Como Putin virou o jogo: a paz através força
por Andrei Martyanov
O presente texto é o epílogo do livro agora publicado de Andrei
Martyanov,
Losing Military Supremacy The Myopia of American Strategic Planning,
com 250 páginas, editado pela Clarity Press. Foram omitidas as notas de
rodapé. O autor, graduado pela Academia Naval Kirov, domina as
questões estratégicas e conhece a fundo a tecnologia
militar de ponta.
Durante a Guerra Russo-Georgiana em Agosto de 2008, na qual o estado georgiano
tentou apoderar-se da região de facto
independente, secessionista e pró-russa da Ossécia do Sul, o que
levou a uma intervenção militar russa, a Rússia denominou
as operações do seu 58º
Exército como "coerção à paz". É
uma expressão apropriada, quando recordamos o que estava em jogo na
altura. Os russos ganharam essa guerra, de facto, e coagiram a Geórgia a
assumir uma disposição muito mais pacífica. Em termos
Clausewitzianos, os russos alcançaram a principal finalidade da guerra
ao compelirem o inimigo a fazer a vontade da Rússia, que era a de manter
a paz e estabilidade na região. Os russos, como os acontecimentos dos
últimos 19 anos demonstraram, já não têm
ilusões acerca de qualquer espécie de possibilidade de
mediação razoável e civilizada com o conjunto do Ocidente,
ainda menos com os Estados Unidos que continuam a permanecer na sua bolha que
os isola de quaisquer vozes externas de razão e de paz, como expusemos
nas páginas anteriores deste livro. O sombrio registo global americano
das últimas décadas não requer nenhuma
elaboração especial é um registo de desastres
militares e humanitários.
O discurso de Vladimir Putin a 1 de Março de 2018 à Assembleia
Federal não foi acerca da
próxima eleição presidencial russa, como muitos no
Ocidente obcecados por eleições sugeriram. Em vez disso, o
discurso de Putin foi um esforço para, do mesmo modo, coagir as elites
americanas, se não à paz, pelo menos a alguma forma de sanidade,
dado que estão completamente fora das realidades geopolítica,
militar e económica das novas configurações de poder
emergentes do mundo. Tal como foi o caso com a Geórgia em 2008, a
apresentação de Putin do poder de coerção russo foi
baseada em poder militar. O Exército russo pré-Shoigu, com todas
as suas falhas reais e pressupostas, eliminou em cinco dias as forças
georgianas, treinadas e parcialmente equipadas pelos Estados Unidos a
tecnologia, o pessoal e tácticas operacionais do Exército Russo
são simplesmente muito melhores. Obviamente que um cenário
tão eficaz e relativamente indolor não é possível
entre a Rússia e os Estados Unidos a menos que o mito americano
da superioridade tecnológica possa ser destruído e a
confrontação militar completamente impedida.
As elites de poder americanas pura e simplesmente não são
qualificadas para compreender a complexidade, a natureza e
a aplicação da força militar. A sua maioria não
serviu um único dia em uniforme nem frequentaram
instituição académicas militares de alto nível; as
suas competências em tecnologia militar de ponta e capacidades em
questões geopolíticas são limitadas a um par de
seminários sobre armas nucleares e, no melhor dos casos, a absorver os
esforços do Congressional Research Service. Simplesmente não
têm pontos de referência. No entanto, sendo um produto da cultura
pop militar, também conhecida como pornografia militar e propaganda,
estas pessoas esta colecção de advogados,
"cientistas" políticos, sociólogos e jornalistas que
dominam a cozinha estratégica americana que coze sem parar doutrinas
militares e geopolíticas ilusórias conseguem certamente
perceber uma coisa: um alvo nas suas costas ou nas suas testas.
A mensagem de Putin aos Estados Unidos foi extremamente simples:
relembrou os
EUA da sua recusa condescendente em sequer considerar a posição
da Rússia no Tratado ABM. Como coloca Jeffrey Lewis,
num momento de sobriedade surpreendente para a revista
Foreign Policy:
A verdadeira génese da nova geração de armas nucleares
bizarras da
Rússia está, não na mais recente
Nuclear Posture Review
, mas na decisão da administração de George W. Bush em
2001 de retirar-se do Tratado Misseis Anti-Balísticos e do fracasso
bipartidário de ambas as administrações, de Bush e de
Obama, de interagir de forma significativa com os russos acerca das suas
preocupações com as defesas americanas de mísseis. Putin
disso isso mesmo nos seus comentários. "Durante todos estes anos
desde a retirada unilateral dos EUA do Tratado ABM", explicou Putin
"temos trabalhado intensivamente em armas e equipamento avançados,
que nos permitiram fazer progressos notáveis no desenvolvimento de novos
modelos de armas estratégicas". Estes feitos tecnológicos
chegaram. Infelizmente, nunca conseguimos os feitos diplomáticos que
precisávamos.
A mensagem de Putin foi clara:
"Não nos deram ouvidos na altura, vão dar-nos ouvidos
agora". Depois disto, procedeu com aquilo que pode apenas ser descrito
como um Pearl-Harbour/Estalinegrado militar-tecnológico. As
ramificações estratégicas dos mais recentes sistemas de
armamento apresentadas por Putin são imensas. De facto, são de
natureza histórica. Claro que, muitos sabichões americanos, tal
como seria expectável, descartaram aquilo como uma ameaça
isto era de se esperar por parte da comunidade de "peritos" do
exército dos EUA. Outros não foram tão desdenhosos e
alguns ficaram, de facto, profundamente chocados. A impressão geral
hoje, após a apresentação de Putin, pode ser descrita em
termos tão simples como estes:
a disparidade de mísseis é real e, na verdade, não
é uma disparidade, mas um abismo tecnológico.
Paradoxalmente, este abismo não está onde muito o admitem
tal como as preocupações com o míssil balístico
RS-28 Sarmat, cuja existência e características aproximadas foram
mais ou menos conhecidas durante anos. É, inegavelmente, uma conquista
tecnológica impressionante ter desenvolvido um míssil
balístico não só com um alcance praticamente ilimitado mas
também
capaz de trajectórias que tornam inútil qualquer tipo de
Defesa Anti-Balística
anunciando dessa forma que é altura de reconsiderar a massiva
confusão
militar que foi a Guerra das Estrelas/Defesa Nacional de
Mísseis, e um conjunto de projectos relacionados. No final das contas,
ser atacado a partir do Pólo Sul, passando pela América do Sul,
não é uma contingência que os militares dos EUA sejam capaz
de enfrentar. Provavelmente não o serão durante muitos anos.
Nem tão pouco o sistema de armamento planador hipersónico
(hypersonic glider weapon)
M=20+ russo chamado
Avangard,
o qual já está a ser produzido em série,
é um desenvolvimento inesperado os EUA têm o seu
próprio programa, embora ainda não bem sucedido, para esse tipo
de armas e tais ideias andaram no ar dos EUA desde meados dos anos 2000 sob a
tutela da Prompt Global Strike.
Sim, estas são proezas tecnológicas estonteantes por parte da
Rússia, com o
termo "bizarro" de Jeffrey Lewis sendo um eufemismo para
"nós não temos nada comparável", mas nem sequer
era aqui que deveria estar o verdadeiro choque. Vários dos meus artigos
acerca deste recurso têm sido focados precisamente na área em que
os Estados Unidos estavam a ficar muito mais para trás
mísseis de cruzeiro, de todos os tipos. Previ o declínio militar
real americano a seguir este caminho há muitos anos atrás. Hoje
é obviamente claro que a Rússia possui uma vantagem
tecnológico-militar esmagadora em mísseis cruzeiro e
aero-balisticos e que está décadas à frente dos EUA nesta
área crucial.
Enquanto comentaristas ocidentais discutiam todas aqueles sistemas de armamento
exóticos e, sem dúvida, estonteantes, concebidos para o envio de
armas nucleares a qualquer ponto no globo com precisão
elevadíssima, muitos verdadeiros profissionais ficaram boquiabertos
quando foi revelado o
Adaga (Kinzahl).
Isto vira completamente o jogo geopolítico, estratégico,
operacional, táctico e psicológico. Era sabido desde há
algum tempo que a Marinha russa estava já a posicionar um
revolucionário míssil anti-navio capaz de M=8, o
3M22 Zircon.
Por mais impressionante e virtualmente não interceptável por
quaisquer defesas aéreas que seja o
Zircon
, o
Kinzhal
é simplesmente chocante pelas suas capacidades. Este muito
provavelmente baseado na estrutura do famoso
Iskander,
capaz de M=10, altamente manobrável, míssil
aero-balístico com um alcance de 2000 quilómetros, transportado
por MiG-31BMs acabou simplesmente por reescrever o manual da guerra
naval. Tornou obsoletas grandes frotas navais de superfície e
combatentes. Não, não está a ler mal. Nenhuma defesa
aérea ou sistema anti-míssil no mundo actual (talvez com
excepção do S-500 dentro em breve, especificamente desenhado para
a intercepção de alvos hiper-sónicos) é capaz de
fazer seja o que for acerca disto e, mais provavelmente, levará
décadas a descoberta do antídoto. Mais especificamente, nenhum
sistema de defesa aérea moderno ou previsível posicionado hoje em
dia por qualquer frota da NATO pode interceptar um único míssil
com tais características. Uma salva de 5 a 6 destes mísseis
garante a destruição de qualquer Grupo de Batalha com
Porta-Aviões ou de qualquer outro grupo de superfície, na verdade
tudo isto sem a utilização de munições
nucleares.
O uso de uma tal arma, especialmente quando sabemos que já foi
posicionada no Distrito Militar Sudeste da Rússia, é muito
simples o ponto mais provável a ser alvejado por mísseis
disparados pelos MiG-31 será nas águas internacionais do Mar
Negro, fechando assim todo o Mediterrâneo Oriental a qualquer navio de
superfície ou grupo de navios. A Rússia pode também fechar
completamente o Golfo Pérsico. Ela cria igualmente uma maciça
zona interdita
(no-go)
no Pacífico, onde os Mig-31BM de Yelizo em Kamchatka ou da Base
Aérea Centralnaya Uglovaya em Primosrky Krai serão capazes de
patrulhar vastas distâncias sobre o oceano. É no entanto
extraordinário que a actual plataforma para o
Kinzhal
seja o MiG-31 provavelmente o melhor interceptor da história.
Obviamente, a capacidade do MiG-31 de alcançar velocidades
supersónicas muito elevadas (excedendo bem o M=2) é um factor
chave no lançamento. Mas não importa quais sejam os procedimentos
para o lançamento desta arma terrífica, as consequências
estratégicas imediatas do posicionamento operacional do
Kinzhal
são as que se seguem:
1. Finalmente coloca os
porta-aviões no nicho da pura projecção de poder contra
adversários fracos e indefesos, e longe da área marítima
remota da Rússia, seja no Mediterrâneo, no Pacífico ou no
Atlântico Norte. Isto também significa uma completa zona interdita
(no-go)
para qualquer dos 33 torpedeiros e cruzadores equipados com Aegis da US Navy,
que são cruciais para a Defesa Míssil Balística Americana.
2. Torna os clássicos CBGs [Carrier Battle Group] como forças de
ataque
principais contra os seus pares ou quase pares completamente obsoletos e
inúteis. Também torna indefeso qualquer navio de combate de
superfície independentemente das suas capacidades de defesa aérea
ou anti-míssil. Anula completamente centenas de milhares de
milhões de dólares de investimento nessas plataformas e armas, as
quais de repente se tornam nada mais do que alvos gordos indefesos. Todo o
conceito de Batalha Aero-Marítima, também conhecida como
Joint Concept for Access and Maneuver in the Global Commons (JAM-GC),
o qual é uma pedra angular do domínio global americano torna-se
simplesmente inútil isto é uma catástrofe
doutrinária e orçamental.
3. O Controle e Negação do Mar muda a sua natureza e funde-se.
Aqueles que
possuem tais armas simplesmente possuem vastas extensões de mar
limitadas pelos alcances do
Kinzhal
e dos seus transportadores. Também elimina completamente qualquer apoio
de superfície crucial para submarinos na área, expondo-os assim
à aviação Patrulha/ASW e navios de superfície. O
efeito é multiplicativo e é profundo.
A Rússia tem muitos desses transportadores
o programa de modernização dos MiG-31 para BM estava a todo o
vapor desde há alguns anos, com as unidades da linha da frente da
Força Aérea a verem um influxo considerável destes
aeronaves. Agora está claro porque foi empreendida tal
modernização tornou os MiG-31-BM plataformas de
lançamento para o
Kinzhal.
Tal como deixou registado em 1991 o major general dos Fuzileiros Navais,
James L. Jones, após a Primeira Guerra do Golfo: "Para criar
pânico num grupo de batalha basta ver alguém a lançar na
água dois tambores de 50 galões [190 litros]". O
Kinzhal
elimina efectivamente qualquer força de superfície que não
seja suicida para milhares de quilómetros de distância da costa
russa e torna as suas capacidades irrelevantes. Em termos leigos, isso tem
apenas um significado todos os componentes de superfície da US
Navy tornam-se uma força completamente esvaziada, boa apenas para
paradas e demonstrações de bandeiras nas proximidades e nos
litorais de nações fracas e subdesenvolvidas. Isto pode ser feito
por uma minúscula fracção dos custos astronómicos
dos EUA com plataformas e armas.
É muito difícil nesta fase prever plenamente o efeito do discurso
de Putin
nos EUA. O que é fácil prever, no entanto, é o uso do
cliché já muito explorado da assimetria. O uso deste
cliché está errado. O que aconteceu no dia 1 de Março
deste ano com o anúncio e demonstração das novas armas
russas não é assimetria. Foi, sim, a declaração da
chegada final de um paradigma completamente novo em guerra, tecnologia militar
e em consequência em estratégia e tácticas operacionais. As
velhas regras e sabedoria já não se aplicam. Os Estados Unidos
não estavam e não estão preparados para isto, apesar de
muitos profissionais sérios, inclusive nos próprios EUA,
advertirem acerca do novo paradigma militar-tecnológico em desdobramento
e da completa miopia e soberba americana em tudo o que está relacionado
com o militar. Como foi forçado a admitir o Coronel Daniel Davies:
Independentemente do quão justificado esse orgulho pudesse ter sido na
altura, rapidamente
transformou-se em arrogância desdenhosa. Agora, isto é um perigo
para a nação. Talvez nada exemplifique melhor esta ameaça
do que a o sistema de aquisição disfuncional do Pentágono.
Não é imprudente prever hoje, contra o cenário da
abordagem americana à guerra que tem sido dado aqui, que não
haverá nenhuma resposta tecnológica americana sensata à
Rússia no futuro próximo. Os Estados Unidos simplesmente
não têm recursos, para além de porem a funcionar as
máquinas de impressão e entraram em completa bancarrota neste
processo, para irem contra a Rússia. Mas eis a questão: os russos
sabem disto e o discurso de Putin não era acerca de ameaçar
directamente os EUA que, para todos os efeitos, está simplesmente
indefeso contra a pletora de armas hipersónicas russas. A Rússia
não tem o objectivo destruir os Estados Unidos. As acções
da Rússia são ditadas apenas por uma única causa o
equivalente a mostrar uma arma a um bêbado agressivo e barulhento a fazer
ameaças com uma faca num bar e obrigá-lo a prestar
atenção às implicações e perigos pessoais
das suas acções. Parece que este é o único meio de
lidar com os Estados Unidos actualmente.
Se as advertências e a
demonstração da superioridade tecnológica militar da
Rússia
tiverem efeito, como foi o objectivo russo desde o princípio, alguma
conversação sensata acerca da nova ordem mundial poderá
ter início entre actores geopolíticos chave. O mundo já
não pode permitir as farsas de um bronco pretensioso, auto-engrandecido
e vazio que não sabe o que faz e ameaça a estabilidade e a paz do
mundo. A auto-proclamada hegemonia americana está acabada onde realmente
importa para qualquer hegemonia real ou imaginária no campo
militar. Ela já acabou desde há algum tempo, foi apenas
necessário o discurso de Putin para demonstrar o velho truísmo de
Al Capone de que se consegue ir muito mais longe com uma palavra gentil e uma
arma do que só com uma palavra gentil. Afinal de contas, a Rússia
tentou apenas palavras amistosas, isto não resultou e os Estados Unidos
podem apenas culpar-se a si próprios.
Ver também:
A supremacia militar perdida dos EUA
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