Relatório da missão científica portuguesa aos Balcãs
Rui Namorado Rosa
Acabo de fazer uma primeira leitura do relatório da missão
científica portuguesa aos Balcãs.
Desejo relevar o esforço
e a competência técnica pedidos e demonstrados pelo Departamento
de Protecção Radiológica e Segurança Nuclear.
Desejo regozijar-me pela
circunstância de os resultados obtidos por esta missão revelar que
as ameaças que pendem sobre os militares portugueses nos Balcãs
serão possivelmente menos graves do que se poderia recear.
Não podemos, contudo,
alhearmo-nos da situação de ameaça imediata que viveram as
populações no teatro de guerra e que agora continuam a viver
continuada e indefinidamente, em condições ambientais muito
preocupantes, como atestam vários outros relatórios, mormente o
relatório da UNEP (Programa das Nações Unidas para o
Ambiente) divulgado faz agora um mês.
Devo também assinalar
alguns aspectos de natureza técnica do relatório da missão
portuguesa que, penso, merecem ser examinados:
-
A monitorização e a recolha de amostras decorreram quase dois
anos após os actos de guerra, depois de o terreno ter sido
"limpo" da contaminação mais evidente por tropas de
ocupação que, aparentemente não foram portuguesas.
-
A parte imediatamente mais perigosa dos aerossóis produzidos nos
impactos de munições penetrantes sobre alvos duros
(veículos blindados, betão, etc.) há muito foi inalada e
há muito se dispersou.
-
A parte mais substancial das munições de urânio está
embebida no solo a alguns metros de profundidade, impossíveis de
detectar à superfície por detectores de radiação ou
por detectores de minas.
-
O estudo feito não parece procurar alguma eventual
correlação entre os resultados de análises às
urinas e citológenéticas com os períodos de tempo
decorrido entre a presumível exposição à
contaminação e o momento da colheita das amostras.
-
Os resultados de análises isotópicas de urânio, sobretudo
em aerossóis e nas urinas, revelam relações entre U235 e
U238 anormais, mais parecendo haver uma contaminação com
urânio enriquecido do que empobrecido, o que, em princípio,
será absurdo. Tal singularidade poderá ser atribuível ao
baixo teor de urânio nessas amostras. Em tal caso, seria
aconselhável realizar análises não por espectrometria alfa
mas sim por espectrometria de massa ou outro método mais sensível
para, com segurança, destrinçar entre quanto é
urânio empobrecido (das munições) e quanto é
urânio natural.
-
As análises às urinas não provam a favor nem contra a
contaminação interna por urânio (mormente passados meses
sobre a presumida exposição). O urânio inalado sob forma de
óxidos insolúveis bem como o inalado ou ingerido em forma
solúvel, se assimilado nas vísceras ou nos ossos, só
é "visível" mediante contagem radiométrica sobre
todo o corpo ("whole body counting").
-
As análises citogenéticas efectuadas sobre linfócitos
têm significado relativo no caso de irradiação interna
localizada e quando o agente da toxicidade radiológica é
sobretudo um agente de toxicidade química.
-
As análises dos aerossóis, não acompanhadas da
caracterização da dimensão das partículas,
particularmente não discriminando a gama de partículas
respiráveis, não permite conclusões quanto ao risco de
contaminação por inalação.
Como comentário geral, o relatório agora produzido responde ao
mandato que foi cometido aos seus autores. A uma questão mal colocada
é difícil dar uma resposta esclarecedora. A razão pela
qual esta missão foi feita era a razão política de acalmar
a indignação pública face a uma sucessão de
afirmações, contra-afirmações, encobrimentos e
falsidades. Se a razão fosse científica, a missão teria
sido planeada e executada diferentemente, mais ponderada, com mais recursos e
com maior alcance.
Vem a propósito chamar a atenção para o que sobre isto se
está a fazer no Reino Unido. A informação e a
contra-informação tem igualmente perturbado a opinião
pública britânica (e naturalmente as suas forças armadas)
desde há vários anos, posto que tropas britânicas actuaram
também na Guerra do Golfo e apresentam também queixas do
síndroma do Golfo. Em meados de Fevereiro de 2001, o Cirurgião
Mor do Ministério da Defesa britânico colocou à
apreciação pública um «programa de
monitorização voluntária na sequência de
preocupações de saúde relativas ao urânio
empobrecido», na base do melhor conhecimento científico, destinado
a militares e civis que serviram nos Balcãs. A minuta desse programa foi
enviado para colher comentários a cerca de 30 instituições
oficiais e profissionais (designadamente a Royal Society, Royal College of
Physicians, etc.) exteriores ao próprio Ministério. Este exemplo
merece a nossa reflexão como portugueses.
O Programa das Nações Unidas para o Ambiente UNEP
divulgou em meados de Março passado o relatório "Depleted
Uranium in Kosovo/ Post-Conflict Environment Assesssment" fundamentado no
trabalho da sua missão no terreno em 5-19 de Novembro 2000.
O antecedente deste relatório é uma primeira missão no
terreno em Agosto de 1999, pouco depois do termo das hostilidades. Em Outubro
seguinte o Secretário Geral das Nações Unidas pediu
então à NATO a confirmação da
utilização de urânio empobrecido no conflito no Kosovo,
obtendo resposta positiva mas insuficiente em Fevereiro de 2000; após
insistência, só em Julho a NATO forneceu à ONU
informação considerada completa. Daí que só em
Novembro seguinte se realizou a missão de que viria a sair o
relatório referido.
O trabalho da missão,
composta por 14 especialistas de várias nacionalidades, incidiu sobre 11
das 112 área indicados pela NATO como alvos de ataques, um ano e meio
após estes terem ocorrido. A missão visitou locais seleccionados
pela KFOR por condições de segurança (muitas áreas
estavam restritas devido à presença de minas e de bombas de
fragmentação não explodidas), tendo encontrado apenas
cerca de 1 por mil das munições que teriam sido aí
lançadas e verificou baixos níveis de radioactividade à
superfície. Concluiu que a "limpeza" dessas áreas teria
já sido efectuada, sem que todavia tivesse conhecimento do destino
actual dos destroços e resíduos (o Mar Adriático era
referido no relatório preliminar). Também afirma que a maioria
das munições de urânio empobrecido falhou alvos duros
(blindados), tendo penetrado no solo, onde agora se encontram corroendo
lentamente; em consequência, existe o risco de futura
contaminação de águas subterrâneas e de poços
vizinhos que fornecem água de abastecimento, a níveis de
toxicidade química superiores aos fixados pela OMS, ainda que a
níveis de contaminação radiológica baixos.
Este relatório baseia-se
nos dados de observação no terreno e em análises feitas
sobre amostras recolhidas aquando da missão em Novembro de 2000.
Baseia-se também num "caso de referência" para calcular
os riscos resultantes da utilização das munições
com urânio empobrecido no território do Kosovo. As estimativas de
risco a que chega têm limitações inerentes. No primeiro
caso, porque os dados foram colhidos ano e meio após os ataques. No
segundo caso, pelo esquematismo do modelo tomar valores médios apenas (e
não as distribuições em torno dessas médias). As
estimativas alcançadas apontam para baixos riscos químicos e
radiológicos quanto à contaminação actual do ar, do
solo e dos seres vivos, mas suportam um evidente risco para as águas
subterrâneas, a prazo mais ou menos longo. Não explicita, mas
concluímos nós, que dessa contaminação
resultará então a contaminação da cadeia alimentar
também.
O relatório recomenda a
monitorização das áreas afectadas pelas hostilidades, sua
limpeza e descontaminação (com a participação da
NATO e da KFOR), incluindo a remoção das munições
(na maioria embebidas no solo) e a sua deposição em local seguro;
a monitorização das águas de consumo; e a
informação às populações residentes sobre as
precauções a tomarem. O relatório termina recomendando que
uma avaliação ampla e completa do ambiente (incluindo o
urânio empobrecido) seja realizada também na Sérvia e no
Montenegro, bem como na Bosnia-Herzegovina (onde ataques semelhantes ocorreram
em 1994-95). Além do mais, e por comparação de
situações diferidas por 5 anos, tal avaliação
ajudará a elucidar os mecanismos de disseminação do
urânio no ambiente, nas condições concretas daquela
região.
O relatório final
(Março de 2001) não refere porque razão não foi
dado cumprimento ao que era uma recomendação importante do
relatório preliminar (Outubro de1999); nem sequer retoma essa
recomendação; a qual era um programa de exame médico das
populações mais expostas nas áreas dos ataques. Essa
recomendação era suportada em alguns relatórios e
publicações científicas anteriores que certificavam a
contaminação ambiental e que relatavam o aumento da
incidência de cancros, malformações congénitas,
doenças do sistema imunológico, infertilidade e colapso renal,
entre militares e populações civis no Golfo Pérsico.
Um outro relatório que
merece referência é o do "grupo de peritos da EURATOM".
A Comissão Europeia
entregou ao grupo de especialistas, estabelecido de acordo com o artigo 31 do
Tratado da EURATOM, um mandato bizarro. Em vez de se preocupar explicitamente
com a investigação das incidências do urânio
utilizado em armamentos e em contexto de guerra, a Comissão solicitou
aos especialistas uma "opinião" nos termos seguintes.
Começa por ressalvar: a opinião solicitada será relativa
ao uso de urânio na forma de metal ou de compostos de alta densidade, por
razão das suas propriedades elementares, não por razão da
sua radioactividade ou possível uso ulterior no ciclo de
combustível nuclear; e concretiza depois: os elementos colhidos
à luz do contexto específico permitirão à
Comissão ajuizar da necessidade de alterar os Basic Safety Standards
(Directiva 96/29/EURATOM estabelecida para fins de protecção dos
trabalhadores e dos membros do público) para os usos considerados do
urânio empobrecido.
O relatório produzido a
6 de Março de 2001 retoma a descrição de mecanismos,
normas e cenários já enlencados em relatórios anteriores
para afirmar, ponto a ponto, ressalvadas situações
"improváveis", não haver riscos significativos e
consequências detectáveis. Sem factos ou reflexões novas. A
única novidade é que tiros de ensaio e deposição de
munições não utilizadas tem sido efectuados no mar
(Adriático?); mas que, dada a lentidão da corrosão e o
grande volume de água de mar, é de esperar que o aumento de teor
de urânio na água ou nos biota não seja detectável.
E acaba por concluir, indo ao encontro do mandato recebido, que não
há razão de excluir o urânio empobrecido das normas do
Basic Safety Standards nem para introduzir exigências mais severas quanto
a utilizações específicas do mesmo. Em face desta
"opinião" obediente e esclarecedora, a Comissão
Europeia "decidirá" que nada obsta à
utilização de armamentos com urânio empobrecido!
Por outro lado, a
"opinião" sempre vai afirmando que não pode facultar
conselho útil quanto à monitorização de
indivíduos que tenham incorporado urânio, sem conhecimento da
exposição específica a que estiveram sujeitos. E que, em
geral, é mais adequado monitorar o ambiente do que os indivíduos;
todavia a monitorização de indivíduos poderá ser
útil. Também vai afirmando que não pode ser facultada
orientação quanto à necessidade de medidas de
interventivas específicas para dada situação, pois as
intervenções justificam-se em consideração de
situações específicas. Assim, comento eu, não se
tendo monitorado nem havendo o propósito de monitor sistematicamente o
ambiente, fica aberto o caminho para que nada de substancial se conclua nem
faça.
18/Abr/01