A Lei de Bases da Educação:
para quem, como, para quê?
por Rui Namorado Rosa
A proposta de Lei da Bases da Educação (n.º 74/IX),
actualmente em discussão pública, propõe-se alterar o
diploma vigente, inicialmente aprovado com unanimidade parlamentar (Lei
n.º 46/86, alterada pela Lei n.º 115/97), por uma nova versão
em que posições contrárias impedirão que tal
consenso se verifique de novo. Não que se divirja sobre ser ela
imperfeita e sobre ter mudado muito o país entretanto. Mas é
agora patente quão escancaradamente diversos são os entendimentos
das várias forças políticas sobre o interesse
público e a função da Educação para o
equilíbrio social e para o progresso cultural e económico do
país.
Hoje, mais descaradamente que há dezassete anos atrás, grupos de
interesses económicos nacionais e internacionais procuram controlar o
ensino, exaurir os recursos intelectuais do país e comandá-lo
ideologicamente. Será para satisfação desses interesses
anti-nacionais que a presente proposta de lei de bases foi concebida, que
não para fixar doutrina de clarificação pedagógica
e científica, para o progresso da Educação ao
serviço do povo português. Não. A subsecção
III, secção II do capítulo II é de uma pobreza
confrangedora se não fosse de um maldade perversa.
Tratando do ensino superior, três questões centrais se colocam:
-
A missão do ensino superior na criação,
assimilação e difusão de conhecimento, fundamentada na
actividade científica de validade internacional
-
Os critérios de acesso e os mecanismos de ingresso no ensino superior
-
A universalidade dos critérios de validação do
exercício da actividade, fundamentando a unidade do sistema nacional de
ensino superior
Entre outras questões centrais, a vigente dupla dualidade do sistema de
ensino superior, nas clivagens público privado e
universitário politécnico, ao invés de ser
resolvida no sentido da atenuação das suas
contradições, no interesse do povo português, é pelo
contrário agravada pela presente proposta de Lei.
Retóricas enevoadamente tecnocrática ou abertamente neoliberal
procuram justificar a lógica dessas dicotomias e as virtudes
dos seus aprofundamentos. Subjacente está a intenção de
fragmentar a rede escolar de ensino superior, quebrar as solidariedades ainda
prevalecentes, tornar mais arbitrária a sua regulamentação
(ou desregulamentação), reduzir o investimento público,
facilitar o negócio privado, tornar confuso o que deveria ser
política educativa clara e enfraquecer os direitos e garantias dos
cidadãos no acesso aos níveis mais avançados da
Educação.
A dualidade do sistema binário universitário-politécnico,
que o governo e os dois maiores partidos (situacionistas) apoiam, não
corresponde à presente realidade do sistema, nem às suas
necessidades, nem tão pouco à universalidade de critérios
que se afirma serem, e de facto deverão ser, aplicáveis a todo o
sistema de ensino superior, independentemente do estabelecimento onde é
ministrado.
Aliás, a larga maioria das universidades e institutos
politécnicos têm não mais de 30 anos de idade. Tendo sido
diferenciados nos actos de sua criação, os novos estabelecimentos
de ensino tiveram evoluções diferenciadas entre si, como
diferenciadas foram as evoluções dos vários
domínios de conhecimento. Existem escolas de ensino superior
politécnico que, em dados domínios, foram dotadas e dotaram-se de
recursos físicos e humanos tais que, por critérios objectivos,
estão tanto ou mais habilitadas a ministrar ensinos e a atribuir graus
nesses domínios, que faculdades universitárias. Se essa
não é a situação geral, tal não pode ser
obstáculo à valorização, reconhecimento e proveito
social que tal representa. E prova que a dualidade preexistente, não
tendo sido obstáculo a que tal tenha acontecido, não pode ser
justificação em persistir e aprofundar essa artificiosa
dualidade.
Perante o país e perante a União Europeia, em que as sucessivas
maiorias parlamentares fizeram entrar o país e vêm promovendo a
sua integração, o ensino superior rege-se segundo padrões
de estrutura de graus, de avaliação de qualidade, de mobilidade e
de equiparação de qualificações que são
comuns a todos os estabelecimentos de ensino e têm igual validade
pública no espaço da União. A origem do estabelecimento, a
sua evolução histórica e a sua realidade presente podem
acrescentar ou não ao valor social e profissional atribuído ao
grau ou diploma, mas não afectam a sua validade legal, se legitimamente
atribuídos à luz desses critérios de
aplicação geral. Na Europa, como aliás no Mundo, existe um
só sistema de ensino superior ou terciário,
certamente heterogéneo em cada país e de país para
país, em consequência dos respectivos pontos de partida,
evoluções, domínios de intervenção. Mas se
é único a nível internacional, porquê forçar
seja dual no âmbito nacional?
O governo português persiste em elaborar definições
rebuscadas que distingam entre ensino politécnico e
universitário. Quando, ao mesmo tempo, é forçado a ter que
enunciar que a capacidade de atribuir um grau em determinada área
científica é conferida face ao preenchimento de requisitos
objectivos quanto a recursos de ensino e planos de estudo.
Ao persistir insensatamente na artificial dicotomia, o governo preconiza, por
exemplo, que o médico e o cirurgião estudem numa universidade,
enquanto o enfermeiro, o imagiologista e o paramédico, independentemente
do grau ou diploma, estudem num politécnico; que o maestro, o
compositor, o musicólogo e o professor de música para o ensino
secundário, estudem numa universidade, enquanto o instrumentista, o
especialista de electroacústica e o professor de música para o
ensino básico, estudem num politécnico. Quando acabarem os seus
estudos e ingressarem na vida profissional, esses vários profissionais
necessariamente se encontrarão para começarem, só
então, a trabalhar em conjunto, como era seu previsível destino
quando ingressaram no ensino superior.
Tomemos como exemplo a saga da rede de ensino de Enfermagem que, da categoria
de ensino médio, só veio a ser plenamente assimilado
ao ensino politécnico mediante uma sucessão de diplomas
publicados entre 1988 e 1992, para depois as escolas superiores de enfermagem
serem integradas nos Institutos Superiores Politécnicos dos respectivos
distritos. Primeiro, ministrando bacharelatos (1990), mais recentemente
autorizadas a ministrar licenciaturas (1999) e formação
pós-graduada mas não conferente de grau. Não
integradas ficaram as escolas de Enfermagem e de Tecnologias de Saúde a
que não correspondia algum politécnico no plano distrital.
Só em fim de 2003, sendo para tal necessário um decreto-lei,
estas últimas foram finalmente integradas em instituições
universitárias. No entanto, as condições de trabalho, de
formação de docentes e de ensino dos estudantes passaram por
(in)imagináveis vicissitudes. A dualidade
universitário-politécnico e dos respectivos graus
bacharelato-licenciatura foram obstáculos pesados à
necessária evolução do sistema de ensino nesta e noutras
especialidades no âmbito das ciências da saúde.
Quer isto dizer que o governo persiste em manter um quadro em que uma dada
escola não é encorajada ou é mesmo proibida de desenvolver
todas as competências em dado domínio do conhecimento, devendo
administrativamente limitar-se a parte dele, sem que todavia os recursos de
ensino de que dispõe sejam obstáculo a que o faça.
Persiste em presumir, erradamente, que um jovem que ingressa no ensino superior
terá já definido não só o domínio de
conhecimento que pretende aprofundar mas também qual a saída
profissional para o qual está mais vocacionado ou que a sociedade lhe
oferecerá.
Essa artificiosa diferenciação remete para outra das
questões centrais que se colocam à organização do
ensino superior.
É que a organização de uma escola superior faz-se ou
deverá ser feita em torno de áreas científicas, em que ela
reúne competências, meios, desenvolve projectos, se relaciona com
a sociedade e se internacionaliza. E cada escola superior não o pode
fazer em todos as áreas científicas, fá-lo nas
áreas para que foi criada ou fá-lo por iniciativa própria,
em resposta concreta a solicitações do seu meio ou, seguindo a
dinâmica intrínseca à evolução do
conhecimentos, em áreas interdisciplinares e emergentes.
São as áreas científicas estruturantes que de facto
definem o perfil de uma escola superior, não os graus académicos
que administrativamente são autorizadas (ou não) a conferir
ab initio
. Cabe a uma instituição de ensino superior já
constituída elaborar o seu projecto de desenvolvimento institucional,
exercendo a autonomia científica e pedagógica que lhe foi
reconhecida pela lei. Certamente cumprindo e para cumprir preceitos
universalmente aplicáveis. Como seria absurdo, para não dizer
ridículo, que um governo determinasse os âmbitos, os
conteúdos e as metas concretas de cada instituição de
ensino superior, em matérias pedagógica e científica.
A criação do conhecimento como exercício de liberdade,
manifestação de riqueza cultural, factor de
qualificação avançada e inovadora e suporte fundamental ao
projecto de desenvolvimento nacional, deveria ser a trave mestra da
concepção do sistema de ensino superior. Ao contrário, a
subalternidade conferida à investigação científica
nesta proposta de lei, dá-nos a medida da confrangedora pobreza cultural
e de submissa entrega a interesses económicos terceiros dos seus
proponentes.
Esta questão remete para questão da dualidade
público-privado. O governo não pode deixar de afirmar em teoria a
exigência de critérios de validade geral. Mas com mal
disfarçada habilidade é omisso na proposta de lei de bases, e vai
remetendo para legislação especial na legislação
ordinária, o que respeita ao financiamento, à
organização e autonomia, aos próprios conteúdos de
actividade e à avaliação dos estabelecimentos de ensino
superior privados.
A concepção de função de serviço
público de acesso universal, assegurado pelo Estado através da
rede de ensino público, é subvertida. O governo propõe que
o ensino privado seja financiado desde que seja escolhido em pé de
igualdade com o ensino público. Ora se o Estado não assegurar
ensino público diversificado e com qualidade à
população em geral, o ensino privado (seguindo
orientações de mercado e ideológicas) adquirirá
condições de funcionamento vantajosas (contando com receitas
próprias mais o financiamento do Estado). O que seria a liberdade de
aceder ao ensino público tornar-se-ia a obrigatoriedade de aceder ao
ensino privado. O direito constitucional de acesso pelo cidadão ao bem
Educação eclipsar-se-ia à luz da liberdade de
exploração pelo empresário do negócio Ensino. No
limite, teríamos ensino completamente privatizado, ideologicamente
comandado e só acessível a elites.
Outra questão central do ensino superior é o acesso à sua
frequência.
Os critérios de acesso carecem de ser revistos para alargar as
oportunidades de percurso escolar por parte dos jovens em prosseguimento de
estudos como também a públicos mais diversificados. O
numerus clausus
(limitação quantitativa do ingresso a nível do
país em dado domínio de conhecimento) é e será um
constrangimento à escolha de um percurso de acordo com uma
vocação, com evidente repercussão no (in)sucesso escolar.
Como tal deve ser abolido. A rigidez dos critérios de acesso e de
percurso escolar, para aqueles muitos jovens cuja vocação
não está definida e que desconhecem ainda a realidade da vida
escolar no ensino superior, é um condicionamento que, quando os
não elimina do sistema ao proibir o ingresso, os elimina depois,
através do repetido insucesso. É preciso um grande esforço
de aperfeiçoamento e acompanhamento pedagógico como
são também precisos critérios de acesso e de percurso
escolar que permitam aos novos estudantes o contacto com a realidade do ensino
de nível superior, a sua eventual reorientação dentro do
sistema, de acordo com as capacidades e os interesses demonstrados. A
eliminação dos
numerus clausi
é uma peça chave desse todo que deve oferecer o acesso, a
reorientação e o reajustamento dentro do próprio sistema,
e quanto possível do próprio estabelecimento de ensino em
oposição à exclusão de qualquer jovem que haja
feito prova de capacidade de prosseguimento dos estudos a nível
superior, mas que seja excluído por força do
numerus clausus
. No fundo, essa exclusão é sempre social também, desde o
momento que se põe, pois que todo o jovem com capital social e
económico suficiente encontrará acesso ao ensino superior no
domínio que escolher, independentemente da sua real
vocação e capacidade. E será uma exclusão social
para o futuro também, por vedar o acesso a um percurso profissional
vocacionalmente desejado e merecido.
Os mecanismos de ingresso devem ir ao encontro da situação real
dos potenciais beneficiários da frequência do ensino superior. Os
concursos gerais de acesso poderão ser exigíveis e eficazes na
colocação e ingresso da maioria dos jovens em prosseguimento de
estudos, mas não têm de ser o mecanismo predominante de ingresso
no ensino superior. As estreitas quotas e os complicados mecanismos de ingresso
para trabalhadores-estudantes, trabalhadores no activo, em reconversão
ou no desemprego, bem como para a transferência de estudantes entre
estabelecimentos de ensino, são obstáculos insensatos e penosos
para os próprios, e um inútil e penoso fardo social.
A frequência do ensino superior deve democratizar-se não por
populismo mas por interesses pessoal e colectivo nacional. Critérios de
acesso e mecanismos de ingresso, para jovens e adultos, para estudantes
profissionais e profissionais trabalhadores, devem ser transparentes e
acessíveis. O país precisa de força de trabalho
qualificada, dignificada e respeitada que cresça e produza para o seu
bem.
Ora a proposta de lei é completamente vaga de qualquer ideia nesta
questão central que é equacionar, valorizar e preconizar o acesso
à frequência o ensino superior: para quem, como, para quê?
É uma proposta que não corporiza um projecto de progresso para o
país.
Não estamos a evocar ideias no plano de abstracção, mas
antes de uma realidade bem caracterizada, em que a população
adulta tem globalmente um nível de escolarização muito
baixo e a proporção da população jovem que
frequenta o ensino superior é ainda baixa também, segundo os
padrões Europeus. Padrões Europeus que o governo e o patronato
frequentemente evocam, mas para outros fins que não a
Educação, pois que antes procuram ocultar a real fragilidade do
nosso sistema de Ensino e da sua responsabilidade na consequente
insuficiência de qualificação da nossa força de
trabalho, factores de desenvolvimento não acautelados que estão
na raiz da presente subalternidade económica do nosso país e
contrariam a legítima aspiração do nosso povo ao bem-estar
e à soberania.
15/Dez/2003
Este artigo encontra-se em
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