O império do dólar: de 1933 a 2001

por Rui Namorado Rosa [*]

Humor argentino na adversidade A memória é curta. Já ninguém se lembra se não for recordado. Mas é verdade que em 1990 o Banco de Portugal foi noticia de caixa alta por uma má razão: 17 toneladas de ouro das suas reservas, entregues a uma então prestigiada instituição financeira de Wall Street, que acabava de declarar falência, estavam mal paradas.

Pelo que fica dito, o escândalo da falência de prestigiados gigantes financeiros que temos hoje ainda bem presentes no nosso espírito – Enron, Worldcom, etc – não são acontecimentos inéditos. São fenómenos inerentes ao sistema capitalista, que apenas serão surpreendentes pela crescente dimensão desses gigantes, crescente dimensão que é fruto do contínuo processo de acumulação e de centralização do capital.

Na década de 80, a prestigiada Drexel Burnham Lambert Group Inc. foi, depois da J.P. Morgan, o primeiro banco de investimento a adquirir partes substanciais de acções de empresas suas clientes e a utilizar o seu próprio capital conjuntamente com o dos seus clientes para financiar os seus negócios; chegou assim a deter acções em 150 empresas. A Drexel engrossou ainda os seus recursos envolvendo o seu próprio pessoal em fundos de parceria internos. E vários dos seus profissionais assumiram cargos de direcção em empresas participadas. A Drexel quebrou a separação tradicional entre banco de investimento e banco comercial, utilizando obrigações de elevado risco – junk bonds – como instrumento de empréstimo comercial.

O aparente sucesso da Drexel construiu-se sobretudo a partir de empresas com dificuldade de acesso ao crédito bancário, foi alimentado pela exploração de informação privilegiada, acordos secretos, manipulação do mercado, etc e foi sobretudo evidenciado pelo rápido jogo de transacções de títulos e de titularidade sobre empresas. Em vários casos, a aquisição de títulos de propriedade em cadeia fez crescer artificial e espectacularmente os valores de acções das empresas; num caso – American Continental Corp. – o valor nominal do capital em acções foi multiplicado 53 vezes em apenas 18 meses.

TÍTULOS DE ALTO RISCO

Michael Milken, o principal cérebro do “sucesso” da Drexel, criou uma nova aplicação para obrigações ou títulos de dívida com alto risco mas potencial “alta rentabilidade” – junk bonds , persuadindo administradores de empresas a emitirem-nas para fins de reestruturação, muitas vezes em situação de crise, e persuadindo investidores e especuladores hesitantes a comprá-las e a transaccioná-las. Assim convenceu investidores institucionais da Wall Street a subscreverem empréstimos a empresas que até então não haviam merecido crédito. Só à conta da Drexel, o mercado de obrigações de alto risco cresceu US$200 mil milhões; e estas vieram a tornar-se componentes significativos de fundos de pensões e de fundos de investimentos. Já à beira do colapso nessa correria louca, a Drexel recolheu US$350 milhões para evitar a rotura financeira, mas na realidade foi esse o montante pago em “prémios” aos administradores semanas antes do colapso final. A Drexel Burnham Lambert Group Inc., que tinha antes da falência 5300 empregados, despediu 3200, mas muitos mais trabalhadores perderam o seu emprego em resultado de encerramento de fábricas e da falências de empresas de que era co-proprietária [ http://www.washington-report.org/backissues/0490/9004005.htm ].

Além das junk bonds a Drexel também estava envolvida, com igual sentido de alta rentabilidade e de alto risco, no mercado físico e de derivativos do ouro, de que era depositária e com que negociava. Assim, quando o esquema das junk bonds eclodiu e conduziu ao colapso da Drexel em 1990, o Banco de Portugal perdeu 17 toneladas de ouro que havia entregue à Drexel. Só posteriormente foi possível recuperar uma parte delas, com o auxílio de autoridades financeiras norte-americanas.

Num contexto de evolução rápida do preço ou da taxa de leasing do ouro, as instituições financeiras, mormente os bancos de commodities que o transaccionam, podem entrar em dificuldade se solicitadas a devolver o ouro depositado à sua guarda. Hoje, com um mercado de ouro e seus derivativos várias vezes maior do que em 1990, como consequência das maciças vendas de ouro durante a década de 90, por parte de bancos centrais e do FMI a outras instituições financeiras e a especuladores, a eventualidade de um colapso do mercado é potencialmente muito mais devastadora.

CRIATIVIDADE & SANIDADE

A criatividade demonstrada por Michael Milken na concepção de novos produtos e na articulação de interesses entre investidores e clientes é muito elogiada por alguns analistas, segundo os quais a Drexel Burnham Lambert terá realizado, ainda na década de 80, uma experiência radical introduzindo alterações quer na teoria quer na técnica financeira, experiência que viria a “frutificar” plenamente na década de 90 [ http://www.mises.org/journals/scholar/drexel.PDF ]. Apreciação que só pode ser causa para acrescida preocupação sobre a sanidade do sistema assim montado. Ora os esquemas concebidos e postos em acção por Michael Milken na década de 80 foram de facto inspiradores de algumas inovações introduzidas nos mercados financeiros na década de 90, ao mesmo tempo que vários dos experientes profissionais da Drexel são actualmente directores ou consultores em importantes instituições financeiras. Todavia, segundo outros analistas, neoliberais mas mais prudentes, a Securities and Exchange Commission, em consulta com a Reserva Federal, deverá exercer uma acção reguladora sobre os mercados financeiros, flexível mas suficientemente eficaz, que obvie a sucessão de situações de crise e mesmo de colapso graves que continuaram a pontuar toda a década de 90 até à actualidade [ http://www.brook.edu/views/testimony/mayer/19970521.htm ].

INSTABILIDADE SISTÉMICA

Independentemente do mérito que se atribua a um ou a outro dos analistas citados, o diagnóstico que se pode extrair sobre tal sistema financeiro aponta certamente para a sua capacidade de evolução adaptativa mas também para a sua intrínseca e permanente instabilidade. Instabilidade cuja globalização e aceleração, induzidas pelas novas tecnologias da informação e comunicação, é hoje ainda mais crítica e terrificante do que já era em 1990.

Em 1933 o presidente dos EUA decretou o confisco do ouro (Emergency Banking Bill, Franklin Roosevelt). Tratava-se de uma medida drástica aplicada em plena crise do sistema bancário (encerramento de bancos e mercados) e de deflação económica. Segundo um analista contemporâneo «... foram bem evidentes os estágios da deflação em curso desde 1929, primeiro a fuga dos títulos de propriedade para os depósitos bancários, depois destes para a moeda e finalmente desta para o ouro»; mas também observou «... Enquanto multas e publicitação foram anunciadas como medidas coercivas para recolher o ouro amealhado, os banqueiros e os funcionários da Reserva Federal recusaram-se a divulgar os nomes dos principais detentores de ouro, mas dizia-se que entre os homens que sequestraram grandes quantidades – em alguns casos vários milhões de dólares – estão figuras de considerável proeminência». Essa crise foi também uma oportunidade de facto exercida para limitar garantias e liberdades e de conferir poderes de excepção ao poder político; e na sua aplicação revelou também a discriminação de classes intrínseca ao sistema capitalista. Esta legislação veio a ser revogada só em 1975 (já após a falência do sistema de Bretton Woods) pelo presidente Gerald Ford que restaurou o direito à posse privada de ouro, mantendo porém o poder presidencial de confiscar o ouro em tempo de guerra.

A AFIRMAÇÃO HEGEMÓNICA DO DÓLAR, 1945-1971

Desde 1945 e até 1971, o Acordo de Bretton Woods atribuiu ao dólar o privilégio de equivalência ao ouro nas reservas dos bancos centrais ou, do ponto de vista da nova potência mundial, garantiu a convertibilidade do dólar em ouro, pelo menos teoricamente e entre os bancos centrais; o Fundo Monetário Internacional foi então criado para concretizar os objectivos desse Acordo. Porém, esse foi apenas um primeiro passo no caminho para a imposição do dólar como instrumento de facto nas transacções internacionais. Entre 1968 e 1973 vigorou um sistema de convertibilidade oficial a par do mercado livre do ouro. Em Fevereiro de 1973 este sistema duplo foi abandonado, as moedas internacionais deixaram de ser convertíveis em ouro e passaram a ter câmbios flutuantes; era o fim do sistema de Bretton Woods. Entretanto, em 1970, haviam sido introduzidos os Direitos Especiais de Saque (Special Drawing Rights) titulados em dólares e inicialmente representando reservas de ouro e convertíveis em ouro; porém, após decretada a inconvertibilidade do dólar em ouro, as autoridades da Reserva Federal dos EUA e do Fundo Monetário Internacional fizeram o mesmo em relação aos SDR, o que conduziu à “desmaterialização” dos títulos das transacções e à imposição do dólar como meio de transacção internacional.

Este longo e complexo processo foi iniciado na conferência de Bretton Woods, cujo Acordo foi subscrito por 44 Estados mas sob a liderança conjunta dos EUA e do Reino Unido, uma semana após o desembarque das tropas norte-americanas na Normandia no Verão de 1944; no mesmo acto foi criado o Fundo Monetário Internacional. Foi seguido pelo Plano Marshall (proposto em 1947), cujo propósito foi injectar capital (dólares) na reconstrução europeia, nas reservas dos bancos centrais europeus e posteriormente também nas respectivas transacções comerciais, Plano administrado através da então reestruturada OCDE. Seguiu-se a divisão da Alemanha com a constituição de dois Estados alemães e a dolarização da Republica Federal Alemã (1948). Em 1961, os principais bancos centrais ocidentais constituíram o gold pool , liderado pelo Banco de Inglaterra através da casa bancária N.M. Rothschild, com o propósito de garantir a cotação do dólar face ao ouro. No fim da década de 60, foi criado e expandido o mercado de eurodólares (depósitos e empréstimos em dólares caracterizados pela localização do banco depositário, fora do território dos EUA, mas não pela propriedade do banco ou dos fundos) na Europa e por todo o mundo, sob o impulso de instituições financeiras norte-americanas e britânicas. Depois, a grande pressão posta na aquisição de ouro em 1967, sob a influência combinada da guerra israelo-árabe (Junho 1967) e da política gaullista contrária ao domínio de uma particular unidade monetária nacional no plano internacional, conduziu à desvalorização da libra esterlina (Novembro de 1967), ameaçou desvalorizar o dólar (o que foi evitado mediante vendas maciças de ouro norte-americano no mercado de Londres) e forçou a dissolução do gold pool e a “liberalização” das transacções (Março 1968); foi então dada abertura a um mercado duplo, um oficial entre bancos centrais (mantendo a taxa de referência US$35/onça) e outro livre para as transacções privadas. Entretanto, as reservas de ouro dos EUA não correspondendo (já desde 1960) às exigência da teórica convertibilidade do dólar (estabelecida no Acordo de Bretton Woods), foi concebido e criado pelo grupo dos dez mais ricos membros da OCDE, com poder de voto decisivo no âmbito do FMI, o sistema de Direitos Especiais de Saque (Special Drawing Rights) como substituto do ouro (segundo uns) ou substituto do dólar (segundo outros) nas transacções internacionais e nas reservas dos bancos centrais. De um dia para o outro, em Janeiro de 1970, a generalidade dos países “adquiriram” mais reservas junto do FMI, graças ao simples acto de esta instituição adicionar uma nova parcela nas respectivas contas sob a denominação SDR (!) [ http://www.aci.net/kalliste/bretton_woods.htm ].

O FIM DA CONVERTIBILIDADE

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial até meados da década de 60, a política monetária e fiscal norte-americana fora não inflacionária, mas daí até meados da década de 70 a actividade económica entrou em expansão acompanhada de acelerado crescimento da massa monetária. Entretanto, com o estímulo da expansão do comércio mundial, quer o marco alemão quer o yen japonês se valorizaram mais rapidamente que o dólar, por forma a surgirem subvalorizadas relativamente a este; a manutenção dos respectivos câmbios implicava intensa intervenção por parte dos respectivos bancos centrais nos mercados financeiros, adquirindo dólares e vendendo marcos e yens; mas estas intervenções têm efeito multiplicador nos mercados internos, mesmo se compensadas com outras operações financeiras (“esterilização”). As políticas económico-financeiras dos EUA e da Alemanha e do Japão entraram pois em conflito; sob grande pressão do mercado financeiro internacional, em Maio de 1971 a Alemanha suspendeu a sua intervenção e libertou o marco cuja cotação rapidamente subiu; e em Agosto seguinte os EUA suspenderam a convertibilidade do dólar em ouro e impuseram uma taxa sobre as importações. Uma tentativa para reanimar com novos termos de referência o Acordo de Bretton Woods foi ainda tentado pelo mesmo grupo dos dez (Dezembro 1971). Mas o desequilíbrio e as tensões mantiveram-se e, em Fevereiro de 1973, os mercados internacionais encerraram durante largos dias, o dólar foi desvalorizado de novo e as taxas de câmbio foram libertadas, passando a flutuar. Essa década de 70 seria um período inflacionário. O sistema de Bretton Woods terminara; mas no processo, o dólar norte americano invadiu os bancos centrais e as transacções internacionais a nível quase planetário.

O DÉFICE AMERICANO

Uma vez alcançada a “dolarização” das reservas e das transacções, os EUA passaram a ter o poder de manter um défice comercial de US$400 mil milhões anuais. Na medida em que esse défice se mantém à custa da acumulação de dólares nos mercados internacionais e nos bancos centrais por esse mundo afora, bem como em reinvestimento nos próprios EUA, não sendo compensado por um equivalente fluxo de mercadorias e serviços, esse défice “sustentado” funciona como um “contribuição” ou “imposto” cobrado ao resto do mundo. Vários países têm conseguido pagar esse tributo, mas outros não. Porém, quer uns quer outros sofrem as respectivas consequências à sua maneira; a persistente depressão económica no Japão e o colapso financeiro na Argentina são dois casos exemplares. Caídos os impérios coloniais e vencido a “guerra fria” contra o bloco socialista, neste quadro actual de domínio económico e militar mundial por parte dos EUA, a reacção da União Europeia ao criar a UEM pode ser entendida como uma reacção de autodefesa face aos EUA, dentro da mesma lógica capitalista de competição pela cobrança mundial de impostos. Em que o Reino Unido aguarda para ver enquanto se encosta ao poder do momento.

NASCE O EURO

Em 1 de Janeiro de 1999, onze Estados europeus, no âmbito da União Económica e Monetária, substituíram as suas moedas nacionais (e o ecu ) por uma moeda comum – euro – e transferiram as suas competências em termos de política monetária para uma entidade supranacional – Banco Central Europeu. Após essa transição, dos títulos de crédito internacionais, 27% ficaram denominados em euros e 48% em dólares; e, das reservas oficiais dos bancos centrais, 19% foram denominadas em euros e 57% em dólares. Outros indicadores significativos eram o montante de títulos de crédito nacional e a capitalização bolsista, ambos marcadamente mais elevados nos EUA do que na UE, reflexo da intensidade relativa dos fluxos financeiros. Estas são quatro situações de marcado desequilíbrio para quem afirma a intenção de, no seio do mundo capitalista, alcançar posição de competição e eventual liderança. Embora as duas áreas económicas sejam ambas pouco abertas, o valor das exportações mundiais denominadas em dólares é quatro vezes superior ao das exportações de bens e serviços norte-americanos, enquanto que o valor das exportações denominadas em euros é praticamente igual ao valor das exportações da zona euro. À partida, a possibilidade de a nova moeda “europeia” ganhar estatuto de moeda internacional era escassa, não obstante a população e o produto interno bruto da União Europeia e dos EUA serem comparáveis. A situação agrava-se em consequência de a taxa de rendibilidade das obrigações nos EUA ser superior à da zona euro; este diferencial induz fluxos de capitais, quer de investimento directo quer de investimento de carteira, preferencialmente para os EUA, em prejuízo da zona euro [ http://www.dpp.pt/pdf/Infint99_II/VII1.pdf ]. Porém assinalamos que essa diferença de rendibilidade é de objectividade duvidosa, pois que a manipulação de indicadores e índices, diferentemente aferidos nos dois lados do Atlântico, presta-se a ser e está a ser de facto utilizada como mais uma das várias armas do arsenal do sistema capitalista, na competição entre os seus pólos político-económicos.

É também compreensível que neste quadro político-económico internacional surjam, embora de difícil concepção, propostas de retorno às unidades metálicas de transacção de bens e serviços, oriundas de países em que culturalmente o ouro e a prata sempre tiveram elevada estima, nomeadamente na América Latina e no Mundo Islâmico [ http://www.plata.com.mx/plata/ ; http://www.murabitun.org/WITO/white.html ] Essas propostas são no fundamental expressões de protesto contra o instrumento – o dólar – e a manifestação perceptível de um sistema de exploração iníqua – o capitalismo – sem contudo porem realmente em causa esse sistema. «O facto de a circulação do dinheiro separar o valor nominal das moedas do seu real conteúdo, ou seja, separar a existência metálica da sua existência funcional, implica a possibilidade latente de substituição do dinheiro metálico por cédulas fabricadas com algum outro material, isto é, símbolos que desempenharão a mesma função que as moedas» [Karl Marx, Capital (1867) ed. Penguin, London 1976, vol. 1 pp. 222-3]. Outras abordagens alternativas, mais realistas e com impacto potencialmente imediato, são a eventual retirada de activos sauditas do sistema bancário norte-americano (de que há notícia) e a eventual cotação do barril de petróleo em euro (sobre que há proposta).

Não obstante a actual dolarização das reservas de bancos centrais por esse mundo fora e das transacções financeiras internacionais, aquele poder ainda latente do presidente dos EUA em confiscar o ouro em situação de emergência nacional do seu país, como fez em 1933, tem ainda hoje um significado cujo alcance não deve ser ignorado. Porque em 2002, como em 1933, regista-se nos EUA uma maciça dívida interna, comercial e financeira, pública e privada, a par de uma maciça e irrecuperável dívida externa. Porque à semelhança do sucedido em 1933, também a liberdade de expressão e os direitos fundamentais foram agora coarctados, mediante o “golpe constitucional” executado em 2001 a pretexto da “guerra ao terrorismo internacional” [ http://www.gold-eagle.com/editorials_02/smithf022502.html ].

Com a guerra ao “eixo do mal” como alvo e alibi, a qual permite conferir poderes de emergência ao executivo norte-americano, este poderá em princípio lidar mais agilmente perante o agravamento da situação económica dos EUA e o eventual agravamento da crise ou do colapso do seu sistema financeiro.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info

24/Set/02