Para que querem eles uma segunda Guerra do Golfo

por Rui Namorado Rosa

A razão da força. Querem-nos fazer aderir a uma guerra que não é nossa. Como se devêssemos escolher entre dois ditadores: “odiar” um e “amar” o outro.

Escondem os verdadeiros motivos que os movem e mentem-nos. Como se fossemos todos ignorantes e sem memória.

Como se o Golfo Pérsico fosse “terra incógnita” e a engrenagem do sistema político mundial fosse “arte mágica”, para além do nosso conhecimento e compreensão.

Quando olhamos para o que foi a história do século XX, vemos como nela foi importante a indústria petrolífera. Essa foi uma indústria que adquiriu progressiva importância, associada a igual importância adquirida pelas indústrias automobilística, primeiro, a aeronáutica depois, e constantemente a indústria petroquímica, a que a indústria de explosivos está associada. Quando pensamos nos “complexos militares industriais”, constituídos nos EUA e na Europa, poderemos não nos aperceber, mas o petróleo está lá no centro da sua constituição e permanece estando.

A indústria do petróleo começou realmente nos EUA no último quartel do século XIX, primeiro com pacíficos fins iluminantes, depois como combustível ideal nos primeiros motores de combustão interna. Por ocasião da Primeira Grande Guerra o petróleo tinha já uma importância primordial, pois que provou a sua vantagem na propulsão de veículos de transporte terrestre, navios e mesmo aviões militares, para além do fabrico de explosivos. Nos finais dessa guerra, quando as tropas britânicas se dirigiam para a tomada de Bagdad, o secretário de Estado da Guerra Maurice Hankey escrevia ao secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros Arthur Balfour, a propósito do petróleo da então Mesopotâmia «O controlo desses aprovisionamentos de petróleo são um objectivo de guerra de primeira classe».

A prospecção de petróleo e o controlo das correspondentes reservas passou então a ser de importância estratégica. O Médio Oriente e a Ásia Central, com a bacia do mar Cáspio e o Golfo Pérsico, acabaram por progressivamente se revelar como a região geográfica de longe mais dotada de recursos de petróleo. A nível mais modesto, mas ainda muito importantes, também poderemos referir as regiões envolventes do Golfo da Guiné e do Golfo do México. Estamos a enunciar uma realidade geológica e constatamos que lhe corresponde um itinerário de persistentes conflitos nacionais e regionais cujas origens são muito diversas mas em que as intervenções e os protagonistas externos são sistematicamente os mesmos ao longo de todo século XX até à actualidade.

No confronto pela hegemonia económica e política mundial, o declínio do império britânico é perceptível desde o início do “terceiro ciclo de Kondratieff”, no último quartel do século XIX, quando se tornou patente a intensa competição entre as potências então ascendentes, com destaque para os EUA e a Alemanha, que haviam acabado os respectivos processos de consolidação interna e iniciado a expansão externa, e as potências tradicionais, com destaque para a Grã-Bretanha, a Rússia, a Turquia, a França e a Áustria. Desde então e até ao início da Primeira Grande Guerra, multiplicaram-se intrigas, e fizeram-se e desfizeram-se alianças explícitas ou secretas.

Já então o domínio do Golfo Pérsico era muito apetecido. A Grã-Bretanha, que antes da Primeira Grande Guerra já controlava o petróleo recentemente descoberto na Pérsia (através da Companhia Petrolífera Anglo-Persa) suspeitava que, por afinidade geológica, a vizinha província da Mesopotâmia no império Otomano (Turco), seria igualmente dotada. Após o fim da Guerra e o colapso do Império Otomano, a Grã-Bretanha ficou com mandato da Sociedade das Nações a administrar a Pérsia, a Península Arábica e a Palestina. Pôde então talhar a província da Mesopotâmia (actual Iraque) como um reino sob sua protecção. O novo reino compreendia a província montanhosa de Mosul, no norte, de população Curda, a de Basra, no sudoeste, de maioria shiita, e a de Bagdad (a antiga Babilónia), no centro, de influência sunita.

Após a Segunda Guerra Mundial, o Iraque estava ainda sob protecção Britânica mas o nacionalismo Árabe iria alterar essa situação. A monarquia foi derrubada em 1958 e um regime republicano instaurado; em 1963 o partido Baath tomou o poder; Saddam Hussein assumiu a presidência do partido e do país em 1979.

O Iraque e os países seus vizinhos constituem actualmente um puzzle cultural, recente e instável, talhado artificialmente e para satisfação dos interesses político-económicos das potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, onde actuam forças centrífugas e centrípetas, e cujos regimes políticos são diversos, desde monarquias autoritárias a repúblicas, de ascendência seja laica seja teocrática.

O Iraque tem 438 mil km 2 de área (quase tanto como a Espanha) e 20 milhões de habitantes. Os rios Tigre e Eufrates, importantíssimas fontes aquíferas nessa região, correm do norte montanhoso por planícies férteis (mas com problemas de salinização) onde vive a maioria da população do país, Shiita (afim à população iraniana). O petróleo foi aí descoberto no princípio do século XX mas só começaria a ser explorado em 1927; da sua exploração se ocupou o arménio turco (nascido no império Otomano) Calouste Gulbenkian, geólogo competente e com talento para os negócios, que para o efeito constituiu a Companhia Turca do Petróleo, com capitais alemães e turcos, ainda em 1912.

Com o desencadear da Primeira Guerra Mundial, a corrida ao petróleo acelerou e todas as potências procuraram obter posições no negócio. Na Conferência de Paz de Versailles, os primeiros-ministros da Grã-Bretanha e da França, Lloyd George e Georges Clemenceau, brigaram sobre a partilha do petróleo da Mesopotâmia; mas estando a Alemanha e a Turquia derrotadas, secretamente chegaram a acordo (Acordo de San Remo, 1920), a França recebendo a parcela anteriormente detida pela Alemanha. Os EUA, por seu lado, insistiram em não reconhecer a legalidade da reestruturação em curso e exigiram partilhar os despojos da guerra no Médio Oriente, até que finalmente a Grã-Bretanha cedeu (Acordo da Linha Vermelha, 1928). A Companhia petrolífera foi pois reestruturada para dar lugar à Companhia de Petróleo do Iraque, com capitais da Shell (anglo-holandesa), BP (britânica), CFP (francesa, actualmente a Total-Fina- Elf), cada qual com 23,75%, e da Exxon e Mobil (norte-americanas) com 11,875% cada; Gulbenkian foi premiado pelo seu trabalho a título individual com 5% do capital, passando desde então a ser conhecido como o “senhor cinco por cento”. A Companhia seria nacionalizada mais tarde, em 1972.

Calouste Gulbenkian acabou por vir viver para Portugal na década de 1940, doando a maior parte da sua fabulosa fortuna pessoal à Fundação com o seu nome, constituída após a sua morte (em 1955). Desde então, Portugal beneficiou imenso da actividade dessa Fundação e do prestígio do Museu com a sua colecção de arte. Porém hoje parece que ninguém recorda que Gulbenkian foi um arménio turco cuja fortuna foi acumulada com o petróleo do Iraque, de cuja descoberta e exploração ele foi o lendário herói. E cuja preciosa colecção de obras de arte reside agora em Lisboa. Seremos totalmente indiferentes a essa história?

Após a Segunda Guerra Mundial, o nacionalismo árabe, a par dos movimentos de libertação nacional e anti-colonialistas, conduziu à progressiva nacionalização dos recursos da região, tendo a Companhia de Petróleo do Iraque sido nacionalizada em 1972. É episódio notável do nacionalismo árabe a nacionalização do Canal do Suez; como significativa foi a intervenção militar anglo-francesa (1956) procurando manter o seu controlo; e mais significativa ainda a intervenção diplomática dos EUA e da URSS que desalojaram a Grã-Bretanha e a França do Egipto.

Não obstante a luta do nacionalismo árabe, o reordenamento do Médio Oriente foi aprofundado mediante a acção, por via diplomática e militar, das antigas potências coloniais e agora dos EUA também, criando um quadro político frágil, instável e susceptível de permanente intervenção e intromissão, directa e indirecta. Foram assim constituídos diversos Estados feudais árabes (como o Koweit em 1961) e o estado de Israel para acolher o movimento Sionista (em 1947).

Foi neste contexto que o Iraque e o Irão se envolveram numa guerra insensata e fratricida, entre 1980 e 1988, o Iraque sendo então encorajado e armado pelas potências capitalistas, designadamente pelos EUA. Foi nesse contexto, ainda, que em 1990 o Iraque, por razões próprias e sob estímulo externo, ocupou o Koweit para ser depois alvo da Guerra do Golfo (liderada pelos EUA, com mandato do Conselho de Segurança da ONU, Janeiro de 1991) em que sofreu pesados prejuízos humanos e materiais a que se seguiu um regime de sanções e embargo (resolução do mesmo Conselho, Abril 1991) ainda em vigor. Foram então aí testadas armas não ainda utilizadas, como as munições de urânio empobrecido, de facto armas químicas e radiológicas de efeitos indiscriminados, responsáveis pelo síndrome do Golfo entre milhares de soldados veteranos e de centenas de milhares de vítimas entre as crianças iraquianas.

Vencidas duas Guerras Mundiais, em que a Alemanha foi derrotada por duas vezes, os EUA acabaram por emergir como o novo pólo hegemónico do sistema capitalista mundial, em que a Grã-Bretanha e a França passaram a desempenhar um papel de segundo plano. Tinha-se iniciado um novo ciclo económico longo (Kondratieff) e um novo ciclo do sistema político mundial.

Tendo o bloco socialista sido derrotado no confronto da Guerra Fria, no fim da década de 1980, os EUA logo pretenderam exercer o seu poder hegemónico sem limites. Assim logo lançaram a Guerra no Golfo e nos Balcãs. Mas não devemos esquecer que coexistem outras potências capitalistas cujos interesses estão em confronto e disputa. A União Europeia com a declaração de Lisboa (Março de 2000) afirmou a sua intenção de assumir posição hegemónica mundial no prazo de uma década (2010). Não anunciou guerra, claro, falou de economia inovadora e das virtudes do conhecimento, mas anunciou ao mundo a sua vontade política. Mas não nos iludamos; mais profunda do que a aspiração hegemónica, no quadro do sistema capitalista mundial, importa aos mesmos poderes económicos, por de trás da União Europeia, a sobrevivência desse mesmo sistema. Daí também não nos surpreendermos com a “docilidade” e empenho com que a União Europeia alinhou nas duas referidas guerras.

Agora, a movimentação agressiva para o controlo militar do Golfo Pérsico não é apenas um exercício caprichoso da hegemonia militar estado-unidense. Na realidade, o sistema capitalista mundial entrou numa crise prolongada, sem paralelo nos anteriores ciclos económicos longos (Kondratieff). As manifestações económicas e financeiras desta crise não são novidade, parecem ser a repetição de experiências já passadas. Porém, a situação não assumiria a urgência que é visível nas administrações Bush e Blair e mais discretamente noutras, aparentemente menos belicistas, se subjacente não estivesse o eminente declínio da capacidade de produção de petróleo a nível mundial; nem teria a presente expressão geo-estratégica, se as maiores reservas remanescentes não estivessem precisamente na região do Golfo Pérsico. Declínio que não tem a ver com preços ou com forças de mercado, mas com a incontornável limitação física dos recursos finitos de petróleo convencional. Para ilustrar este constrangimento, recordemos que o cobiçado Iraque, embora detendo o segundo lugar mundial entre as maiores reservas comprovadas de petróleo poderia, sozinho, assegurar apenas cinco anos de produção mundial, ao nível dos últimos anos.

Coloca-se, pois, o problema agudo da segurança e até mesmo da viabilidade de aprovisionamento energético. E a este respeito a situação é muito desigual, mesmo considerando unicamente os dois principais blocos económicos: os EUA, embora consumindo mais intensivamente — atingindo a intensidade energética 0,22 kgep/US$ — ainda assim consegue garantir internamente 75% do seu aprovisionamento energético; enquanto a União Europeia, com inferior intensidade energética — 0,13 kgep/US$ — só assegura internamente 50% do seu consumo; a UE é pois bastante mais dependente da importação de energia, mais vulnerável, portanto.

Observamos a sucessão de campanhas mobilizadoras da opinião pública “ocidental” para a guerra contra o Iraque; aterrorizando as populações com anunciadas ameaças de actos terroristas que não acontecem (ou que podem ser suspeitosamente desencadeadas), satanizando um líder político autoritário, invocando conexões invisíveis com redes de traficantes e terroristas, invocando ameaças militares apocalípticas (insustentadas), prometendo a “democratização” imposta dum regime estrangeiro por via “administrativa” (protectorado), etc. Trata-se de ameaçar o Iraque, por enquanto, mas a instabilidade regional, por um lado, e a lógica desta intervenção na região do Golfo Pérsico, por outro, levarão essa intervenção inicial a alargar-se a toda a região, a fim de tentar controlá-la politicamente, com os meios que forem para tal necessários, por essa via controlando as respectivas reservas petrolíferas.

A preparação para a guerra é agora a expressão dos interesses dos complexos militar-industriais de um e outro lado do Atlântico e da necessidade visceral de acesso ao petróleo para a sustentação da base económica do sistema capitalista mundial em crise. O partido da guerra tomou o poder em Washington; primeiro, nas eleições presidenciais (Dezembro 2000); depois, com o Patriot Act (Novembro 2001) privou os cidadãos norte-americanos (para não referir estrangeiros) de direitos e garantias constitucionais e conferiu poderes de excepção ao Presidente dos EUA; agora, está anunciado um Domestic Security Enhancement Act que conferiria à administração poderes adicionais só concebíveis em período de guerra ou estado de excepção.

Os EUA detêm o poderio militar. A NATO tem por eles sido instrumentalizada para manterem sob o seu domínio a Europa Ocidental e, com a redefinição do respectivo conceito estratégico (1991) também a Europa Central e Leste; a Guerra dos Balcãs foi também uma manifestação dessa intenção e um exercício sobre a sua eficácia. As presentes hesitações e divisões no seio da União Europeia, face à intervenção militar dos EUA no Iraque, traduzem a divergência entre interesses económicos no seio das potências europeias e põe à prova, evidenciando a fragilidade e o valor sobretudo propagandístico da anunciada “estratégia de Lisboa”. O papel singular da Grã-Bretanha será aqui explicável na medida em que está dividida entre os complexos militar-industriais de um e de outro lado do Atlântico, pois que de ambos é parceira.

O movimento da opinião pública, informado e crítico, é indispensável para poder deter a agressão e o presente curso dos actuais sucessos. Um movimento com expressão à escala mundial, porque a crise e a ameaça são globais. É global o declínio da disponibilidade de recursos energéticos fósseis, sem os quais mais lento e penoso será o desenvolvimento dos países periféricos, com capitações energéticas ainda muito baixas. É global o domínio, a exploração iníqua e a crise de sustentabilidade do sistema capitalista. Global é o interesse em superar o presente modo de produção e a formação social em que se suporta. Esta transformação é dia a dia mais necessária; é que, independentemente do curso concreto dos acontecimentos, no quadro do sistema capitalista mundial, não é por mudar a titularidade do “dono” dos recursos que eles deixam de se esgotar; essa titularidade só serve para garantir que a sua repartição será mais iníqua; mas os recursos não se multiplicam e chegarão inelutavelmente ao seu fim. O presente modelo económico está condenado.

Em Portugal, o governo, figuras públicas várias, numerosos órgãos de comunicação e seus “fazedores de opinião”, procuram promover o partido da guerra. Não se deram ao cuidado de colocar à consideração dos órgãos de soberania nem de opinião questões tão graves, não, decidem à luz dos interesses de que são porta-vozes, sem cuidar da opinião nem do interesse do povo e do país.

Que compromissos o nosso governo terá assumido já, às escondidas, sobre as bases das Lages e de Beja? Que recompensas terá já aceitado receber (para quem) em troca do seu pressuroso apoio ao partido da guerra? Que prejuízos arrecadaremos todos nós no âmbito do nosso convívio multicultural, no plano interno e no plano das relações externas (Magreb, Guiné Bissau, Moçambique, Timor, etc.). Que prejuízo não pagaremos pelo colossal impacto económico de uma súbita e profunda crise energética internacional, sabendo que o nosso país importa 89% da energia que consome (comparando com 50% para a UE e 25% para os EUA). Será que o governo português não entende qual o papel actual da NATO, nada mais vê para além da natureza de classe dos governos dos EUA e da União Europeia? Para vislumbrar, com um átomo de lucidez ao menos, que o povo português é mais do que os interesses dessas classes dirigentes e que a estrutura político-económica já mudou e continua a mudar.

18/Fev/2003


Este artigo encontra-se em http://resistir.info .
21/Fev/03