Antes de começar a tratar algumas questões que Paul Craig Roberts
levantou no
seu artigo
, parcialmente dirigido a mim e também a Andrei Raevsky (conhecido como
Saker), quero manifestar minha profunda admiração pelo Dr.
Roberts e pela sua corajosa posição cívica e o seu real,
não para exibição, patriotismo americano. É uma
honra e um privilégio entrar em conversação com uma pessoa
tão conceituada, mesmo quando discordo dele em alguns aspectos da
realidade geopolítica relativa à, agora oficial, Guerra Fria 2.0
entre os Estados Unidos e a Rússia, bem como à
posição da Rússia neste conflito. O Dr. Roberts escreve:
Como tenho abordado os mesmos pontos, só posso aplaudir Martyanov e The
Saker. Onde podemos discordar é no reconhecimento de que aceitar
infindáveis insultos e provocações encoraja a sua
intensificação até a única alternativa ser a
rendição ou a guerra. Então, as perguntas para Andrei
Martyanov, The Saker e Putin e o governo russo são: Por quanto tempo
funciona dar a outra face? Será que alguém estende a outra face
de modo a permitir ao seu oponente neutralizar sua vantagem num confronto? E se
se estender a outra face por tanto tempo que se acaba por perder o apoio da
população patriótica pela falha em não defender a
honra do país? E se se estender a outra face por tanto tempo que se
acaba por se ser forçado a entrar em guerra ou a submeter-se?
Será que estende tanto a outra face de modo a que o resultado seja a
guerra nuclear?
Eis onde eu e Paul Craig Roberts discordamos dramaticamente sobre a
questão da estratégia da Rússia. Sim, concordo com o Dr.
Roberts, citando William Flubright, em que "palavras são feitos e
estilo é substância na medida em que influenciam a mente e o
comportamento dos homens". Mas apesar de insultos e
provocações serem desagradáveis e em alguns casos
influenciarem a mente e o comportamento de alguns, com a moderna Rússia
de hoje é diferente. Já apresentei algumas questões
básicas da estratégia da Rússia
aqui na Unz Review
. Vou ampliá-la um pouco mais na resposta às perguntas
inegavelmente válidas do Dr. Roberts.
O escritor russo do século XIX
Ivan Andreevich Krylov
, entre muitas
fábulas notáveis, às quais as crianças russas
estão sujeitas no seu curso de Literatura Russa e desde o
princípio do século XX levam consigo [os seus ensinamentos]
quando chegam à idade adulta, tem uma obra em que descreve bem
a actual realidade geopolítica. A fábula é
O gato e o cozinheiro
na qual o Cozinheiro, depois de ter trabalhado a sua jornada e escapado para a
taberna, deixa o seu gato a guardar a comida (um frango) a fim de protegê-la dos
ratos.
Como prossegue a fábula, no seu retorno da taberna ele vê os
resultados de o gato "guardar" o seu frango ele está a
acabar de comê-lo. O cozinheiro começa a ralhar com o gato
a maior parte da fábula é o monólogo do cozinheiro a
deblaterar com o gato (Vas'ka), alegando que ele é ruim, arrogante,
irresponsável e mau.
Os versos de fecho da fábula resumem a situação
sucintamente:
Mas, enquanto ele se mantinha a falar
O gato comia todo o frango.
Agora, eu falaria a este tipo de cozinheiro,
E lhe pediria para escrever na parede...
Para que o seu discurso não seja uma perda de tempo,
Você tem de usar a sua força.
E aqui está o ponto os Estados Unidos não podem usar este
poder contra a Rússia sem serem eles próprios aniquilados, ao
passo que a Rússia, tal como este proverbial gato Vas'ka, continua a
comer contra o pano de fundo de uma conversa barulhenta e nada mais.
Esta realidade, de maneira tanto desesperada como impotente, finalmente
começou a ser entendida em Washington. Como observa Graham Alison:
Por mais demoníaca, por mais destrutiva, por mais tortuosa, por mais merecedora que seja a Rússia de estrangulamento, o facto bruto é que não podemos matar esse bastardo sem cometer suicídio.
Isto, dito no ano de 2017, constitui finalmente algum progresso.
"Conceituados" membros da "academia" geopolítica
americana começam a compreender pelo menos algumas
limitações de seu poder, grosseiramente inflado. Isto
É
progresso, quando nos recordamos do estado do mundo em 2013. Apesar da enorme
derrota dos fantoches dos globalistas na Geórgia em 2008, a
Rússia ainda não era levada muito a sério pela sua cabala
em Washington. Ainda em 2014, toda espécie de "peritos"
militares dos EUA descreviam uma grande quantidade de cenários nos quais
as Forças Armadas vitoriosas dos EUA e da NATO esmagavam o
Exército russo na Ucrânia. Era uma medicina preventiva contra o
pano de fundo da operação a velocidade relâmpago da
Rússia na Crimeia, a qual impediu os EUA de transformarem aquela
península numa
base da NATO. O contra-golpe russo apanhou todos desprevenidos. Quão
rapidamente muitos esqueceram hoje o que foi então cumprido isto
dificilmente pode ser descrito como oferecer a outra face. Se representou algo,
foi um golpe maciço numa ordem mundial existente a que a Rússia
lançou o desafio. É assim que a honra é defendida
por acções, não por insultos insignificantes. Seguiram-se
derrotas maciças no Donbass das forças armadas ucranianas
"treinadas" pelos EUA.
Escrevi em Janeiro de 2015:
Mas já é claro que ao fracassar em atingir quaisquer objectivos políticos significativos na Ucrânia e na Rússia e, por isto, começar um maciço realinhamento global, os Estados Unidos suportaram uma derrota. Quais serão as consequências desta derrota? Odeio especular, sei apenas que elas já são grandes e que o momento de enfrentar a realidade se aproxima.
Hoje, quase quatro anos depois, vivemos num mundo irreconhecível e
ninguém nos EUA, a menos que escreva para tablóides e não
se importe quanto à sua reputação, descreve
cenários de derrotas da Rússia. É um mundo em
transição não apenas da multipolaridade genuína
já estamos a viver na realidade multipolar mas para um
mundo onde os Estados Unidos são efectivamente enquadrados nas suas
tentativas de projectar poder na Eurásia. Um mundo em que os EUA
estão reduzidos meramente a injuriar, a urrar insultos e a fazer
provocações porque nada mais podem fazer além
disso. De certo modo o povo ignora este facto: o declínio
dramático, incrivelmente rápido em termos históricos, do
poder americano. A prosperidade e influência americanas pós II
Guerra Mundial repousava primariamente no mito e bluff do poder militar
americano, o qual supostamente deveria fazer toda a gente seguir a linha do
partido e tremer de horror frente a uma "punição" por
desvios. A Rússia considerou isto bluff.
Actualmente, as acções dos Estados Unidos apresentam sintomas
cada vez
mais pronunciados de um poder em declínio, o qual não pode
encarar a realidade sem enlouquecer. E eles estão a enlouquecer, tanto
internamente quanto internacionalmente. A única força que
é capaz de impedir este poder cada vez mais irracional e perigoso de
cometer um suicídio arrastando todos os outros consigo é a
ameaça de uma derrota militar maciça. A Rússia tem a
força para fazer isso e até agora ela funciona. Mas tenho minha
própria pergunta: será que os enfermeiros no
manicómio
ficam ofendidos, quando dominam um paciente violento e o prendem à cama,
pelos insultos e resistência deste paciente? Não penso assim
ninguém fica ofendido por causa de um paciente mental violento.
Nem tão pouco os enfermeiros defendem sua honra quando dominam um
paciente. Não poderia haver interacções que envolvessem a
honra entre um enfermeiro e um paciente mental violento. A América
não é parte digna de um tratado, não o tem sido desde o
início dos anos 90, portanto não há
interacções que envolvam honra nas relações
russo-americanas.
Pergunto então se será legítimo avaliar a
situação comparando dois estados do mundo em 2014 e 2018? A
resposta é que não só é legítimo como
é o único modo de faze-lo. A máxima de Clausewitz ainda
permanece válida hoje: "É legítimo julgar
um evento
pelo seu resultado, pois é o critério mais sólido".
Com todas as provocações americanas, insultos e o alegado
dar a outra face
da Rússia, alguém
DEVE
fazer a pergunta está a
Rússia a vencer? Quando se olha para o quadro mais amplo, a resposta
inequívoca é sim. Isto se manifesta em muitas coisas, desde a
economia, ao plano militar e à geopolítica. Assim:
Os sionistas neoconservadores que dominam em Washington são capazes de
cometer o mesmo erro de Napoleão e Hitler. Eles acreditam no "fim
da história", que o colapso soviético significa que a
história escolheu a América como o modelo para o futuro. A sua
arrogância realmente ultrapassa a de Napoleão e Hitler.
Nem Napoleão nem Hitler trataram questões da dissuasão
nuclear, nem viveram no mundo da propagação instantânea da
informação. A julgar pela reacção histérica
destes mesmos neocons e seus "peritos" militares, seja em 2015 quanto
aos acontecimentos na Síria, ou quanto ao discurso de Putin em 1º
de Março de 2018 à Assembleia Federal a mensagem foi
ouvida. A histeria é um primeiro sinal de fraqueza. Os neocons podem ser
irracionais, pelo menos alguns deles, mas mesmo estes entendem que há um
preço a ser pago e há razões, a serem discutidas
separadamente, para acreditar que há um entendimento das severas
limitações do poder dos Estados Unidos. Afinal de contas,
Napoleão e Hitler marcharam para a Rússia depois de colocar a
Europa de joelhos. Eles mereciam a reputação tanto da Grande
Armée como da Wehrmacht. Já os Estados Unidos não puderam
vencer uma única guerra contra adversários mais débeis
(subpar)
desde 1950, uma vez que se desconte a competição fácil
(turkey shoot)
contra o exército grosseiramente inferior de Saddam.
Quanto a Semyon Bagdasarov. Ele é um bom homem e um patriota russo,
é um ex-oficial político, mas não levo a sério a
sua sugestão de "afundar" um porta-aviões americano. O
patriotismo não é uma desculpa para a irracionalidade a
perda de um único porta-aviões, no caso de um ataque limitado de
TLAM
a alguns alvos na Síria criará nos EUA uma crise política
de tais proporções que o mundo ficará à beira da
guerra nuclear. Os EUA foram e são inerentemente inclinados à
resposta nuclear, com uma pequena pausa nos anos 90, quando se viam como os
maiores autoproclamados militares do mundo, na esteira do colapso
soviético. Não fazer coisas estúpidas, mas sim as que
são necessárias, foi o que definiu as respostas da
Rússia nos últimos anos. Esta é a única
estratégia correcta.
E aqui está a minha conclusão: sendo um antigo militar,
reconheço plenamente o facto de que sou apenas um escritor que, assim
como Bagdasarov, ou qualquer outro "analista", não tem acesso
a uma informação diária
top secret
do Chefe de Estado-Maior e da inteligência russa para Vladimir Putin.
Patriotismo ou, até mesmo, algum profissionalismo residual não
substitui uma consciência situacional completa fornecida ao Comandante
Supremo por milhares e milhares de pessoas que até arriscam suas vidas
para fornecer uma informação chave a fim de [poder] tomar a
única decisão correcta para impedir a aniquilação
mundial. A Rússia sabe onde estão hoje os Estados Unidos e, ao
olhar para trás estes últimos cinco anos da história
mundial, vejo a Rússia como aquele proverbial gato a acabar com o
frango, ao passo que aqueles que são supostos utilizar a força
não podem fazê-lo, apenas gritam e não carregam um
bastão. Este frango é a Pax Americana. A Rússia
continuará a fazer o que ela faz, porque isso funciona e porque sabe
como combater guerras, sabe como se defender e porque todos nós vivemos
hoje num mundo diferente, do modo como a Rússia não os
EUA o vê. Neste caso, regougar insultos e até mesmo
lançar outra
inútil saraivada de TLAMs na Síria, ou "treinar" seus
lacaios ucranianos para provocações militares é o limite
para os Estados Unidos e não há nada de honroso nisso.
Do mesmo autor em resistir.info:
As implicações dos novos sistemas de armas da Rússia
Ver também a tréplica de Paul Craig Roberts a este artigo:
What Should Putin Do?
[*]
Perito russo em questões militares e navais. Nasceu em Baku em 1963. Graduado
pela Academia Naval Kirov Bandeira Vermelha. Foi oficial em navios e trabalhou
na gestão da Guarda Costeira soviética até 1990. Participou dos
acontecimentos no Cáucaso que levaram ao colapso da União Soviética. Em meados
da década de 1990 mudou-se para os Estados Unidos onde actualmente trabalha
como director de laboratório num grupo aeroespacial civil. Colabora no blog do
US Naval Institute. É o autor de
Losing Military Supremacy: The Myopia of American Strategic Planning
, Clarity Press, 2018, 308 p. Uma resenha deste livro encontra-se
aqui
.
O original encontra-se em
www.unz.com/article/russia-as-a-cat/
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
.