Propinas
[*]
e outras coisas mais
por Rui Namorado Rosa
Cada vez que o governo fala em propinas anuncia uma nova etapa do ataque ao
ensino público
A presente proposta governamental de lei de bases do financiamento do ensino
superior retoma com novo fôlego o projecto de longo prazo de fazer os
estudantes (ou suas famílias) pagarem os respectivos estudos, na
proporção em que vai reduzindo o esforço do Estado na
comparticipação dessa oferta, e, simultaneamente, de promover o
sector privado de oferta de ensino. Por outras palavras, a
privatização, tão rápida quanto for consentida, dum
bem público que é o acesso universal à
Educação. A retórica vai mudando, traduzindo mais
abertamente a ideologia subjacente; essa retórica é ela mesma um
instrumento de insinuação e difusão dessa ideologia; para
esta, a educação seria um benefício pessoal (e não
um bem comum da sociedade) que se consome numa relação
tendencialmente comercial.
Os artigos 12 a 14 da proposta de lei reclamam dos estudantes o pagamento de
propinas, retomando, em termos mais crus o enunciado já conhecido da Lei
n.º 113/97. Essa experiência passada foi contraproducente: ela
agravou a comparticipação das famílias, agravando a
desigualdade de oportunidade no ingresso no ensino superior; não tendo
as propinas revertido para um fundo autonomizado, não foi
possível verificar a afectação exacta dessas receitas, mas
quem sabe sabe que foram sorvidas para compensar a redução da
comparticipação do orçamento do Estado para os
orçamentos de funcionamento e mesmo para liquidar dívidas
resultantes do incumprimento de transferências que eram devidas do
orçamento do Estado; enfim, as propinas cobradas não reverteram
para os fins para que foram anunciadas (a "qualidade"). De novo
é agora invocada a "qualidade" para justificar esta colecta
forçada sobre os nossos jovens em início de vida; de novo fica
por definir o que seja "qualidade" pelo que não saberemos ao
certo para que efeitos reverterá essa colecta; e de novo permanece a
convicção, por não haver declaração
inequívoca de que o estado garanta o orçamento de funcionamento
das instituições de ensino superior, que maiores propinas
irão pagar maior desresponsabilização do Estado, por ordem
do governo.
Mas ao exigir propinas por um lado (dessas ninguém foge), por outro lado
a proposta de lei promete bolsas e outros apoios de acção social
escolar (estes é que são incertos). Tudo por mor da
"justiça social" e para que (afirma-se) ninguém deixe
de poder estudar por razões económicas se tiver aptidão
para tal. O sistema de acção social escolar é tão
bem intencionado como necessário, como se documenta no importante estudo
«O perfil sócio-económico dos estudantes do ensino
superior» feito pelo CNASES em 1997. Mas a realidade tem sido um teatro de
sombras que o governo pretende perpetuar.
Atentemos nos artigos 15 a 27 da proposta de lei; o inovador sistema
introduzido para "controlo" do destino das prestações
atribuídas aos estudantes é verdadeiramente insólito,
incluindo declarações de "honra" e métodos
documentais ou inspectivos, e será supervisionado conjuntamente pelos
serviços dos Ministérios da Finanças, da Segurança
Social e da Ciência e do Ensino Superior! A "justiça
social" que deveria ser assegurada natural e "economicamente" em
sede própria, na esfera fiscal, através das
declarações de receitas e encargos para efeitos de IRS, é
supostamente transferida para "um sistema" a criar no âmbito do
MCES! E esse sistema de controlo é por sua vez inspeccionado
conjuntamente por três ministérios! Presume-se seria uma
super-estrutura que provavelmente nunca chegaria a ter operacionalidade. E que
se fosse accionada, implicaria encargos superiores à
recuperação de eventuais despesas ilícitas para que teria
sido concebida.
No artigo 20 se diz que na candidatura a atribuição de bolsa de
estudo o estudante subscreverá uma declaração de
"honra" onde atestará qual a actividade ou actividades de cujo
exercício resultou a percepção de rendimentos por parte do
respectivo agregado familiar, bem como o montante em que os mesmos se cifram.
É absurdo que um estudante seja solicitado a fazer uma
declaração "de honra" que será
sobreponível àquela outra que ele mesmo ou alguém da sua
família terá feito em sede própria de IRS (sem
declaração de "honra"). Será esta a sociedade da
informação, sob a tutela da Ciência e Tecnologia?
O artigo 24 afirma que o Estado apoiará sistemas de empréstimos
que privilegiarão os estudantes deslocados considerados com mais
dificuldades no plano económico, que futuramente serão
também extensíveis aos estudantes de
pós-graduação. Isto é, o governo desobriga-se da
acção social escolar remetendo os estudantes para a banca.
É aqui trazido para o seio da política educativa um conceito que
lhe é estranho, neste caso um produto financeiro que o sistema
bancário tomaria a iniciativa de oferecer. No plano de justiça
social é inaceitável este instrumento de
substituição para pretensamente atingir a igualdade de
oportunidades no acesso à Educação e a garantir que
ninguém ficará de fora por motivos económicos. Tais
empréstimos representariam assumpção precoce de
dívidas por quem não colheu o benefício de um bem futuro,
nem pode oferecer garantia do ponto de vista financeiro face a
empregabilidade incerta, nem merece por isso vir a ser penalizado,
designadamente no adiamento de constituição de vida familiar
autónoma.
Também no plano económico-financeiro é de rejeitar esta
proposta habilidosa pois é sabido, e o mesmo governo nos vai repetindo,
que é por demais elevado o nível de endividamento em Portugal. A
acumulação de empréstimos no início de uma carreira
teria a prazo impactos pessoais, familiares e sociais gravosos. Dados esses
constrangimentos, tais empréstimos seria um negócio
de interesse duvidoso para as instituições bancárias; e a
respectiva garantia por parte do Estado seria bem melhor aplicada no apoio
directo aos estudantes, sob a forma de bolsas de estudo a fundo perdido.
Os 12 artigos, quase metade do articulado do diploma, "gastos" com a
acção social escolar só servem o propósito de
desviar a atenção, um rol de subterfúgios insensatos, para
procurar iludir a dura realidade de propinas para todos.
Perversidades, ilusões e opções ideológicas
A proposta de lei governamental tem manifestações de
perversidade. Por exemplo, remete para os órgão próprios
dos estabelecimentos de ensino superior público a fixação
do valor exacto das propinas, dentro de um intervalo que o governo fixa (e que
é uma contribuição subsidiária no volume do
orçamento total das instituições). Esta é uma
questão lateral que tem por consequência, talvez mesmo a
intenção, remeter para o interior das instituições
de ensino a discussão do financiamento e potenciar dificuldades no plano
da necessária cooperação interna. Tal é nefasto,
pois que por essa via se suscita o grave risco de remeter para segundo plano o
tratamento de questões mais pertinentes e urgentes que internamente
devem ser debatidas e decididas: medidas de natureza pedagógica visando
a promoção do sucesso escolar, a reflexão e
reelaboração curricular no quadro do Espaço Europeu da
Educação, as inovações de ordem organizativa
visando melhorar a utilização dos recursos humanos e
físicos, etc. Porém estes "custos indirectos" ou
"externalidades" dessa repercussão negativa não entram
nas contas do deve e haver do Ministério.
Outro aspecto nefasto da política governamental de
imposição de propinas, este mais subtil, é pretender gerar
a ilusão que, com as propinas, o Ensino Superior terá os seus
problemas resolvidos e ficará devidamente assegurado. O que é
completamente falso. A reduzida dimensão do sistema de ensino superior,
face ao evidente défice de qualificação a nível
terciário da população e da força de trabalho
portuguesas, bem como os baixos índices de investimento e de despesa
corrente por estudante em Portugal, não são resolvidos nem nunca
serão superáveis pelas propinas. O investimento
estratégico na Educação (a todos os níveis)
é uma parte integrante do projecto de desenvolvimento nacional que ou
é assumido ou não é. Não tem sido.
Como seria de esperar na onda neoliberal que assola o mundo e a União
Europeia em particular também, um dos objectivos indissociáveis
do ataque ao sistema de ensino público é procurar anular o
conceito de interesse social e de bem público que a
Educação é, para ao invés apoiar a
sobrevivência e mesmo a expansão do subsistema de ensino privado,
a caminho da liberalização e mercantilização dos
ensinos. A imposição das propinas no ensino público
é um instrumento para esse efeito. Outro é a
redução administrativa de vagas oferecidas pelos estabelecimentos
públicos - esta medida não é objecto desta particular
proposta de lei, mas o governo está a impô-la vigorosamente. A
presente proposta de lei defende no plano dos princípios o subsistema
privado como prestador de um serviço público,
alternativo ao sistema público, e introduz diversos dispositivos que
expressa ou implicitamente o promove e beneficia.
A Constituição e o projecto nacional
O texto constitucional afirma liberdades, direitos e garantias. Expressamente a
liberdade de aprender e ensinar. A garantia a todos os cidadãos
(não clientes!) de acesso aos graus mais elevados do ensino, segundo as
suas capacidades. E o Estado criando uma rede pública que cubra as
necessidades de toda a população.
Por outras palavras, a Constituição protege o direito a aprender
e a liberdade de ensinar; o direito a frequentar o ensino público; a
liberdade de ensinar no ensino público. Porque poucos terão,
querendo, a liberdade de frequentar o ensino privado, por razões de
meios, e de ensinar em estabelecimento privado, por razão de
opinião ou credo. A Constituição também garante a
gratuitidade progressiva em todos os graus de ensino. As propinas contradizem
esse princípio; os artifícios contabilísticos da
actualização de valores históricos da propina e os
artifícios da oferta de acção social escolar procuraram,
ardilosa ou descaradamente, contornar essas garantias constitucionais de acesso
e de gratuitidade da Educação. Anda meio mundo a querer enganar a
outra metade.
Não é apenas por ideal político que a
Constituição proclama direitos liberdades e garantias e a
responsabilidade do Estado em assegurar a universalidade e gratuitidade do
acesso a todos os graus de ensino. É também por razão de
projecto nacional. Que o governo não toma como seu, fugindo às
suas responsabilidades, servindo outras finalidades. Porque um projecto
nacional é para toda a população, enquanto a
política destes governos é uma política de classe, ditada
por poderosos interesses económicos constituídos e alimentados.
Nas recentes décadas, e com o apoio financeiros dos quadros
comunitários de apoio, foram privilegiados e têm-se
reforçado grupos empresariais ligados a sectores económicos de
baixa intensidade tecnológica e economicamente pouco
reprodutíveis: a construção civil, o comércio por
grosso, o turismo. Estádios de futebol, hipermercados e complexos
hoteleiros poderão gerar bons lucros para quem os constrói e
explora, mas ocupam sobretudo força de trabalho menos qualificada, e
são infra-estruturas de consumo que não fábricas de
trabalho e produção.
Esta tem sido, com nuances, a visão de política
económica de sucessivos governos. A face social dessa política
económica é a importância subalterna conferida às
políticas educativa, laboral e todas as políticas sociais em
geral. Estas têm sido subsidiárias dessoutro projecto
económico do grande capital nacional. A Educação, que
é um instrumento num projecto de desenvolvimento nacional, é um
mero contrapeso no projecto do grande capital.
Esta estratégia governamental segue uma verdadeira espiral na via para o
subdesenvolvimento. Temos à vista o descalabro económico e o
conflito social.
É preciso mudar este rumo.
19/Jun/2003.
[*]
Aos leitores brasileiros: Neste texto a palavra "propinas" nada tem a ver com
gorjetas. Refere-se, sim, aos pagamentos que os estudantes portugueses têm de
fazer para efectuar a matrícula na universidade.
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