por Rui Namorado Rosa
AS MATÉRIAS-PRIMAS NA ECONOMIA E NA FINANÇA
O ouro e o petróleo são duas matérias-primas minerais
não renováveis com grande protagonismo na história do
século XX. Desempenhando funções diferentes, por
razões diversas o seu valor económico e político tem sido
enorme. A sua apropriação e a fixação do seu
preço tem sido objecto e instrumento de poder. Importa procurar
conhecer os factos e os mecanismos subjacentes; o seu desconhecimento por parte
da vasta maioria das pessoas tem sido parte essencial para o exercício
desse poder.
King Hubbert já em 1974 testemunhara perante a Subcomissão para o
Ambiente do Congresso dos EUA, testemunho registado no seu
Essay on Exponential Growth the Interest Rate and Inflation
, a excepcionalidade do período que vivemos. Constatou o persistente
crescimento da produção/consumo de petróleo a nível
mundial, à taxa de 7% ao ano durante havia 75 anos já, mas
confrontou essa tendência com a finitude das reservas últimas
recuperáveis (estimadas então no máximo de 2100 mil
milhões de barris, valor ainda hoje considerado próximo da
realidade) para concluir então que o pico da produção
mundial de petróleo ocorreria cerca do ano 2000 e que o período
em que seriam consumidos 80% dessas reservas duraria apenas 64 anos; de tal
modo que seria expectável que uma criança nascida cerca de 1970
assistisse ao consumo da quase totalidade desse recurso energético no
curso da sua vida.
Porém, tanto o crescimento exponencial da utilização de
recursos naturais não renováveis como da população,
não são sustentáveis; o planeta Terra não pode
suportar mais do que algumas tantas duplicações de ambos. King
Hubbert recordou uma lenda da Índia segundo a qual um vassalo pediu ao
seu soberano para ser recompensado em trigo num tabuleiro de xadrez, um
grão na primeira casa, dois na segunda, quatro na terceira, e assim por
diante até à 64ª casa (a quantidade total resulta mil vezes
a produção mundial de trigo!), para com ironia exemplificar:
«Tome um automóvel norte-americano e duplique o seu número
64 vezes: depois empilhe-os uniformemente sobre toda a superfície de
terra do globo. Quão espessa será a camada assim formada? Um
milhar de milhas de profundidade.» Os evidentes limites do crescimento
exponencial implicarão mais cedo do que tarde alterações
culturais profundas; e porque produção é uma actividade
económica e social, essas alterações terão
profunda expressão política.
Uma das questões para a qual King Hubbert chamou desde logo a
atenção é a inflação, suscitada pela
diferença de propriedades entre os bens materiais (matéria e
energia) e o dinheiro (papel-moeda). O seu argumento baseia-se na
hipótese de taxas de crescimento constantes quer para a
produção/consumo de bens quer para o dinheiro; aquela fisicamente
não sustentável mas este mantido através da taxa de juro.
Enquanto não houver constrangimento físico ao crescimento da
produção, o preço médio dos bens cresceria a uma
taxa que seria a diferença entre a taxa de crescimento da massa
monetária e a da produção material. Quanto aos EUA,
Hubbert assinalou que o índice de preços ao consumidor se manteve
estável desde 1800 até 1910; após o que, e em
consonância com a quebra da taxa de crescimento da produção
industrial (aferida em termos de produção total de energia e de
ferro), porém não acompanhada de correspondente baixa na taxa de
juro, o referido índice de preços ao consumidor iniciou um
movimento ascendente que se manteve até à data do seu ensaio [M.
King Hubbert 1974,
Essay on Exponential Growth, the Interest Rate and Inflation
, Statement to the Subcommittee on the Environment, House of representatives,
US Ninety-third Congress, June 4, 1974]
A economia é certamente muito mais complexa do que o modelo
avançado por Hubbert pretendia e pode explicar. Mas o ensaio de Hubbert
tem o grande mérito, principalmente nos tempos de loucura especulativa
que hoje vivemos, de centrar a atenção da análise dos
processos económicos na realidade material e nos limites físicos
que a eles estão subjacentes.
A geração e acumulação de capital fictício,
por não estar na proporção da produção
material, cria enorme espaço para manipulação da economia
e para apropriação privada de riqueza. Os limites físicos
de disponibilidade de matérias-primas e dos impactos ambientais
resultantes da sua utilização são liminarmente esquecidos.
A incorporação de trabalho vivo, inerente à dignidade do
ser humano e verdadeiro criador de valor económico para a sociedade,
torna-se factor secundário. O consumismo e a
superprodução surgem como necessidade de uma economia degenerada
em crise.
O OURO PADRÃO MONETÁRIO
A relação entre o poder financeiro e a economia real foi
perceptível enquanto um padrão monetário físico foi
geralmente aceite. Esse padrão foi o ouro. Olhando retrospectivamente, a
abolição desse padrão foi instrumental na
afirmação hegemónica dos EUA no campo da economia e da
política mundial bem como na abertura do caminho à
especulação financeira global que caracteriza o imperialismo
contemporâneo.
A absurda alienação da relação entre preço e
valor está bem patente no colossal e persistente défice externo
da balança de pagamentos dos EUA, da ordem de $400 mil
milhões/ano. Esse país poderoso mantém um elevado
défice de contas correntes, atribuído sobretudo à
importação de enorme quantidade de mercadorias de todo o mundo;
as contas financeiras, pelo contrário, exibem um elevado saldo positivo;
quer dizer, os EUA consomem bens em troca de instrumentos de dívida,
papel moeda e outros títulos que são reciclados e investidos nos
próprios EUA [
http://www.ny.frb.org/pihome/fedpoint/fed40.html
]. Nada de comparável existe nem seria tolerado noutro
país. Tal é possível porque essa economia gigantesca mas
altamente deficitária emite uma moeda, sem contravalor algum, cuja
circulação mundial é imposta por força financeira,
diplomática e militar. O valor do dólar flutua a um nível
que não parece sustentável. A manutenção desta
situação instável estimula o lançamento de mais
ouro no mercado para, desvalorizando o ouro, manter o dólar
artificialmente sobrevalorizado. É assim que essa ilimitada
capacidade de endividamento tem sido defendida e mantida. Mas há outros
factores.
Esse poder económico e político emergiu do seio do sistema
capitalista mundial quando a correlação de forças se
tornou favorável aos EUA. O preço do ouro tem flutuado largamente
ao longo dos tempos. Nos EUA o seu valor fora fixado em favor do dólar
ao nível US$35/onça em 1934. Na Conferência de Bretton
Woods, realizada ainda durante a Segunda Guerra Mundial (1944) sob a
pressão do curso dos acontecimentos de então, o dólar foi
aceite pelos demais países capitalistas (enfraquecidos na altura) como
moeda de referência internacional. Assim foi entregue aos EUA o controle
monetário da economia capitalista mundial; todavia aí se acordou
também a convertibilidade dólar-ouro (entre os bancos centrais) e
foi fixada a paridade entre ambos. Ao sair da guerra, existia pois um sistema
em que a reserva norte-americana de ouro funcionava como contravalor do
dólar em circulação, que por sua vez era a
referência para as demais moedas, de acordo com taxas de câmbio.
Em Agosto de 1971 a convertibilidade do dólar em ouro foi suspensa pelo
presidente Nixon. E em 1972, os Estados Unidos romperam abertamente com o
Tratado de Bretton Woods, desvinculando o dólar do ouro e desvalorizando
a moeda (primeiro para $38/onça e depois para $42,22/onça, valor
este em vigor desde Outubro de 1973) tendo em vista a competitividade da sua
economia. A intencionalidade e a importância política destas
decisões só ganham nitidez com o passar do tempo. O sistema de
Bretton Woods deixou então de existir, dando lugar a um conjunto de
moedas sem contravalor e com câmbios flutuantes. Porém o
dólar adquirira e mantém ainda a posição de moeda
de referência para a maioria das transações internacionais;
em particular, a fixação de preços de
matérias-primas com referência ao dólar tornou-se num
poderoso mecanismo de exploração económica e de
domínio político. São os casos do petróleo e do
ouro.
Em Novembro de 1973, aquando da intervenção da OPEP na
redução da oferta de petróleo e a consequente crise
mundial da energia, o duplo mercado do ouro foi abolido nos EUA. Em 1974, o
preço do ouro subiu bem como o preço do petróleo, ou por
outras palavras, o dólar desvalorizou-se. Então, no fim desse
ano o Tesouro dos EUA anunciou ir colocar à venda pública 2
milhões de onças de ouro e, no fim de 1975, o FMI anunciou ir
colocar à venda 25 milhões de onças (um sexto das suas
reservas) ao longo dos cinco anos seguintes. As vendas de ouro mantiveram-se
mas o preço elevado também, até um máximo
histórico de $850/onça troy, atingido em Janeiro de 1980.
PRODUÇÃO E CONSUMO DO OURO
O ouro ocupa uma posição única entre as
commodities
ou (matérias-primas homogéneas transaccionáveis em bolsa)
por ser tradicional e universalmente considerado como tendo ainda valor de
troca (monetário). O seu preço é por consequência
determinado conjuntamente pelo mercado de matérias primas e pelas
transacções económicas e financeiras internacionais.
Daí o significado político do ouro.
A produção mineira anual tem crescido lentamente tendo atingido
2.550 toneladas no ano 2000; a República Sul Africana foi o maior
produtor mundial (431 t), seguida dos EUA (353 t), Austrália (296 t),
China (180 t), Canadá (154 t); a RSA detém ainda 50% dos recursos
e 38% das reservas. Nos últimos anos tem-se assistido a uma
contracção do sector extractivo, concretamente no que respeita ao
ouro, com pequenas e médias empresas absorvidas por empresas maiores e
estas fundindo-se entre si; o USGS admite que nos próximos anos a
indústria venha a reduzir-se a menos de dez grandes companhias
produzindo da ordem de 300 t/ano cada; este processo configura um
shakeout típico de períodos de depressão.
É invocada a manutenção de reservas, embora se preveja
redução dos projectos de prospecção e atraso em
novos projectos de exploração [United States Geological Survey
http://minerals.usgs.gov/minerals/pubs/commodity/gold/
].
A produção mineira de ouro fresco estacionou abaixo
de 2.600 toneladas/ano e tende a declinar (quebra na prospecção,
redução das minas em exploração,
redução das reservas e dos teores) em consequência
também do baixo preço a que tem sido mantido. A reciclagem
fornece cerca de 600 toneladas/ano. Ora a procura estima-se em 4.800
toneladas/ano (sobretudo jóias, seguidamente para a indústria). O
défice, cerca de 1.600 t/ano, tem sido suprido por bancos centrais
mediante vendas directas (cerca de 400 t/ano) mais empréstimos e vendas
a prazo, para consumo e para especulação financeira [
http://www.rense.com/general26/roy.htm
]. Os bancos centrais emprestam activamente ouro que gera receitas,
porém a juros muito baixos (cerca de 1% ao ano), pelo que terão
outras motivações para o fazer, designadamente procurar conter o
preço do ouro, como já ficou dito. Os bancos e companhias que
transaccionam o ouro metálico adquirem esse ouro dos bancos centrais
para as suas próprias contas e para as de vários especuladores e
mesmo para produtores, e também emitem derivativos para aumentarem as
receitas e reduzirem os riscos. O ouro emprestado é vendido no mercado
físico e incorporado em produtos (sobretudo jóias para a
Índia, Médio e Extremo Oriente); o montante de ouro neste mercado
de curto prazo é incerto, mas deverá exceder 10 mil toneladas,
ou seja, um terço do total de reservas dos bancos centrais; é
ouro que em princípio deixou de estar acessível ao mercado
financeiro [
http://www.rense.com/general26/roy.htm
].
A MANIPULAÇÃO DO PREÇO DO OURO
Embora não tenha actualmente cotação fixada, sendo
oficialmente uma
commodity
apenas sujeita ao mercado internacional, várias
instituições financeiras, designadamente o Fundo Monetário
Internacional (FMI) e o Banco Internacional de Pagamentos (BIP) e, nos EUA, o
Departamento do Tesouro, o Exchange Stabilization Fund - ESF (Fundo de
Estabilização de Câmbios) e o Federal Reserve Fund (FRF),
têm de uma forma ou outra activamente influenciado o preço do
ouro.
O ESF foi criado em Janeiro 1934 (Gold Reserv Act); o FMI entrou em
operação em Março de 1947, na sequência do Acto
Final da conferência das Nações Unidas realizada em 1944 em
Bretton Woods. Esta última instituição foi criada à
semelhança da primeira, na prática a sua extensão à
escala e com fundos internacionais [Bordo & Schartz, 2000]; essa
semelhança e estreita cooperação foram mantidas e
reforçados em 1978 aquando da alteração ao Gold Reserve
Act pelo Congresso; nessa ocasião foi consagrada a
desmonetarização do ouro e foram impostos estreitos limites ao
seu uso pelo FMI e pelas nações nele associadas [Joint Economic
Committee (US Congress)
http://www.house.gov/jec
].
Os EUA propuseram em 1999 que o FMI procedesse à venda de 3200 toneladas
de ouro, alegadamente como parte de um plano para auxílio a
países pobres muito endividados (HIPC) [
http://www.house.gov/jec/imf/gold/gold.htm
]. As reservas de ouro do FMI são um instrumento também à
disposição do grande capital financeiro. Mas não
só. Através do FMI, numerosos países em crise financeira
têm a bem ou a mal sido pressionados a alienar parte ou a totalidade das
suas reservas de ouro. Assim aconteceu com a Argentina em 1997 (debilitando a
sua capacidade de reacção autónoma face à crise
monetária em desenvolvimento). O Uruguai é a vítima mais
recente desse tipo de intervenção financeira, verdadeiramente
política. Assim se dirá que, directa e indirectamente, a
intervenção do FMI se repercute também no mercado
internacional do ouro.
A reserva de ouro dos EUA desempenha dois papeis. Por um lado reside nos cofres
fortes da Reserva Federal. Entretanto, o Departamento do Tesouro emitiu os
correspondentes certificados que são propriedade da Reserva e que
comprovam a sua posse de 261 milhões de onças troy de ouro
[*]
.
Todavia o Departamento do Tesouro transferiu os DES Direitos Especiais
de Saque o equivalente em papel do ouro à taxa de 35
DES/onça para o Exchange Stabilization Fund - ESF. Actualmente, os
fundos de que o ESF dispõe são moeda estrangeira e títulos
do Tesouro (incluindo DES emitidos pelo Tesouro norte-americano e pelo FMI),
mas supostamente não ouro, no montante de $35 mil milhões
(Federal Reserve Bank of New York,
http://www.ny.frb.org
) A sua função assumida é intervir no mercado de
câmbios, aí se incluindo a prestação de apoio de
curto prazo a instituições homólogas de outros
países. A sua administração está sob a autoridade
do Presidente, através do Secretário do Tesouro, e está
fora da alçada do Congresso. O seu poder é tão grande
quão discreto. O Departamento do Tesouro tem negado a
intervenção do ESF em operações envolvendo ouro ou
seus derivativos desde 1978. Mas acumula-se evidência de que o ESF tem de
facto realizado tais intervenções desde 1995. [
http://www.goldensextant.com/commentary17.html#anchor70521
].
Ainda em Julho deste ano de 2002, foi presente à Câmara dos
Representantes do Congresso norte-americano uma lei no sentido obrigar o
presidente e o Secretário do Tesouro a obterem do Congresso
aprovação prévia para intervenções do ESF em
empréstimos superiores a $1.000 milhões, assim evitando a
intervenção dissimulada no mercado do ouro. Os proponentes
invocaram evidência fornecia pelo Gold Anti-trust Action Committee - GATA
que sugere a intervenção sistemática do ESF, em
cooperação com o FMI, no sentido da depreciação do
preço do ouro; como a subida do preço do ouro é
percepcionada como sintoma de inflação, essa
actuação teria o propósito de iludir a verdadeira natureza
da bolha financeira da década de 90. Também o RBC
Global Investment Management Inc., divisão do Royal Bank of Canada
especializada no mercado do ouro, produziu um relatório em que
essencialmente subscreve a análise do mercado do ouro feita pelo GATA [
http://biz.yahoo.com/bw/020708/80165_1.html
]. Mas o Instituto for International Economics defende a legitimidade da
actuação do ESF e da discrição do Tesouro. [
http://www.iie.com/policybriefs/news99-8.htm
]. A propostas de lei foi rejeitada por 228-192 votos.
Também muitos outros bancos centrais de todo o mundo têm
interferido no controlo do preço do ouro, mediante vendas e
empréstimos (a juro muito baixo) e também
swaps
, a ritmo crescente nos últimos anos. Os beneficiários são
sobretudo bancos e companhias que transaccionam em
commodities
. Nos últimos cinco anos podemos assinalar as principais vendas de ouro
pelos bancos centrais: de 1986 a 1996 o Canadá, 594 toneladas, quase 90%
das suas reservas; em 1996 os Países Baixos, um terço das suas
reservas; a Austrália, 167 toneladas em 1997; também em 1997 a
Argentina, a totalidade das suas reservas, 125 t; a Bélgica em
Março de 1998, 299 t, cerca de metade das suas reservas; em Abril de
1999 a Suíça decidiu revalorizar as suas reservas, vender parte
do excesso assim gerado e reduzir o lastro em ouro do papel moeda
de 40% para 25%; em Maio de 1999, o Reino Unido anunciou a venda de 415 t das
suas 715 t de reservas, 125 t no primeiro ano, reduzindo a
proporção do ouro nas suas reservas para o nível de 7%; a
última das 17 vendas ocorreu em Março de 2002, ocasião em
que a cotação atingiu o valor mais elevado ($296/onça) [
http://www.24carat.co.uk/goldsales.html
].
Algumas destas vendas terão sido percursoras da adesão à
União Monetária Europeia, para satisfação de
critérios para a moeda única e porque os países membros
passaram a ficar dependentes do Banco Central Europeu BCE para a
realização de tais operações. Em Julho de 1998, o
BCE anunciou que 15% das suas reservas seriam ouro. Com inicio em Janeiro de
1999, o Eurosystem, que compreende o BCE e os bancos centrais dos onze
países membros, detinham 12.574 t de ouro em reservas, mais de um
terço do montante de reservas oficiais em todo o mundo. Segundo alguns
comentadores, o Banco Central Europeu deterá 261 mil
milhões de reservas em moeda estrangeira e 120 mil milhões
em ouro (Finantial Times).
O BundesBank (banco central da Alemanha) anunciou em Abril passado (2002) a
intenção de prosseguir com o lançamento de ouro
metálico e títulos das respectivas reservas, anúncio de
que o Banco Central Europeu fez eco. E todavia fora um dos principais actores
por detrás do chamado Acordo de Washington (Setembro de 1999), entre os
15 bancos centrais da União Europeia, para efeitos de
limitação de vendas e empréstimos pelos bancos centrais,
pelo espaço de cinco anos. Segundo aquele acordo, os bancos centrais
comprometeram-se a limitar conjuntamente as respectivas vendas a 400 t/ano
até 2004. Agora o BundesBank, que possui em reservas cerca de 3.500 t de
ouro estimado em 35 mil milhões mais 50 milhões de
milhões em moeda estrangeira, afirma a intenção de
proceder a vendas após o presente acordo expirar [
http://www.kitco.com/ind/Field/apr212002.html
] .
O que se passa actualmente na fixação do preço do ouro
não é essencialmente diferente do que se passou por volta de
1970. Então, um consórcio de bancos centrais lançava ouro
para o mercado, o suficiente para manter o preço ao nível de
$35/onça. A diferença é que, actualmente, a
intervenção dos bancos é encoberta, porque o mercado
é supostamente livre (e o mercado oficial foi formalmente extinto). A
situação é diferente também, e muito preocupante,
porque associado ao ouro, cuja disponibilidade física é curta,
pois o seu défice se estima em 800 toneladas/ano (suprido por reservas
bancárias), correm agora derivativos em montante muito superior ao
correspondente montante no mercado físico.
A APROPRIAÇÃO IMPERIALISTA DA RIQUEZA
O volume global das transações sobre ouro excede largamente o
volume das suas transações físicas. Ora comparemos os
montantes médios das transações, procura e ofertas
diárias (ano de 1999, a título exemplificativo): na London
Bullion Market Association - LBMA 28 milhões de onças; na COMEX
(New York) 4 milhões de onças em contratos de futuros;
produção mineira mundial 271 mil onças; reciclagem de
sucata 80 mil onças; procura industrial 419 mil onças; procura
para investimento 45 mil; vendas de bancos centrais 46 mil onças.
É evidente que as transações em Londres e New York
têm uma componente financeira especulativa com repercussão sobre o
preço. Mas existem outras razões para esses fluxos colossais.
[
http://www.gold-eagle.com/editorials_99/cpm102199.html
]
Em 1999, alguns analistas anunciaram que, quer na COMEX quer na LBMA, os bancos
de
commodities
que transaccionam o ouro tinham acumulado compromissos que excediam em quase
15.000 toneladas as suas disponibilidades (ou seja, quase metade do total das
reservas oficiais mundiais). O Banco de Inglaterra forneceu por mais de uma vez
ouro das suas reservas para prover os défices de bancos de
commodities
associados no LBMA, designadamente em 1999, para assegurar fornecimentos de
ouro metálico a clientes desconhecidos presumivelmente sauditas. [
http://www.gold-eagle.com/editorials_99/hickel080999.html
].
LBMA, criada em 1988, associa os maiores corporações que
negoceiam em ouro. Segundo o seu relatório diário, que só
em 1997 começou a ser publicado, o volume de transações
diárias ascendia então a 1.300 toneladas por dia! (cerca de
metade da produção anual mundial) no montante de $4
milhões de milhões anuais. Este volume de
transacções é extraordinário e intrigante.
Obviamente grandes fluxos financeiros estão aí interessados e
não há muitas origens com tal dimensão de onde possam
provir. A interpretação mais plausível é uma
ligação entre os mercados do ouro e do petróleo. O LBMA
seria a solução conveniente e discreta para
transações maciças de ouro entre países
exportadores e importadores de petróleo. Para os países do Golfo
Pérsico trata-se de obter moeda real em vez de papel moeda
em pagamento pelos fornecimentos de petróleo. Para os países
industrializados e ricos trata-se de assegurar o abastecimento de
petróleo a baixo preço. Quer dizer que têm sido essas
transacções quase secretas que tem assegurado o fluxo de
petróleo a baixo custo, no interesse da ambas as partes. Como poderia
haver um tão intenso mercado de ouro sem aparente impacto sobre o seu
preço? Porque o petróleo funciona como pagamento parcial desse
ouro. E os bancos centrais vão alimentando esse mercado de ouro
metálico, substituindo ouro físico por certificados, mantendo
assim o fluxo de ouro necessário. O petróleo é vendido a
baixo preço em dólares; mas após a venda, uma certa
proporção de ouro é comprada também a baixo
preço com esses mesmos dólares; ou então um fluxo futuro
de ouro é oferecido como colateral [
http://www.usagold.com/GoldTrail/archives/ANOTHER1.html
].
No fundamental, o ouro e o petróleo, cujos preços em dólar
estão ambos fortemente depreciados, são transaccionados, por
aqueles que os detêm, pelos seus elevados valores reais; o valor de troca
do dólar, mero intermediário, é aí irrelevante.
Enquanto isto, a real sobrevalorização do dólar, que se
repercute na generalidade das demais transações, mantém-se
dissimulada aos olhos do público em geral [
http://www.usagold.com/goldtrail/
].
A apropriação de grandes lucros nas transações
financeiras é facilitada pela multiplicação dos produtos
financeiros que foram inventados e é acelerada pelo
intensificação dos fluxos financeiros que circulam nas bolsas de
valores e de mercadorias (para o que contribuem cumulativamente o volume de
produtos financeiros e a taxa a que são transaccionados). Entre os
diversos produtos financeiros em curso, os derivativos ganharam particular
relevância. O seu uso teve um crescimento exponencial nas duas
últimas décadas, e as transações mundiais de
derivativos atingiram a ordem de $100 milhões de milhões. Os
derivativos são actualmente utilizados pelas grandes
instituições financeiras, instituições
governamentais, empresas, fundos de pensões, especuladores. A
importância instrumental dos derivativos pode ser bem ilustrada
através de uma das maiores instituições bancárias
mundiais, o J.P. Morgan Chase & Co.
O J.P. Morgan Chase & Co. resultou da fusão dos J.P. Morgan e Chase
Manhattan no segundo semestre de 2001. É um dos maiores bancos do mundo,
com activos no montante de $700 mil milhões e capital de $41 mil
milhões; a sua área forte é a dos derivativos, pois que
detém 50% do mercado de derivativos dos EUA. No final do ano passado
(2001), JPM tinha contratos de derivativos que ascendiam a $23,5 milhões
de milhões; este valor extraordinário corresponde, porém,
a uma não menos extraordinária redução da soma dos
derivativos das duas instituições originárias, uma
redução de $7 milhões de milhões em apenas seis
meses, presume-se que atribuível a
netting
e a transação de derivativos entre ambas aquando da sua
fusão [
http://www.kitco.com/ind/DChapman/june132002.html
].
Em particular, a JPM dispõe de posições importantes em
derivativos de ouro, estimados em $41 mil milhões, o que representa 65%
dos derivativos de ouro a correr nos EUA, e corresponde a 4634 toneladas de
ouro; valores extraordinários; extraordinário também que
no referido período de seis meses, em que decorreu a fusão, a
quebra de posição do conglomerado nestes derivativos de ouro foi
26,5% [
http://www.kitco.com/ind/DChapman/june132002.html
].
A grande exposição da JPM aos derivativos tem sido objecto de
várias análises, quer por força da dimensão
gigantesca deste banco, quer pelo facto de ter relações
financeiras com vários colapsos financeiros recentes Enron,
Kmart, Argentina, entre outros. Finalmente, J.P. Morgan Chase & Co. lidera a
lista dos credores da recentemente falida Worldcom Corp.com $26.8 mil
milhões de dívida mal parada (USA Today). Esta falência
envolve contabilidade fraudulenta, em consequência da qual $50 mil
milhões serão existências benevolentes ou
intangíveis que deverão ser eliminadas. O fenómeno J.P.
Morgan Chase & Co. não sendo (ainda) caso para escândalo
financeiro, coloca de forma muito viva a natureza da riqueza financeira e a sua
volatilidade. E bem assim, a forma e o propósito com que essa riqueza
é gerida.
A SITUAÇÃO MUNDIAL: RISCO DE COLAPSO FINANCEIRO
O envolvimento dos bancos centrais na manipulação do preço
do ouro é obscura mas vai se tornando evidente. Os EUA têm sido os
principais protagonistas nessa acção, quer directamente quer por
interpostas instituições internacionais em que têm
influência decisiva. Essa acção implica sacrifícios
para terceiros e manifesta-se num esforço financeiro expressivo. Assim,
o Departamento do Tesouro registou mais de 10 mil certificados de DES (direitos
especiais de saque) em 1995. O seu montante reduziu-se entretanto de perto de 8
mil, para pouco mais de 2000, em 2001. Na base de 35 DES/onça, essa
redução equivale a uma redução das reservas de ouro
em 228 milhões de onças, ou seja, em cerca de 87% do seu montante
inicial. Será essa a razão por que as 7.700 (em 8.140) toneladas
das reservas de ouro à guarda do Tesouro dos EUA foram reclassificadas
em 2001 como
deep storage gold
. Será ouro fisicamente presente nos cofres fortes, mas comprometido e
na prática não mais negociável.
A tendência para a indisponibilidade de ouro físico parece
acelerar-se e poderá agravar-se. Consideremos o Japão que
é um importante investidor em ouro. Recentemente, o governo reduziu o
seguro dos depósitos bancários (sinal negativo sobre a solidez do
sistema). Ora se os japoneses investissem a parte das suas poupanças
agora não seguradas, o que equivale a 10% dos seus depósitos
bancários, na aquisição de ouro, adquiririam metade do
inventário de ouro de todos os bancos centrais. Consideremos agora o
Canadá. Os canadianos foram, a partir de agora, autorizados a investir
directamente em ouro (ou outros metais preciosos) os respectivos planos de
poupança de reforma; isto é, um novo fundo de investimento em
ouro metálico (não acções, opções ou
futuros) foi aí criado. Se apenas 10% dos planos de poupança de
reforma fossem investidos em ouro, seria $40 mil milhões, mais de um
terço da oferta mundial de ouro. Qualquer das duas
evoluções aqui referidas, a acontecer, repercutir-se-ia
decididamente no preço do ouro no mercado [
http://www.kitco.com/ind/Sak/july052002.htm
].
Vejamos o que se passa nas bolsas de valores e de mercadorias. As
estatísticas do Banco Internacional de Pagamentos (
www.bis.org/press/p020515.htm
) revelam que os derivativos do ouro dos grandes bancos centrais e comerciais
cresceram de $203 para $231 mil milhões só no segundo semestre de
2001. Por outro lado, as estatísticas do BIP (
www.bis.org/press/p020318.htm
) revelam que os derivativos nas contas dos bancos e negociantes de quase
cinquenta países aumentaram $50 mil milhões nos últimos
três anos, o que equivale a mais de 5.000 toneladas; e o total ascendia
já a $278 mil milhões, o que representa 29.000 toneladas, ou
seja, quase o total das reservas dos bancos centrais em ouro. Constata-se que
à redução da disponibilidade de ouro físico se
contrapõe o incremento dos instrumentos financeiros a ele associados.
Presumindo que toda a produção mineira, inferior a 3.000 t/ano,
seja satisfeita por contratos a prazo e que todas as opções
relatadas pelo BIP sejam satisfeitas em moeda e não em metal, os
compromissos pendentes nas contas dos bancos e dos negociantes de ouro parecem
exceder os compromissos dos produtores mineiros, num montante que representa
perto de quatro anos de produção. A eventual
intenção de reduzir os contratos a prazo por parte dos produtores
certamente não seria bem vinda por esses bancos e negociantes. E
todavia, quando o CEO (director executivo) da AngloGold Ltd., empresa sediada
na RSA que é a maior produtora mundial de ouro, anunciou em 30 de Abril
os resultados do primeiro trimestre de 2002, afirmou que, dado o contexto de
preços agora mais firmes, só no decurso desse trimestre reduzira
de 60% para 40% os compromissos de vendas a longo prazo relativos ao corrente
ano [
http://www.goldensextant.com/commentary20.html
].
O mercado do ouro é relativamente estreito, com um teto de cerca de $90
mil milhões. Assim sendo, será possível a um grande
especulador investir capital suficiente na compra de ouro para fazer subir a
sua cotação. Desde 1980, a massa monetária duplicou nos
EUA ao passo que o capital investido no mercado do ouro foi reduzido a metade,
isto é, existe o dobro do dinheiro para negociar metade do mercado. Por
essa altura o ouro chegou a ser cotado a $850/onça. A
situação de risco mantém-se latente e agravada porque os
bancos centrais não têm exigido os reembolsos dos
empréstimos que vêm fazendo aos bancos de
commodities
. [
http://www.kitco.com/ind/Sak/july052002.htm
]. Os bancos centrais mantêm-se em silêncio e o público
é mantido na ignorância dessa situação. Pelo
contrário, os bancos centrais anunciam e procedem a vendas directas de
ouro ou prosseguem com empréstimos do remanescente.
De entre os quatro maiores bancos que transaccionam ouro, o J.P. Morgan Chase &
Co. detém 65% do mercado de derivativos do ouro nos EUA; mas a sua
liquidez será apenas 1:200 do valor atribuído aos derivativos que
negoceia. Esta proporção é dez vezes inferior à
considerada segura. De facto, trata-se de uma
desproporção absurda. Um colapso da posição dos
derivativos, como aconteceu com a Enron, poderia acontecer com a o J.P. Morgan
Chase & Co. Podemos recear que a referida desproporção absurda,
entre valores líquidos e valores negociados, não seja
situação singular no seio do sistema vigente e da furiosa
concorrência que o agita. Enquanto isto, as empresas produtoras de ouro
detêm no seu conjunto apenas 11% dos derivativos de ouro; o mercado de
derivativos do ouro, que monta a $250 mil milhões, é de facto
dominado (98%) pelas companhias que transaccionam o ouro e entidades
financeiras. O omnipresente mercado de derivativos assenta, pois, numa muita
estreita base de suporte. Situação muito instável, que
naturalmente conduzirá ao seu próprio colapso.
Mas em caso de desastre financeiro, as receitas fabulosas das
especulações financeiras não deixarão de ser
propriedade privada de alguns poucos. Aqueles que discretamente alimentam a
fantasia de milhares de pequenos especuladores e de milhões de
contribuintes impotentes no quadro político-institucional do
capitalismo. A abusiva identificação da finança com a
economia e a real desmaterialização da finança para assim
simular a fictícia desmaterialização da economia,
são elementos de subversão do quadro racional de
interpretação da realidade, com que o imperialismo procura manter
o seu domínio ideológico sobre todo o mundo.