Para vencer, o exército russo tem de lutar como o Exército Vermelho lutou; tem de se "tornar", pelo menos em alguns aspectos, o Exército Vermelho. A ideologia dominante não pode ser uma espécie de nostalgia do derrotado Exército Branco. Se assim for, terão um desempenho semelhante ao do Exército Branco. O Exército Vermelho foi o produto de um evento histórico: 1917. Isso não pode ser considerado um resultado mau na história moderna da Rússia e [ao mesmo tempo] esperar que o Exército Russo lute como o Exército Vermelho em 1917.
Escrevo como um cingalês que viveu ativamente duas guerras civis, uma anti-sistémica e outra etno-regional. Esses conflitos incluíram uma guerra civil de trinta anos contra uma milícia, os "Tigres de Libertação de Tamil Eelam" liderados por Velupillai Prabhakaran – organização considerada a mais feroz do mundo naquela época e a que explodiu mais homens-bomba do que qualquer outro grupo jihadista. Trabalhei de perto com um presidente que venceu uma guerra civil, mas depois foi assassinado por um homem-bomba e depois trabalhei com um presidente que venceu a guerra.
A experiência ensina como a sociedade e o Estado precisam ser reconfigurados para evitar a derrota ou encerrar uma série de derrotas. É um processo de aprendizado, experimentação e evolução, mas no final aprende-se o que o general vietnamita Vo Nguyen Giap chamou de "as leis objetivas do desenvolvimento de um fenómeno complexo", incluindo guerra e paz.
Um leitor russo pode pensar, bem, passamos por essa experiência com o conflito da Chechénia, mas vencemos, então qual é o seu ponto?
O que quero dizer é que às vezes é necessário reaprender as mesmas lições. É bastante óbvio que há uma grande diferença entre lutar contra uma guerrilha e lutar contra um estado que é apoiado por uma constelação de outros estados. Mas mesmo assim algumas lições político-militares permanecem úteis, se não universais.
O que aconteceu recentemente com Prigozhin pode ser uma surpresa para aqueles que não estão familiarizados com a tragédia Coriolano de Shakespeare, baseada em uma figura histórica real do Império Romano. Também pode ser uma surpresa para aqueles que não estão familiarizados com a advertência de Maquiavel contra o uso de exércitos contratados. No entanto, o PMC Wagner teve que ser implantado devido à necessidade premente. Preenchia um vazio e fazia coisas que os militares convencionais não podiam fazer. Os combatentes da Wagner cumpriram.
Numa época em que os ucranianos estavam e estão recrutando contratados de todos os cantos do mundo, incluindo veteranos das forças especiais do Sri Lanka que vivem no Ocidente, a implantação da Wagner PMC não pode ser criticada.
Mas quais são as lições a serem aprendidas com a crise da Wagner? Em primeiro lugar, deve ser tomado como um sintoma e um alerta precoce. Os descontentamentos que levaram a esse motim precisam ser abordados. Se as queixas que levaram ao comportamento amotinado dos soldados russos na Primeira Guerra Mundial tivessem sido resolvidas rapidamente, o Exército provavelmente não teria cedido. Isso nos leva a outra lição. A razão pela qual tais queixas não foram abordadas em tempo hábil durante a Primeira Guerra Mundial foi por serem sistémicas: sociais, políticas, institucionais e estatais. Se alguém quiser evitar tal resultado, deve estar preparado para fazer as mudanças, as reformas necessárias, corrigir os erros e preencher as lacunas, inclusive de coordenação, que podem gerar tamanho descontentamento entre os combatentes da linha de frente.
Para prevalecer na guerra da Chechénia, o presidente Putin fez sérias mudanças. Hoje, o inimigo é muito mais formidável; não é outro senão a NATO, tendo como ponta de lança o exército ucraniano. Isso significa que as mudanças na Rússia devem ser ainda maiores do que no caso do conflito checheno. O mesmo presidente que fez essas mudanças deve fazer as que são necessárias atualmente. A guerra no Afeganistão foi perdida, acabando com a União Soviética. O problema era sistémico. O sistema soviético que derrotou o monstro nazista e o perseguiu até seu covil, erguendo a bandeira vermelha sobre o Reichstag em 1º de maio de 1945, havia perdido seu vital momentum na guerra do Afeganistão. Essa erosão cancerosa, bem como as ilusões infantis e a admiração pelo Ocidente, que levaram à crise na Ucrânia, começaram com Nikita Khrushchev.
Com a Ucrânia apoiada pela NATO a bater à porta, a Rússia enfrenta um perigo existencial. O motim da Wagner é apenas uma crise de pequena escala. Mas é um alerta antecipado do que pode acontecer se a Rússia não vencer esta guerra. Quando digo vencer, quero dizer vencer a guerra. No entanto, não se pode vencer uma guerra sem reconhece-la como tal e mobilizar todas as suas energias nacionais. Essa foi uma lição que aprendemos no Sri Lanka.
Não é possível aceder às fontes mais profundas da emoção coletiva se não for invocada a questão existencial da sobrevivência e da necessidade de prevalecer.
Como amigo sincero da Rússia, cujas primeiras lembranças remontam aos sete anos de idade, quando me hospedei no Hotel Ucrânia com meus pais, devo dizer o seguinte: a nostalgia do passado czarista não ajuda a vencer no presente. Essa forma de estado e ethos era pré-capitalista, já era historicamente obsoleta. A Rússia foi derrotada duas vezes no século XX com o atual regime: 1905 e 1914-1917. Qualquer tipo de ethos ideológico retro-chique ou czarista é insustentável e resulta em desastre quando confrontado com uma coleção de estados modernos tardios (NATO) endossando a guerra híbrida.
Para vencer, o exército russo tem de combater como o fez o Exército Vermelho; tem de "tornar-se", pelo menos em alguns aspectos, o Exército Vermelho. A ideologia dominante não pode sentir certa nostalgia pelo derrotado Exército Branco. Se assim for, terão um desempenho semelhante ao do Exército Branco. O Exército Vermelho foi o produto de um evento histórico: 1917. Isso não pode ser encarado como um resultado mau na história moderna da Rússia e esperar então que o Exército Russo lute como o Exército Vermelho em 1917.
Também não estou defendendo uma atitude retro-revolucionária. Deixe-me colocar deste modo. Existem três hinos nacionais que considero especialmente comoventes: o americano, o francês e o russo, embora não necessariamente nessa ordem. Todos os três são produtos de revoluções. Mas apenas um manteve a melodia, mas mudou a letra. Esse é o russo.
Não é que os americanos e os franceses se tenham comportado nos assuntos mundiais, ou ao nível nacional, de acordo com os ideais inspiradores dos seus hinos nacionais, mas eles não mudaram a letra. Eles conseguiram conciliar continuidade e mudança. No caso da Rússia, a letra foi alterada, abandonando a letra que o Exército Vermelho cantava enquanto lutava contra os nazistas. Aquelas letras tinham significado porque os soldados do Exército Vermelho eram operários e camponeses que ganharam uma nova vida graças à Revolução e lutavam com uma motivação sobre-humana porque sabiam (ao contrário do exército czarista) que seriam despojados de tudo o que haviam conquistado para suas famílias se o inimigo os derrotasse.
O motim da Wagner é melhor compreendido nas palavras de Lenine: “o raio que iluminou a realidade”. Qual é essa realidade hoje?
No seu nível mais óbvio, é que o estado e o sistema militar precisam mudar para permitir e replicar a flexibilidade, a motivação e a eficácia de combate de soldados e combatentes irregulares como unidades partisans: a luta partisan era algo que o Exército Vermelho dominava, bem como as técnicas de guerra convencional e móvel.
A realidade mais profunda, a lição mais importante é que a liderança russa e a própria Rússia têm que decidir coletivamente, e decidir agora, se estão prontos e capazes de mudar o que precisa ser mudado, não deixando nenhum domínio ou dimensão intacta, para impedir o Ocidente coletivo de prevalecer.
As questões que o motim da Wagner colocou à Rússia são “quem prevalecerá sobre quem?”, “por onde começar?” e “o que fazer?" As mesmas questões hoje que o tão injuriado Lenine levantou na sua época.
A liderança e o povo russos terão de decidir se o Estabelecimento, ou seja, a ordem e as estruturas estabelecidas (ou 'superestrutura' como costumava ser chamada na literatura soviética) é mais importante ou tão importante quanto o Estado. A fim de que a formação do estado e do sistema de estado sobrevivam ao ataque do inimigo imperialista, uma escolha deve ser feita entre 'formação do estado' e 'estrutura'. As estruturas têm de ser remodeladas ou substituídas para que o sistema e a formação estatal sobrevivam.
Mas a realidade do campo de batalha revela que há uma contradição entre as demandas existenciais do estado e da nação russa, por um lado, e as estruturas e relações de poder existentes, por outro.
O Ocidente mudou a sua política e postura em relação à Rússia. Esta mudança significa que está empenhado numa grande ofensiva estratégica destinada à vitória absoluta sobre este país da euro-ásiatico. O Ocidente quer ditar os termos do fim da guerra e o destino da Rússia no pós-guerra. Confrontada com esta ameaça, a Rússia não pode permanecer estática, imóvel, estagnada e conservadora. A Rússia não pode permanecer como está, pois assim não será capaz de vencer. E vencer é o que ela tem de fazer, porque é a única forma que tem de se defender, de sobreviver e de prevalecer.
As mudanças que a Rússia terá de fazer, mesmo que não sejam guiadas por uma ideologia subjetivamente revolucionária, objetivamente, terão de ser nem mais nem menos que revolucionárias. Embora isto possa ser uma 'revolução a partir de cima' tal como aquelas empreendidas por Pedro o Grande e Joseph Estaline.