprego de armas nucleares.
“Esta capacidade suplementar”, declarou John Rood, o então sub-secretário para a política de defesa, “fortalece a dissuasão e proporciona aos Estados Unidos de imediato uma arma estratégica de baixo rendimento com mais capacidade de sobrevivência; apoia o nosso compromisso de dissuasão estendida e demonstra a adversários potenciais que não há vantagem no emprego do nuclear limitado porque os Estados Unidos podem responder com credibilidade e decisivamente a qualquer cenário de ameaça”.
Um cenário de ameaça que foi testado envolveu o emprego teórico de uma ogiva de baixo rendimento W-76-2 num cenário Báltico europeu no qual alvos de contingência reais em tempo de guerra foram utilizados como um ponto de ilustração. Em suma, os EUA treinaram a utilização antecipativa do W-76-2 para obrigar a Rússia a recuar (desescalar) a menos que se arriscasse a uma escalada nuclear resultando num intercâmbio nuclear geral – em suma, num Armagedão.
Isso nos traz ao tempo presente. Quando este artigo está a ser escrito, bombardeiros B-52 dos EUA com capacidade nuclear estão a voar para a Europa a partir das suas bases estado-unidenses, onde praticarão a entrega de armas nucleares contra um alvo russo. Dúzias mais de aviões, a voarem da Volkel Air Force Base na Holanda (lar de um arsenal de bombas nucleares B-61 dos EUA), praticarão o emprego de armas nucleares da NATO contra... a Rússia.
A Rússia respondeu ao ensaio nuclear da NATO avançando com o seu próprio exercício nuclear anual, “Grom” (Trovão). Estes ensaios envolverão a manobra em grande escala das forças nucleares estratégicas da Rússia, incluindo lançamentos reais de mísseis. Numa declaração incomparável na sua hipocrisia, um responsável da defesa dos EUA, a falar na condição de anonimato, disse: “a retórica nuclear russa e a sua decisão de prosseguir com este exercício enquanto enquanto em guerra com a Ucrânia é irresponsável. Brandir armas nucleares para coagir os Estados Unidos e seus aliados é irresponsável”.
Médico, cura-te a ti mesmo.
22/Outubro/1962 – aproximadamente 60 anos atrás, o presidente John F. Kennedy efetuou na televisão um dramático discurso de 18 minutos ao povo americano durante o qual revelou “evidência inequívoca” da ameaça de míssil. Kennedy prosseguiu a anunciar que os Estados Unidos impediriam navios transportando armas de chegarem a Cuba e exigiu que os soviéticos retirassem os seus mísseis.
Ao mesmo tempo, o embaixador dos EUA na União Soviética, Foy Kohler, entregou uma carta de Kennedy ao primeiro-ministro Nikita Khruschev, dizendo:
“a única coisa que me preocupou foi a possibilidade de que o seu governo não entendesse corretamente a vontade e a determinação dos Estados Unidos em qualquer situação, uma vez que não assumi que o senhor ou qualquer outro homem são, nesta era nuclear, deliberadamente mergulhasse o mundo numa guerra que é cristalinamente claro que nenhum país poderia vencer e só resultaria em consequências catastróficas para o mundo todo, incluindo o agressor”.
Joe Biden faria bem em refletir sobre esta carta e acerca de tudo o que transpirou desde então para entender que se substituir “Estados Unidos” por “Rússia”, obterá uma avaliação precisa da atual visão do mundo da Rússia quanto à NATO e às armas nucleares.
Este não é o momento para dramas, ou retórica teatralmente inflamatória. Este é o momento para maturidade, sanidade... contenção. Um líder sábio teria reconhecido a possibilidade de erro de percepção por parte da Rússia quando a NATO, uma semana depois de ser encorajada pelo presidente ucraniano a iniciar um ataque nuclear antecipativo sobre a Rússia, executa um grande exercício em que a NATO pratica o lançamento de bombas nucleares sobre a Rússia. Um líder sóbrio teria adiado estes ensaios e encorajado ação semelhante por parte da Rússia quanto aos seus exercícios nucleares.
Ao invés disso, a América envia uma referência improvisada de um Armagedão nuclear de um egomaniaco narcisista que utiliza o horror da aniquilação nuclear como uma lenga-lenga para o levantamento de fundos.
Bastaria um erro de cálculo, um único mal-entendido para transformar o STEADFAST NOON em “High Noon” e “Grom” (Trovão) em “Molnya” (Relâmpago).
Já vimos este cenário antes. Em Novembro de 1982 a NATO executou um um exercício de posto de comando, com o nome de código ABLE ARCHER '83, concebido para testar "procedimentos de lançamento de armas nucleares". Os soviéticos ficaram tão alarmados com este exercício, que acreditaram poderia ser utilizado para mascarar um ataque nuclear antecipativo da NATO contra a União Soviética, que carregaram ogivas nucleares em bombardeiros, levando a NATO e a União Soviética à beira de uma guerra nuclear.
Posteriormente, depois de receberem relatórios de inteligência acerca do temor soviético de um ataque nuclear antecipativo, o presidente Ronald Reagan comentou que,
“Nós [os EUA] tínhamos muitos planos de contingência para responder a um ataque nuclear. Mas tudo aconteceria tão rapidamente que me pergunto quanto planeamento ou lógica poderiam ser aplicados numa tal crise... seis minutos para decidir como responder a um blip num écran de radar e decidir desencadear o Armagedão! Como poderia alguém aplicar a razão num tempo como este?
Esta revelação levou a uma mudança de atitude da parte de um presidente que, até então, era conhecido por etiquetar a União Soviética como o “Império do mal” e por brincar acerca do lançamento de mísseis contra o alvo soviético.
Pouco mais de quatro anos após o ABLE ARCHER '83, Reagan sentou-se com o secretário-geral soviético Mikhail Gorbachev e assinou o Intermediate Nuclear Forces Treaty, um acordo memorável que, pela primeira vez na história do controle de armas, eliminou toda uma classe armas nucleares dos arsenais tanto dos EUA como da União Soviética.
Só se pode esperar que a atual crise nuclear resulte num avanço semelhante no controlo de armas num futuro não tão distante.