O ouro na economia e na finança

por Rui Namorado Rosa

AS MATÉRIAS-PRIMAS NA ECONOMIA E NA FINANÇA
barra de ouro O ouro e o petróleo são duas matérias-primas minerais não renováveis com grande protagonismo na história do século XX. Desempenhando funções diferentes, por razões diversas o seu valor económico e político tem sido enorme. A sua apropriação e a fixação do seu preço tem sido objecto e instrumento de poder. Importa procurar conhecer os factos e os mecanismos subjacentes; o seu desconhecimento por parte da vasta maioria das pessoas tem sido parte essencial para o exercício desse poder.

King Hubbert já em 1974 testemunhara perante a Subcomissão para o Ambiente do Congresso dos EUA, testemunho registado no seu Essay on Exponential Growth the Interest Rate and Inflation , a excepcionalidade do período que vivemos. Constatou o persistente crescimento da produção/consumo de petróleo a nível mundial, à taxa de 7% ao ano durante havia 75 anos já, mas confrontou essa tendência com a finitude das reservas últimas recuperáveis (estimadas então no máximo de 2100 mil milhões de barris, valor ainda hoje considerado próximo da realidade) para concluir então que o pico da produção mundial de petróleo ocorreria cerca do ano 2000 e que o período em que seriam consumidos 80% dessas reservas duraria apenas 64 anos; de tal modo que seria expectável que uma criança nascida cerca de 1970 assistisse ao consumo da quase totalidade desse recurso energético no curso da sua vida.

Porém, tanto o crescimento exponencial da utilização de recursos naturais não renováveis como da população, não são sustentáveis; o planeta Terra não pode suportar mais do que algumas tantas duplicações de ambos. King Hubbert recordou uma lenda da Índia segundo a qual um vassalo pediu ao seu soberano para ser recompensado em trigo num tabuleiro de xadrez, um grão na primeira casa, dois na segunda, quatro na terceira, e assim por diante até à 64ª casa (a quantidade total resulta mil vezes a produção mundial de trigo!), para com ironia exemplificar: «Tome um automóvel norte-americano e duplique o seu número 64 vezes: depois empilhe-os uniformemente sobre toda a superfície de terra do globo. Quão espessa será a camada assim formada? Um milhar de milhas de profundidade.» Os evidentes limites do crescimento exponencial implicarão mais cedo do que tarde alterações culturais profundas; e porque produção é uma actividade económica e social, essas alterações terão profunda expressão política.

Uma das questões para a qual King Hubbert chamou desde logo a atenção é a inflação, suscitada pela diferença de propriedades entre os bens materiais (matéria e energia) e o dinheiro (papel-moeda). O seu argumento baseia-se na hipótese de taxas de crescimento constantes quer para a produção/consumo de bens quer para o dinheiro; aquela fisicamente não sustentável mas este mantido através da taxa de juro. Enquanto não houver constrangimento físico ao crescimento da produção, o preço médio dos bens cresceria a uma taxa que seria a diferença entre a taxa de crescimento da massa monetária e a da produção material. Quanto aos EUA, Hubbert assinalou que o índice de preços ao consumidor se manteve estável desde 1800 até 1910; após o que, e em consonância com a quebra da taxa de crescimento da produção industrial (aferida em termos de produção total de energia e de ferro), porém não acompanhada de correspondente baixa na taxa de juro, o referido índice de preços ao consumidor iniciou um movimento ascendente que se manteve até à data do seu ensaio [M. King Hubbert 1974, Essay on Exponential Growth, the Interest Rate and Inflation , Statement to the Subcommittee on the Environment, House of representatives, US Ninety-third Congress, June 4, 1974]

A economia é certamente muito mais complexa do que o modelo avançado por Hubbert pretendia e pode explicar. Mas o ensaio de Hubbert tem o grande mérito, principalmente nos tempos de loucura especulativa que hoje vivemos, de centrar a atenção da análise dos processos económicos na realidade material e nos limites físicos que a eles estão subjacentes.

A geração e acumulação de capital fictício, por não estar na proporção da produção material, cria enorme espaço para manipulação da economia e para apropriação privada de riqueza. Os limites físicos de disponibilidade de matérias-primas e dos impactos ambientais resultantes da sua utilização são liminarmente esquecidos. A incorporação de trabalho vivo, inerente à dignidade do ser humano e verdadeiro criador de valor económico para a sociedade, torna-se factor “secundário”. O consumismo e a superprodução surgem como necessidade de uma economia degenerada em crise.

O OURO PADRÃO MONETÁRIO

A relação entre o poder financeiro e a economia real foi perceptível enquanto um padrão monetário físico foi geralmente aceite. Esse padrão foi o ouro. Olhando retrospectivamente, a abolição desse padrão foi instrumental na afirmação hegemónica dos EUA no campo da economia e da política mundial bem como na abertura do caminho à especulação financeira global que caracteriza o imperialismo contemporâneo.

A absurda alienação da relação entre preço e valor está bem patente no colossal e persistente défice externo da balança de pagamentos dos EUA, da ordem de $400 mil milhões/ano. Esse país poderoso mantém um elevado défice de contas correntes, atribuído sobretudo à importação de enorme quantidade de mercadorias de todo o mundo; as contas financeiras, pelo contrário, exibem um elevado saldo positivo; quer dizer, os EUA consomem bens em troca de instrumentos de dívida, papel moeda e outros títulos que são reciclados e investidos nos próprios EUA [ http://www.ny.frb.org/pihome/fedpoint/fed40.html ]. Nada de comparável existe nem seria “tolerado” noutro país. Tal é possível porque essa economia gigantesca mas altamente deficitária emite uma moeda, sem contravalor algum, cuja circulação mundial é imposta por força financeira, diplomática e militar. O valor do dólar flutua a um nível que não parece sustentável. A manutenção desta situação instável estimula o lançamento de mais ouro no mercado para, desvalorizando o ouro, manter o dólar artificialmente sobrevalorizado. É assim que essa “ilimitada” capacidade de endividamento tem sido defendida e mantida. Mas há outros factores.

Esse poder económico e político emergiu do seio do sistema capitalista mundial quando a correlação de forças se tornou favorável aos EUA. O preço do ouro tem flutuado largamente ao longo dos tempos. Nos EUA o seu valor fora fixado em favor do dólar ao nível US$35/onça em 1934. Na Conferência de Bretton Woods, realizada ainda durante a Segunda Guerra Mundial (1944) sob a pressão do curso dos acontecimentos de então, o dólar foi aceite pelos demais países capitalistas (enfraquecidos na altura) como moeda de referência internacional. Assim foi entregue aos EUA o controle monetário da economia capitalista mundial; todavia aí se acordou também a convertibilidade dólar-ouro (entre os bancos centrais) e foi fixada a paridade entre ambos. Ao sair da guerra, existia pois um sistema em que a reserva norte-americana de ouro funcionava como contravalor do dólar em circulação, que por sua vez era a referência para as demais moedas, de acordo com taxas de câmbio.

Em Agosto de 1971 a convertibilidade do dólar em ouro foi suspensa pelo presidente Nixon. E em 1972, os Estados Unidos romperam abertamente com o Tratado de Bretton Woods, desvinculando o dólar do ouro e desvalorizando a moeda (primeiro para $38/onça e depois para $42,22/onça, valor este em vigor desde Outubro de 1973) tendo em vista a competitividade da sua economia. A intencionalidade e a importância política destas decisões só ganham nitidez com o passar do tempo. O sistema de Bretton Woods deixou então de existir, dando lugar a um conjunto de moedas sem contravalor e com câmbios flutuantes. Porém o dólar adquirira e mantém ainda a posição de moeda de referência para a maioria das transações internacionais; em particular, a fixação de preços de matérias-primas com referência ao dólar tornou-se num poderoso mecanismo de exploração económica e de domínio político. São os casos do petróleo e do ouro.

Em Novembro de 1973, aquando da intervenção da OPEP na redução da oferta de petróleo e a consequente crise mundial da energia, o duplo mercado do ouro foi abolido nos EUA. Em 1974, o preço do ouro subiu bem como o preço do petróleo, ou por outras palavras, o dólar desvalorizou-se. Então, no fim desse ano o Tesouro dos EUA anunciou ir colocar à venda pública 2 milhões de onças de ouro e, no fim de 1975, o FMI anunciou ir colocar à venda 25 milhões de onças (um sexto das suas reservas) ao longo dos cinco anos seguintes. As vendas de ouro mantiveram-se mas o preço elevado também, até um máximo histórico de $850/onça troy, atingido em Janeiro de 1980.

PRODUÇÃO E CONSUMO DO OURO

O ouro ocupa uma posição única entre as commodities ou (matérias-primas homogéneas transaccionáveis em bolsa) por ser tradicional e universalmente considerado como tendo ainda valor de troca (monetário). O seu preço é por consequência determinado conjuntamente pelo mercado de matérias primas e pelas transacções económicas e financeiras internacionais. Daí o significado político do ouro.

A produção mineira anual tem crescido lentamente tendo atingido 2.550 toneladas no ano 2000; a República Sul Africana foi o maior produtor mundial (431 t), seguida dos EUA (353 t), Austrália (296 t), China (180 t), Canadá (154 t); a RSA detém ainda 50% dos recursos e 38% das reservas. Nos últimos anos tem-se assistido a uma contracção do sector extractivo, concretamente no que respeita ao ouro, com pequenas e médias empresas absorvidas por empresas maiores e estas fundindo-se entre si; o USGS admite que nos próximos anos a indústria venha a reduzir-se a menos de dez grandes companhias produzindo da ordem de 300 t/ano cada; este processo configura um “shakeout” típico de períodos de depressão. É invocada a manutenção de reservas, embora se preveja redução dos projectos de prospecção e atraso em novos projectos de exploração [United States Geological Survey http://minerals.usgs.gov/minerals/pubs/commodity/gold/ ].

A produção mineira de ouro “fresco” estacionou abaixo de 2.600 toneladas/ano e tende a declinar (quebra na prospecção, redução das minas em exploração, redução das reservas e dos teores) em consequência também do baixo preço a que tem sido mantido. A reciclagem fornece cerca de 600 toneladas/ano. Ora a procura estima-se em 4.800 toneladas/ano (sobretudo jóias, seguidamente para a indústria). O défice, cerca de 1.600 t/ano, tem sido suprido por bancos centrais mediante vendas directas (cerca de 400 t/ano) mais empréstimos e vendas a prazo, para consumo e para especulação financeira [ http://www.rense.com/general26/roy.htm ]. Os bancos centrais emprestam activamente ouro que gera receitas, porém a juros muito baixos (cerca de 1% ao ano), pelo que terão outras motivações para o fazer, designadamente procurar conter o preço do ouro, como já ficou dito. Os bancos e companhias que transaccionam o ouro metálico adquirem esse ouro dos bancos centrais para as suas próprias contas e para as de vários especuladores e mesmo para produtores, e também emitem derivativos para aumentarem as receitas e reduzirem os riscos. O ouro emprestado é vendido no mercado físico e incorporado em produtos (sobretudo jóias para a Índia, Médio e Extremo Oriente); o montante de ouro neste mercado de curto prazo é incerto, mas deverá exceder 10 mil toneladas, ou seja, um terço do total de reservas dos bancos centrais; é ouro que em princípio deixou de estar acessível ao mercado financeiro [ http://www.rense.com/general26/roy.htm ].

A MANIPULAÇÃO DO PREÇO DO OURO

O preço do ouro desde 1833 Embora não tenha actualmente cotação fixada, sendo oficialmente uma commodity apenas sujeita ao mercado internacional, várias instituições financeiras, designadamente o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional de Pagamentos (BIP) e, nos EUA, o Departamento do Tesouro, o Exchange Stabilization Fund - ESF (Fundo de Estabilização de Câmbios) e o Federal Reserve Fund (FRF), têm de uma forma ou outra activamente influenciado o preço do ouro.

O ESF foi criado em Janeiro 1934 (Gold Reserv Act); o FMI entrou em operação em Março de 1947, na sequência do Acto Final da conferência das Nações Unidas realizada em 1944 em Bretton Woods. Esta última instituição foi criada à semelhança da primeira, na prática a sua extensão à escala e com fundos internacionais [Bordo & Schartz, 2000]; essa semelhança e estreita cooperação foram mantidas e reforçados em 1978 aquando da alteração ao Gold Reserve Act pelo Congresso; nessa ocasião foi consagrada a desmonetarização do ouro e foram impostos estreitos limites ao seu uso pelo FMI e pelas nações nele associadas [Joint Economic Committee (US Congress) http://www.house.gov/jec ].

Os EUA propuseram em 1999 que o FMI procedesse à venda de 3200 toneladas de ouro, alegadamente como parte de um plano para auxílio a países pobres muito endividados (HIPC) [ http://www.house.gov/jec/imf/gold/gold.htm ]. As reservas de ouro do FMI são um instrumento também à disposição do grande capital financeiro. Mas não só. Através do FMI, numerosos países em crise financeira têm a bem ou a mal sido pressionados a alienar parte ou a totalidade das suas reservas de ouro. Assim aconteceu com a Argentina em 1997 (debilitando a sua capacidade de reacção autónoma face à crise monetária em desenvolvimento). O Uruguai é a vítima mais recente desse tipo de intervenção financeira, verdadeiramente política. Assim se dirá que, directa e indirectamente, a intervenção do FMI se repercute também no mercado internacional do ouro.

A reserva de ouro dos EUA desempenha dois papeis. Por um lado reside nos cofres fortes da Reserva Federal. Entretanto, o Departamento do Tesouro emitiu os correspondentes certificados que são propriedade da Reserva e que comprovam a sua posse de 261 milhões de onças troy de ouro [*] . Todavia o Departamento do Tesouro transferiu os DES – Direitos Especiais de Saque – o equivalente em papel do ouro à taxa de 35 DES/onça para o Exchange Stabilization Fund - ESF. Actualmente, os fundos de que o ESF dispõe são moeda estrangeira e títulos do Tesouro (incluindo DES emitidos pelo Tesouro norte-americano e pelo FMI), mas supostamente não ouro, no montante de $35 mil milhões (Federal Reserve Bank of New York, http://www.ny.frb.org ) A sua função assumida é intervir no mercado de câmbios, aí se incluindo a prestação de apoio de curto prazo a instituições homólogas de outros países. A sua administração está sob a autoridade do Presidente, através do Secretário do Tesouro, e está fora da alçada do Congresso. O seu poder é tão grande quão discreto. O Departamento do Tesouro tem negado a intervenção do ESF em operações envolvendo ouro ou seus derivativos desde 1978. Mas acumula-se evidência de que o ESF tem de facto realizado tais intervenções desde 1995. [ http://www.goldensextant.com/commentary17.html#anchor70521 ].

Ainda em Julho deste ano de 2002, foi presente à Câmara dos Representantes do Congresso norte-americano uma lei no sentido obrigar o presidente e o Secretário do Tesouro a obterem do Congresso aprovação prévia para intervenções do ESF em empréstimos superiores a $1.000 milhões, assim evitando a intervenção dissimulada no mercado do ouro. Os proponentes invocaram evidência fornecia pelo Gold Anti-trust Action Committee - GATA – que sugere a intervenção sistemática do ESF, em cooperação com o FMI, no sentido da depreciação do preço do ouro; como a subida do preço do ouro é percepcionada como sintoma de inflação, essa actuação teria o propósito de iludir a verdadeira natureza da “bolha” financeira da década de 90. Também o RBC Global Investment Management Inc., divisão do Royal Bank of Canada especializada no mercado do ouro, produziu um relatório em que essencialmente subscreve a análise do mercado do ouro feita pelo GATA [ http://biz.yahoo.com/bw/020708/80165_1.html ]. Mas o Instituto for International Economics defende a legitimidade da actuação do ESF e da discrição do Tesouro. [ http://www.iie.com/policybriefs/news99-8.htm ]. A propostas de lei foi rejeitada por 228-192 votos.

Também muitos outros bancos centrais de todo o mundo têm interferido no controlo do preço do ouro, mediante vendas e empréstimos (a juro muito baixo) e também swaps , a ritmo crescente nos últimos anos. Os beneficiários são sobretudo bancos e companhias que transaccionam em commodities . Nos últimos cinco anos podemos assinalar as principais vendas de ouro pelos bancos centrais: de 1986 a 1996 o Canadá, 594 toneladas, quase 90% das suas reservas; em 1996 os Países Baixos, um terço das suas reservas; a Austrália, 167 toneladas em 1997; também em 1997 a Argentina, a totalidade das suas reservas, 125 t; a Bélgica em Março de 1998, 299 t, cerca de metade das suas reservas; em Abril de 1999 a Suíça decidiu revalorizar as suas reservas, vender parte do “excesso” assim gerado e reduzir o lastro em ouro do papel moeda de 40% para 25%; em Maio de 1999, o Reino Unido anunciou a venda de 415 t das suas 715 t de reservas, 125 t no primeiro ano, reduzindo a proporção do ouro nas suas reservas para o nível de 7%; a última das 17 vendas ocorreu em Março de 2002, ocasião em que a cotação atingiu o valor mais elevado ($296/onça) [ http://www.24carat.co.uk/goldsales.html ].

Algumas destas vendas terão sido percursoras da adesão à União Monetária Europeia, para satisfação de critérios para a moeda única e porque os países membros passaram a ficar dependentes do Banco Central Europeu – BCE para a realização de tais operações. Em Julho de 1998, o BCE anunciou que 15% das suas reservas seriam ouro. Com inicio em Janeiro de 1999, o Eurosystem, que compreende o BCE e os bancos centrais dos onze países membros, detinham 12.574 t de ouro em reservas, mais de um terço do montante de reservas oficiais em todo o mundo. Segundo alguns comentadores, o Banco Central Europeu deterá €261 mil milhões de reservas em moeda estrangeira e €120 mil milhões em ouro (Finantial Times).

O BundesBank (banco central da Alemanha) anunciou em Abril passado (2002) a intenção de prosseguir com o lançamento de ouro metálico e títulos das respectivas reservas, anúncio de que o Banco Central Europeu fez eco. E todavia fora um dos principais actores por detrás do chamado Acordo de Washington (Setembro de 1999), entre os 15 bancos centrais da União Europeia, para efeitos de limitação de vendas e empréstimos pelos bancos centrais, pelo espaço de cinco anos. Segundo aquele acordo, os bancos centrais comprometeram-se a limitar conjuntamente as respectivas vendas a 400 t/ano até 2004. Agora o BundesBank, que possui em reservas cerca de 3.500 t de ouro estimado em € 35 mil milhões mais € 50 milhões de milhões em moeda estrangeira, afirma a intenção de proceder a vendas após o presente acordo expirar [ http://www.kitco.com/ind/Field/apr212002.html ] .
O que se passa actualmente na fixação do preço do ouro não é essencialmente diferente do que se passou por volta de 1970. Então, um consórcio de bancos centrais lançava ouro para o mercado, o suficiente para manter o preço ao nível de $35/onça. A diferença é que, actualmente, a intervenção dos bancos é encoberta, porque o mercado é supostamente livre (e o mercado oficial foi formalmente extinto). A situação é diferente também, e muito preocupante, porque associado ao ouro, cuja disponibilidade física é curta, pois o seu défice se estima em 800 toneladas/ano (suprido por reservas bancárias), correm agora derivativos em montante muito superior ao correspondente montante no mercado físico.

A APROPRIAÇÃO IMPERIALISTA DA RIQUEZA

O volume global das transações sobre ouro excede largamente o volume das suas transações físicas. Ora comparemos os montantes médios das transações, procura e ofertas diárias (ano de 1999, a título exemplificativo): na London Bullion Market Association - LBMA 28 milhões de onças; na COMEX (New York) 4 milhões de onças em contratos de futuros; produção mineira mundial 271 mil onças; reciclagem de sucata 80 mil onças; procura industrial 419 mil onças; procura para investimento 45 mil; vendas de bancos centrais 46 mil onças. É evidente que as transações em Londres e New York têm uma componente financeira especulativa com repercussão sobre o preço. Mas existem outras razões para esses fluxos colossais.
[ http://www.gold-eagle.com/editorials_99/cpm102199.html ]

Em 1999, alguns analistas anunciaram que, quer na COMEX quer na LBMA, os bancos de commodities que transaccionam o ouro tinham acumulado compromissos que excediam em quase 15.000 toneladas as suas disponibilidades (ou seja, quase metade do total das reservas oficiais mundiais). O Banco de Inglaterra forneceu por mais de uma vez ouro das suas reservas para prover os défices de bancos de commodities associados no LBMA, designadamente em 1999, para assegurar fornecimentos de ouro metálico a clientes desconhecidos presumivelmente sauditas. [ http://www.gold-eagle.com/editorials_99/hickel080999.html ].

LBMA, criada em 1988, associa os maiores corporações que negoceiam em ouro. Segundo o seu relatório diário, que só em 1997 começou a ser publicado, o volume de transações diárias ascendia então a 1.300 toneladas por dia! (cerca de metade da produção anual mundial) no montante de $4 milhões de milhões anuais. Este volume de transacções é extraordinário e intrigante. Obviamente grandes fluxos financeiros estão aí interessados e não há muitas origens com tal dimensão de onde possam provir. A interpretação mais plausível é uma ligação entre os mercados do ouro e do petróleo. O LBMA seria a solução conveniente e discreta para transações maciças de ouro entre países exportadores e importadores de petróleo. Para os países do Golfo Pérsico trata-se de obter “moeda” real em vez de papel moeda em pagamento pelos fornecimentos de petróleo. Para os países industrializados e ricos trata-se de assegurar o abastecimento de petróleo a baixo preço. Quer dizer que têm sido essas transacções quase secretas que tem assegurado o fluxo de petróleo a baixo custo, no interesse da ambas as partes. Como poderia haver um tão intenso mercado de ouro sem aparente impacto sobre o seu preço? Porque o petróleo funciona como pagamento parcial desse ouro. E os bancos centrais vão alimentando esse mercado de ouro metálico, substituindo ouro físico por certificados, mantendo assim o fluxo de ouro necessário. O petróleo é vendido a baixo preço em dólares; mas após a venda, uma certa proporção de ouro é comprada também a baixo preço com esses mesmos dólares; ou então um fluxo futuro de ouro é oferecido como colateral [ http://www.usagold.com/GoldTrail/archives/ANOTHER1.html ].
No fundamental, o ouro e o petróleo, cujos preços em dólar estão ambos fortemente depreciados, são transaccionados, por aqueles que os detêm, pelos seus elevados valores reais; o valor de troca do dólar, mero intermediário, é aí irrelevante. Enquanto isto, a real sobrevalorização do dólar, que se repercute na generalidade das demais transações, mantém-se dissimulada aos olhos do público em geral [ http://www.usagold.com/goldtrail/ ].

A apropriação de grandes lucros nas transações financeiras é facilitada pela multiplicação dos produtos financeiros que foram inventados e é acelerada pelo intensificação dos fluxos financeiros que circulam nas bolsas de valores e de mercadorias (para o que contribuem cumulativamente o volume de produtos financeiros e a taxa a que são transaccionados). Entre os diversos produtos financeiros em curso, os derivativos ganharam particular relevância. O seu uso teve um crescimento exponencial nas duas últimas décadas, e as transações mundiais de derivativos atingiram a ordem de $100 milhões de milhões. Os derivativos são actualmente utilizados pelas grandes instituições financeiras, instituições governamentais, empresas, fundos de pensões, especuladores. A importância instrumental dos derivativos pode ser bem ilustrada através de uma das maiores instituições bancárias mundiais, o J.P. Morgan Chase & Co.

O J.P. Morgan Chase & Co. resultou da fusão dos J.P. Morgan e Chase Manhattan no segundo semestre de 2001. É um dos maiores bancos do mundo, com activos no montante de $700 mil milhões e capital de $41 mil milhões; a sua área forte é a dos derivativos, pois que detém 50% do mercado de derivativos dos EUA. No final do ano passado (2001), JPM tinha contratos de derivativos que ascendiam a $23,5 milhões de milhões; este valor extraordinário corresponde, porém, a uma não menos extraordinária redução da soma dos derivativos das duas instituições originárias, uma redução de $7 milhões de milhões em apenas seis meses, presume-se que atribuível a netting e a transação de derivativos entre ambas aquando da sua fusão [ http://www.kitco.com/ind/DChapman/june132002.html ].

Em particular, a JPM dispõe de posições importantes em derivativos de ouro, estimados em $41 mil milhões, o que representa 65% dos derivativos de ouro a correr nos EUA, e corresponde a 4634 toneladas de ouro; valores extraordinários; extraordinário também que no referido período de seis meses, em que decorreu a fusão, a quebra de posição do conglomerado nestes derivativos de ouro foi 26,5% [ http://www.kitco.com/ind/DChapman/june132002.html ].

A grande exposição da JPM aos derivativos tem sido objecto de várias análises, quer por força da dimensão gigantesca deste banco, quer pelo facto de ter relações financeiras com vários colapsos financeiros recentes – Enron, Kmart, Argentina, entre outros. Finalmente, J.P. Morgan Chase & Co. lidera a lista dos credores da recentemente falida Worldcom Corp.com $26.8 mil milhões de dívida mal parada (USA Today). Esta falência envolve contabilidade fraudulenta, em consequência da qual $50 mil milhões serão existências benevolentes ou intangíveis que deverão ser eliminadas. O fenómeno J.P. Morgan Chase & Co. não sendo (ainda) caso para escândalo financeiro, coloca de forma muito viva a natureza da riqueza financeira e a sua volatilidade. E bem assim, a forma e o propósito com que essa riqueza é gerida.

A SITUAÇÃO MUNDIAL: RISCO DE COLAPSO FINANCEIRO

O envolvimento dos bancos centrais na manipulação do preço do ouro é obscura mas vai se tornando evidente. Os EUA têm sido os principais protagonistas nessa acção, quer directamente quer por interpostas instituições internacionais em que têm influência decisiva. Essa acção implica sacrifícios para terceiros e manifesta-se num esforço financeiro expressivo. Assim, o Departamento do Tesouro registou mais de 10 mil certificados de DES (direitos especiais de saque) em 1995. O seu montante reduziu-se entretanto de perto de 8 mil, para pouco mais de 2000, em 2001. Na base de 35 DES/onça, essa redução equivale a uma redução das reservas de ouro em 228 milhões de onças, ou seja, em cerca de 87% do seu montante inicial. Será essa a razão por que as 7.700 (em 8.140) toneladas das reservas de ouro à guarda do Tesouro dos EUA foram reclassificadas em 2001 como deep storage gold . Será ouro fisicamente presente nos cofres fortes, mas comprometido e na prática não mais negociável.
A tendência para a indisponibilidade de ouro físico parece acelerar-se e poderá agravar-se. Consideremos o Japão que é um importante investidor em ouro. Recentemente, o governo reduziu o seguro dos depósitos bancários (sinal negativo sobre a solidez do sistema). Ora se os japoneses investissem a parte das suas poupanças agora não seguradas, o que equivale a 10% dos seus depósitos bancários, na aquisição de ouro, adquiririam metade do inventário de ouro de todos os bancos centrais. Consideremos agora o Canadá. Os canadianos foram, a partir de agora, autorizados a investir directamente em ouro (ou outros metais preciosos) os respectivos planos de poupança de reforma; isto é, um novo fundo de investimento em ouro metálico (não acções, opções ou futuros) foi aí criado. Se apenas 10% dos planos de poupança de reforma fossem investidos em ouro, seria $40 mil milhões, mais de um terço da oferta mundial de ouro. Qualquer das duas evoluções aqui referidas, a acontecer, repercutir-se-ia decididamente no preço do ouro no mercado [ http://www.kitco.com/ind/Sak/july052002.htm ].

Vejamos o que se passa nas bolsas de valores e de mercadorias. As estatísticas do Banco Internacional de Pagamentos ( www.bis.org/press/p020515.htm ) revelam que os derivativos do ouro dos grandes bancos centrais e comerciais cresceram de $203 para $231 mil milhões só no segundo semestre de 2001. Por outro lado, as estatísticas do BIP ( www.bis.org/press/p020318.htm ) revelam que os derivativos nas contas dos bancos e negociantes de quase cinquenta países aumentaram $50 mil milhões nos últimos três anos, o que equivale a mais de 5.000 toneladas; e o total ascendia já a $278 mil milhões, o que representa 29.000 toneladas, ou seja, quase o total das reservas dos bancos centrais em ouro. Constata-se que à redução da disponibilidade de ouro físico se contrapõe o incremento dos instrumentos financeiros a ele associados.

Presumindo que toda a produção mineira, inferior a 3.000 t/ano, seja satisfeita por contratos a prazo e que todas as opções relatadas pelo BIP sejam satisfeitas em moeda e não em metal, os compromissos pendentes nas contas dos bancos e dos negociantes de ouro parecem exceder os compromissos dos produtores mineiros, num montante que representa perto de quatro anos de produção. A eventual intenção de reduzir os contratos a prazo por parte dos produtores certamente não seria bem vinda por esses bancos e negociantes. E todavia, quando o CEO (director executivo) da AngloGold Ltd., empresa sediada na RSA que é a maior produtora mundial de ouro, anunciou em 30 de Abril os resultados do primeiro trimestre de 2002, afirmou que, dado o contexto de preços agora mais firmes, só no decurso desse trimestre reduzira de 60% para 40% os compromissos de vendas a longo prazo relativos ao corrente ano [ http://www.goldensextant.com/commentary20.html ].

O mercado do ouro é relativamente estreito, com um teto de cerca de $90 mil milhões. Assim sendo, será possível a um grande especulador investir capital suficiente na compra de ouro para fazer subir a sua cotação. Desde 1980, a massa monetária duplicou nos EUA ao passo que o capital investido no mercado do ouro foi reduzido a metade, isto é, existe o dobro do dinheiro para negociar metade do mercado. Por essa altura o ouro chegou a ser cotado a $850/onça. A situação de risco mantém-se latente e agravada porque os bancos centrais não têm exigido os reembolsos dos empréstimos que vêm fazendo aos bancos de commodities . [ http://www.kitco.com/ind/Sak/july052002.htm ]. Os bancos centrais mantêm-se em silêncio e o público é mantido na ignorância dessa situação. Pelo contrário, os bancos centrais anunciam e procedem a vendas directas de ouro ou prosseguem com empréstimos do remanescente.

De entre os quatro maiores bancos que transaccionam ouro, o J.P. Morgan Chase & Co. detém 65% do mercado de derivativos do ouro nos EUA; mas a sua liquidez será apenas 1:200 do valor atribuído aos derivativos que negoceia. Esta proporção é dez vezes inferior à considerada “segura”. De facto, trata-se de uma desproporção absurda. Um colapso da posição dos derivativos, como aconteceu com a Enron, poderia acontecer com a o J.P. Morgan Chase & Co. Podemos recear que a referida desproporção absurda, entre valores líquidos e valores negociados, não seja situação singular no seio do sistema vigente e da furiosa concorrência que o agita. Enquanto isto, as empresas produtoras de ouro detêm no seu conjunto apenas 11% dos derivativos de ouro; o mercado de derivativos do ouro, que monta a $250 mil milhões, é de facto dominado (98%) pelas companhias que transaccionam o ouro e entidades financeiras. O omnipresente mercado de derivativos assenta, pois, numa muita estreita base de suporte. Situação muito instável, que naturalmente conduzirá ao seu próprio colapso.

Mas em caso de desastre financeiro, as receitas fabulosas das especulações financeiras não deixarão de ser propriedade privada de alguns poucos. Aqueles que discretamente alimentam a fantasia de milhares de pequenos especuladores e de milhões de contribuintes impotentes no quadro político-institucional do capitalismo. A abusiva identificação da finança com a economia e a real desmaterialização da finança para assim simular a fictícia desmaterialização da economia, são elementos de subversão do quadro racional de interpretação da realidade, com que o imperialismo procura manter o seu domínio ideológico sobre todo o mundo.

O preço do ouro ao longo de 600 anos


11 de Agosto de 2002.

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[*] 1 onça troy = 31,103 476 8 gramas.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info
17/Ago/02