Relatório da missão científica portuguesa aos Balcãs

Rui Namorado Rosa


Acabo de fazer uma primeira leitura do relatório da missão científica portuguesa aos Balcãs.

Desejo relevar o esforço e a competência técnica pedidos e demonstrados pelo Departamento de Protecção Radiológica e Segurança Nuclear.

Desejo regozijar-me pela circunstância de os resultados obtidos por esta missão revelar que as ameaças que pendem sobre os militares portugueses nos Balcãs serão possivelmente menos graves do que se poderia recear.

Não podemos, contudo, alhearmo-nos da situação de ameaça imediata que viveram as populações no teatro de guerra e que agora continuam a viver continuada e indefinidamente, em condições ambientais muito preocupantes, como atestam vários outros relatórios, mormente o relatório da UNEP (Programa das Nações Unidas para o Ambiente) divulgado faz agora um mês.

Devo também assinalar alguns aspectos de natureza técnica do relatório da missão portuguesa que, penso, merecem ser examinados:

  1. A monitorização e a recolha de amostras decorreram quase dois anos após os actos de guerra, depois de o terreno ter sido "limpo" da contaminação mais evidente por tropas de ocupação que, aparentemente não foram portuguesas.
  2. A parte imediatamente mais perigosa dos aerossóis produzidos nos impactos de munições penetrantes sobre alvos duros (veículos blindados, betão, etc.) há muito foi inalada e há muito se dispersou.
  3. A parte mais substancial das munições de urânio está embebida no solo a alguns metros de profundidade, impossíveis de detectar à superfície por detectores de radiação ou por detectores de minas.
  4. O estudo feito não parece procurar alguma eventual correlação entre os resultados de análises às urinas e citológenéticas com os períodos de tempo decorrido entre a presumível exposição à contaminação e o momento da colheita das amostras.
  5. Os resultados de análises isotópicas de urânio, sobretudo em aerossóis e nas urinas, revelam relações entre U235 e U238 anormais, mais parecendo haver uma contaminação com urânio enriquecido do que empobrecido, o que, em princípio, será absurdo. Tal singularidade poderá ser atribuível ao baixo teor de urânio nessas amostras. Em tal caso, seria aconselhável realizar análises não por espectrometria alfa mas sim por espectrometria de massa ou outro método mais sensível para, com segurança, destrinçar entre quanto é urânio empobrecido (das munições) e quanto é urânio natural.
  6. As análises às urinas não provam a favor nem contra a contaminação interna por urânio (mormente passados meses sobre a presumida exposição). O urânio inalado sob forma de óxidos insolúveis bem como o inalado ou ingerido em forma solúvel, se assimilado nas vísceras ou nos ossos, só é "visível" mediante contagem radiométrica sobre todo o corpo ("whole body counting").
  7. As análises citogenéticas efectuadas sobre linfócitos têm significado relativo no caso de irradiação interna localizada e quando o agente da toxicidade radiológica é sobretudo um agente de toxicidade química.
  8. As análises dos aerossóis, não acompanhadas da caracterização da dimensão das partículas, particularmente não discriminando a gama de partículas respiráveis, não permite conclusões quanto ao risco de contaminação por inalação.

Como comentário geral, o relatório agora produzido responde ao mandato que foi cometido aos seus autores. A uma questão mal colocada é difícil dar uma resposta esclarecedora. A razão pela qual esta missão foi feita era a razão política de acalmar a indignação pública face a uma sucessão de afirmações, contra-afirmações, encobrimentos e falsidades. Se a razão fosse científica, a missão teria sido planeada e executada diferentemente, mais ponderada, com mais recursos e com maior alcance.

Vem a propósito chamar a atenção para o que sobre isto se está a fazer no Reino Unido. A informação e a contra-informação tem igualmente perturbado a opinião pública britânica (e naturalmente as suas forças armadas) desde há vários anos, posto que tropas britânicas actuaram também na Guerra do Golfo e apresentam também queixas do síndroma do Golfo. Em meados de Fevereiro de 2001, o Cirurgião Mor do Ministério da Defesa britânico colocou à apreciação pública um «programa de monitorização voluntária na sequência de preocupações de saúde relativas ao urânio empobrecido», na base do melhor conhecimento científico, destinado a militares e civis que serviram nos Balcãs. A minuta desse programa foi enviado para colher comentários a cerca de 30 instituições oficiais e profissionais (designadamente a Royal Society, Royal College of Physicians, etc.) exteriores ao próprio Ministério. Este exemplo merece a nossa reflexão como portugueses.

O Programa das Nações Unidas para o Ambiente – UNEP – divulgou em meados de Março passado o relatório "Depleted Uranium in Kosovo/ Post-Conflict Environment Assesssment" fundamentado no trabalho da sua missão no terreno em 5-19 de Novembro 2000.

O antecedente deste relatório é uma primeira missão no terreno em Agosto de 1999, pouco depois do termo das hostilidades. Em Outubro seguinte o Secretário Geral das Nações Unidas pediu então à NATO a confirmação da utilização de urânio empobrecido no conflito no Kosovo, obtendo resposta positiva mas insuficiente em Fevereiro de 2000; após insistência, só em Julho a NATO forneceu à ONU informação considerada completa. Daí que só em Novembro seguinte se realizou a missão de que viria a sair o relatório referido.

O trabalho da missão, composta por 14 especialistas de várias nacionalidades, incidiu sobre 11 das 112 área indicados pela NATO como alvos de ataques, um ano e meio após estes terem ocorrido. A missão visitou locais seleccionados pela KFOR por condições de segurança (muitas áreas estavam restritas devido à presença de minas e de bombas de fragmentação não explodidas), tendo encontrado apenas cerca de 1 por mil das munições que teriam sido aí lançadas e verificou baixos níveis de radioactividade à superfície. Concluiu que a "limpeza" dessas áreas teria já sido efectuada, sem que todavia tivesse conhecimento do destino actual dos destroços e resíduos (o Mar Adriático era referido no relatório preliminar). Também afirma que a maioria das munições de urânio empobrecido falhou alvos duros (blindados), tendo penetrado no solo, onde agora se encontram corroendo lentamente; em consequência, existe o risco de futura contaminação de águas subterrâneas e de poços vizinhos que fornecem água de abastecimento, a níveis de toxicidade química superiores aos fixados pela OMS, ainda que a níveis de contaminação radiológica baixos.

Este relatório baseia-se nos dados de observação no terreno e em análises feitas sobre amostras recolhidas aquando da missão em Novembro de 2000. Baseia-se também num "caso de referência" para calcular os riscos resultantes da utilização das munições com urânio empobrecido no território do Kosovo. As estimativas de risco a que chega têm limitações inerentes. No primeiro caso, porque os dados foram colhidos ano e meio após os ataques. No segundo caso, pelo esquematismo do modelo tomar valores médios apenas (e não as distribuições em torno dessas médias). As estimativas alcançadas apontam para baixos riscos químicos e radiológicos quanto à contaminação actual do ar, do solo e dos seres vivos, mas suportam um evidente risco para as águas subterrâneas, a prazo mais ou menos longo. Não explicita, mas concluímos nós, que dessa contaminação resultará então a contaminação da cadeia alimentar também.

O relatório recomenda a monitorização das áreas afectadas pelas hostilidades, sua limpeza e descontaminação (com a participação da NATO e da KFOR), incluindo a remoção das munições (na maioria embebidas no solo) e a sua deposição em local seguro; a monitorização das águas de consumo; e a informação às populações residentes sobre as precauções a tomarem. O relatório termina recomendando que uma avaliação ampla e completa do ambiente (incluindo o urânio empobrecido) seja realizada também na Sérvia e no Montenegro, bem como na Bosnia-Herzegovina (onde ataques semelhantes ocorreram em 1994-95). Além do mais, e por comparação de situações diferidas por 5 anos, tal avaliação ajudará a elucidar os mecanismos de disseminação do urânio no ambiente, nas condições concretas daquela região.

O relatório final (Março de 2001) não refere porque razão não foi dado cumprimento ao que era uma recomendação importante do relatório preliminar (Outubro de1999); nem sequer retoma essa recomendação; a qual era um programa de exame médico das populações mais expostas nas áreas dos ataques. Essa recomendação era suportada em alguns relatórios e publicações científicas anteriores que certificavam a contaminação ambiental e que relatavam o aumento da incidência de cancros, malformações congénitas, doenças do sistema imunológico, infertilidade e colapso renal, entre militares e populações civis no Golfo Pérsico.

Um outro relatório que merece referência é o do "grupo de peritos da EURATOM".

A Comissão Europeia entregou ao grupo de especialistas, estabelecido de acordo com o artigo 31 do Tratado da EURATOM, um mandato bizarro. Em vez de se preocupar explicitamente com a investigação das incidências do urânio utilizado em armamentos e em contexto de guerra, a Comissão solicitou aos especialistas uma "opinião" nos termos seguintes. Começa por ressalvar: a opinião solicitada será relativa ao uso de urânio na forma de metal ou de compostos de alta densidade, por razão das suas propriedades elementares, não por razão da sua radioactividade ou possível uso ulterior no ciclo de combustível nuclear; e concretiza depois: os elementos colhidos à luz do contexto específico permitirão à Comissão ajuizar da necessidade de alterar os Basic Safety Standards (Directiva 96/29/EURATOM estabelecida para fins de protecção dos trabalhadores e dos membros do público) para os usos considerados do urânio empobrecido.

O relatório produzido a 6 de Março de 2001 retoma a descrição de mecanismos, normas e cenários já enlencados em relatórios anteriores para afirmar, ponto a ponto, ressalvadas situações "improváveis", não haver riscos significativos e consequências detectáveis. Sem factos ou reflexões novas. A única novidade é que tiros de ensaio e deposição de munições não utilizadas tem sido efectuados no mar (Adriático?); mas que, dada a lentidão da corrosão e o grande volume de água de mar, é de esperar que o aumento de teor de urânio na água ou nos biota não seja detectável. E acaba por concluir, indo ao encontro do mandato recebido, que não há razão de excluir o urânio empobrecido das normas do Basic Safety Standards nem para introduzir exigências mais severas quanto a utilizações específicas do mesmo. Em face desta "opinião" obediente e esclarecedora, a Comissão Europeia "decidirá" que nada obsta à utilização de armamentos com urânio empobrecido!

Por outro lado, a "opinião" sempre vai afirmando que não pode facultar conselho útil quanto à monitorização de indivíduos que tenham incorporado urânio, sem conhecimento da exposição específica a que estiveram sujeitos. E que, em geral, é mais adequado monitorar o ambiente do que os indivíduos; todavia a monitorização de indivíduos poderá ser útil. Também vai afirmando que não pode ser facultada orientação quanto à necessidade de medidas de interventivas específicas para dada situação, pois as intervenções justificam-se em consideração de situações específicas. Assim, comento eu, não se tendo monitorado nem havendo o propósito de monitor sistematicamente o ambiente, fica aberto o caminho para que nada de substancial se conclua nem faça.

18/Abr/01