A guerra ao Iraque e a Resistência
por Rui Namorado Rosa
A intervenção da coligação
anglo-americana e poucos mais aliados no Iraque, em Março de 2003, foi
uma acção unilateral, à margem da
Organização das Nações Unidas, e contra a
opinião pública mundial, inconformada com as sucessivas
justificações públicas de tal intervenção,
que viriam a revelar-se todas elas falsas. A União Europeia dividiu-se e
foi profundamente abalada, porque os governos dos vários países
tinham interesses contrários e faziam análises
contraditórias. A Rússia e a China estavam contra.
A intervenção vinha há muito a ser preparada, no quadro do
plano de controlo político pelos EUA de toda a região que vai do
Mediterrâneo Oriental até ao Sudeste Asiático.
Em 8 de Novembro de 2002, os EUA ainda haviam conseguido fazer passar por
unanimidade uma resolução do Conselho de Segurança que
oferecia ao Iraque uma última oportunidade para satisfazer
os seus compromissos de desarmamento e, em particular, para fornecer
informação exacta e completa sobre os seus programas de
desenvolvimento de armas de destruição maciça e de
mísseis balísticos (exigida pela resolução 687 de
1991!). Ora como sabemos, desde o fim da Guerra do Golfo o Iraque sofreu os
constrangimentos de vigilância e embargo permanentes, impostos pela ONU,
bem como, por iniciativa unilateral dos EUA e do Reino Unido, esteve sujeito a
vigilância e a bombardeamento aéreo nas impostas áreas de
exclusão aérea. A nova resolução fazia
parte da encenação hipócrita em que a comunidade
internacional (os seus governos) foram cúmplices.
http://www.nationmaster.com/encyclopedia/UN-Security-Council-resolution-on-Iraq
Mas em Março de 2003 essa unanimidade não existiu. Porém,
as várias potências mundiais iriam acomodar-se à nova
realidade do Iraque ocupado de facto por uma
coligação; e, ou pretendendo contribuir para uma
saída airosa da administração norte-americana e do governo
britânico do malogro da vitória fácil, ou para uma
libertação do povo iraquiano do tormento da
ocupação e do insulto da espoliação, ou, ainda,
para tirar também partido do saque prometido, foram-se manifestando mais
dialogantes para a procura de uma solução.
Em 22 de Maio de 2003, a resolução 1483 faz o levantamento de
sanções (a um Iraque cuja soberania havia sido usurpada),
reconhece aos EUA e ao RU a autoridade de potências
ocupantes, cria um representante especial no Iraque para coordenar a actividade
da ONU no território, e propõe a criação de um
Fundo de Desenvolvimento para o Iraque - DFI (alimentado evidentemente pelas
receitas da indústria petrolífera) e uma correspondente Junta
Internacional de Acompanhamento e Monitorização (IAMB).
http://www.casi.org.uk/info/scriraq.html#2003
E, em 16 de Outubro de 2003, a resolução 1511, sublinhando a
natureza temporária da Autoridade Provisória da
Coligação (CPA), saúda o recentemente constituído
Conselho de Governo e reconhece ambos como sendo os principais
órgãos da administração interina no Iraque. Pede
que cooperativamente estabeleçam uma agenda para redigir uma
constituição e realizar eleições; autoriza a
constituição de uma força de segurança
multinacional e solicita a comunidade internacional a urgentemente contribuir
para ela (assim legitimando as forças invasoras e de
ocupação); pede aos estados para contribuírem não
só para a força de segurança mas também para a
reconstrução do Iraque e o seu financiamento
(inclusive transferindo para o Fundo de Desenvolvimento (DFI) os activos do
regime deposto congelados no estrangeiro); os recursos do país estariam
em saldo e era legitimada a antecipada apropriação de recursos
que as corporações norte-americanas conduziam desde o primeiro
dia.
Finalmente, a resolução 1546 de 8 de Junho de 2004 do Conselho de
Segurança, avança no caminho encetado, de
legitimação do processo de ocupação,
expropriação e subjugação do Iraque. Afirma
determinar a entrega do poder por parte da CPA a um Governo Interino
soberano em 30 de Junho de 2004 (o acto formal veio a acontecer a
28 de Junho); e fixa o termo automático do mandato da
força multinacional liderada pelos EUA com a conclusão do
processo democrático, o mais tardar no fim de 2005, com
opções relativas à revisão do mandato pelo Conselho
de Segurança ou a pedido do governo interino ou a pedido do governo
eleito (previsto para Janeiro de 2005). A resolução tem anexas
duas cartas, uma do presidente do governo interino do Iraque, outra do
secretário de estado dos EUA, consagrando a íntima
cooperação de ambos nos propósitos comuns.
http://www.iraqcoalition.org/transcripts/20040609_UNSCR_Text.html
A cimeira da NATO a 28 de Junho em Istambul foi sincronizada para o governo
interino do Iraque, no suposto exercício da sua soberania, já
solicitar e obter dessa aliança apoio para o treino das forças de
segurança iraquianas, pois que pouco mais os aliados estavam dispostos a
comprometer no plano militar.
A agressão ao Iraque foi oferecida pelo poder imperial do
capital transnacional às indústrias petrolífera, da guerra
e da reconstrução. Numa evolução de progressiva
privatização de todos os recursos e serviços do estado
passíveis de gerarem lucros e alimentarem o capital financeiro, a guerra
oferece novas oportunidades de negócio como são a
indústria de reconstrução e os serviços de
segurança, mas inúmeras outras também. Desempregados,
aventureiros, marginais, cada um com sua motivação, todos eles
são vítimas do sistema capitalista, porem recicláveis em
seus agentes mercenários para todos os fins; é uma realidade em
mutação imprevisível, que coloca questões legais e
morais, de eficácia também, e com elas inesperados
fenómenos.
Assistimos ao dramático sofrimento e à inaudita resistência
do povo por todas as vias incluindo a luta insurgente; por de trás desta
luta encontram-se necessariamente múltiplos suportes materiais e morais
e uma ou várias estratégias insurreccionais; mas subjacentes
estão os enormes sofrimentos, indignação e rebeldia
insubmissa do povo iraquiano. Essa insubmissão não é
surpresa; os povos da Mesopotâmia e das montanhas limítrofes
são povos que habitam e cultivam a memória milenar de influentes
culturas universais, desde a Antiguidade à Idade Média; e que
só no curso do último século sofreram sete guerras directa
ou indirectamente relacionadas com os recursos petrolíferos do
território. Durante a Primeira Guerra Mundial foi a conquista colonial
pelo império britânico em competição com outras
potências coloniais (1914-18); entre 1918 e 1930 foi a guerra de
pacificação pelas forças coloniais sobre o povo
insurrecto; em 1941, a Grã-Bretanha reocupou a território, onde
conservara algumas bases militares, para proteger os seus interesses
petrolíferos face à ameaça expansionista da Alemanha nazi;
em 1980-88 foi a guerra Irão-Iraque, promovida e suportada pelas
potências Ocidentais, sacrificando os dois povos, delapidando os seus
recursos e as infra-estruturas dos dois países, deixando-os exangues,
presas supostamente fáceis para a reconstrução
da sua indústria, a privatização das suas reservas e o
retorno das petrolíferas multinacionais; em 1991 foi a Guerra do Golfo,
na sequência da invasão do Kuwait pelo Iraque em Agosto de 1990,
ela própria induzida pelos EUA, que depois teve pretexto para
organizaria uma coligação internacional para libertar
o Kuwait e para invadir o Iraque, onde causou dezenas de milhar de
vítimas imediatas, causou danos duradouros e vítimas a prazo e
destruiu as infra-estruturas militares e muitas infra-estruturas civis
também; em 1991-2003, após o armistício, o embargo da ONU
foi mantido por força dos vetos dos EUA e do RU, prolongando a
destruição silenciosa das infra-estruturas e portanto das
condições de vida e de actividade económica, embargo
agravado pelo estabelecimento de zonas de exclusão aérea sobre
grande área do espaço aéreo iraquiano, pretexto para
ataques periódicos por aquelas duas potências sobre alvos
militares ou não, incluindo quatro ataques de grande escala.
http://www.globalpolicy.org/security/oil/2003/2003companiesiniraq.htm
A autoridade ocupante (CPA) tomou o partido Baath como o inimigo principal das
forças ocupantes e da própria população iraquiana
(enganando-se a si própria como agente de
libertação e
democratização) sem entender à diversidade de
perspectivas e aspirações e às nuances das
relações entre Árabes e Curdos e entre Sunitas e Shiitas e
recorrendo irracionalmente ao exercício da força para
resolver a sua própria incapacidade de entendimento, assim
convertendo potenciais conjunturais aliados em imediatos opositores. Exemplar
foi o seu comportamento face a dois importantes lideres shiitas, um
moderado e outro radical -- Sistani e Moqtada --
conseguindo hostilizar ambos.
http://eurasianet.org/departments/recaps/articles/eav072304.shtml
No vazio de uma análise fundamentada e perante um povo insubordinado, a
coligação e a força invasora encontraram dificuldades para
elas inesperadas. A coligação, através das autoridades e
forças de segurança que constituiu (autoridade provisória
da coligação, governo provisório, depois governo interino;
força de estabilização e depois força de
multinacional) bem como através das substituições de
chefias civis e militares a que procedeu, prosseguiu um caminho errático
procurando adaptar-se à realidades no terreno.
Às dificuldades internas da coligação junta-se a
adversidade do contexto internacional para os seus propósitos. A
Turquia, com uma opinião popular adversa e muito receosa da
evolução política no Curdistão (maioritariamente
localizado no seu próprio território), logo em Fevereiro de 2003
manifestou as suas reservas em se associar à coligação e
em lhe prestar apoio logístico, abstendo-se de integrar a
coligação, mesmo após a cimeira da NATO em Istambul a 28
de Junho de 2004. A Espanha, que fora inicialmente um membro importante da
coligação, retirou as suas tropas em Maio de 2004, face à
enorme oposição popular e em resultado do juízo
político feito sobre o atentado terrorista de Madrid a 11 de
Março de 2004. Como sabemos, depois disso diversos outros países
abandonaram a coligação enquanto apenas alguns manifestaram
disponibilidade para aderir e, como regra, simbolicamente.
São admitir perspectivas de alargamento do conflito a países
limítrofes; tendo havido objectivos predefinidos no início desta
guerra insensata, há todavia necessidades estratégicas que
emergem. A resistência à ocupação e a
histórica diversidade cultural do Iraque poderá levar a
coligação ocupante a procurar balcanizar o país,
sabendo-se que o território comporta três comunidades principais:
a Curda, no Norte, a Shiita no Sul e a Sunita no triângulo Central. Essa
balcanização, porém, suscitaria naturais alianças
ou fusões transfronteiriças que arrastaria o problema da
delimitação territorial do Iraque para o nível regional.
OCUPAÇÃO E RESISTÊNCIA
A presença norte americana no Iraque é uma ocupação
militar permanente e o exercício de controlo político-militar que
se pretende exaustivo. A missão diplomática
está dimensionada para atingir 3000 efectivos e a força militar
acima dos 100 mil soldados, mesmo após o prometido fim da
ocupação! Estes são elementos do plano de domínio
imperial; mas virá a ser assim? Será que os povos o vão
consentir? Será que o imperialismo ainda tem essa força?
Estimativas anunciadas das forças insurgentes tendem a ser
conservadoras, ficando por 5 mil partidários baathistas; mas um maior
número, difícil de estimar, serão os part-timers que
emergem e se dissolvem na população; o número total
atingiria então 20 mil segundo analistas norte-americanos. Este
número pode ser comparado com o número comparável de
suspeitos que passaram pelas prisões controladas pelo exército de
ocupação e que na sua maioria seriam depois libertados. Deve
também ser comparado com o número de iraquianos abatidos em
confrontos armados, incluindo civis, que só no mês de Abril
atingiram 4 mil mortos.
A maioria dos insurgentes são iraquianos seculares nacionalistas
(compreendendo também antigos membros do partido Baath ou da Guarda
Nacional) mas também são numerosas as milícias islamistas.
Actuando segundo tácticas e com estratégias diversas, mas com
objectivos partilhados ou resultantes comuns, conformam uma verdadeira
resistência nacional. Supõem-se organizados em dezenas
de grupos ou células de guerrilha, sob a direcção de
chefes tribais ou a inspiração de imãs religiosos. A
motivação mais citada para a mobilização rebelde
é a libertação da ocupação estrangeira que
não a fundação de algum estado islâmico; a revolta
é sobretudo pela libertação nacional. A resistência
encontra condições favoráveis não só nas
suas motivações mas também na ampla disponibilidade de
meios financeiros, de armas e de treino militar, bem como na ausência de
sistema de cartões de identidade e na abstenção do uso de
telecomunicações electrónicas (detectáveis).
http://www.guardian.co.uk/worldlatest/story/0,1280,-4290373,00.html
http://www.military.com/NewsContent/0,13319,FL_larger_070904,00.html
http://www.truthout.org/docs_04/072804A.shtml
A rotação das tropas de ocupação não tira
partido da eventual aprendizagem que fazem no terreno. Pelo contrário,
os iraquianos tiram partido da experiência de luta acumulada. E posta a
impotência e a incompetência em normalizar as
condições básicas de vida urbana, aqueles iraquianos que
inicialmente tomaram postura de expectativa ou mesmo de simpatia pelo invasor,
mudaram de atitude e revoltam-se também. Como na Palestina, bandos de
jovens demonstram diariamente a sua hostilidade em actos de
intifada e mesmo actos de sabotagem.
A colaboração entre forças ocupantes e
forças de segurança iraquianas bloqueia-se em mútua falta
de confiança ou disfarçada insubordinação; as
recomendações são ignoradas ou não
são cumpridas; e forças irregulares populares
desempenham de facto funções de policiamento nas ruas.
http://eurasianet.org/departments/recaps/articles/eav072304.shtml
Acções de guerrilha contra as forças ocupantes, contra
forças de segurança da governo interino iraquiana imposta pela
coligação e sancionada agora pela ONU bem como contra
mercenários por conta de empresas de segurança e de
reconstrução de qualquer nacionalidade, têm-se multiplicado
e até intensificado após a transição para a nova
etapa do processo político em fim de Junho. É clara a
estratégia de isolar a coligação do apoio dos seus aliados
e dos colaboracionistas, tirando partido também da generalizada
indignação da opinião pública à
agressão e ocupação do Iraque. Vários países
vão retirando ou reduzindo drasticamente as suas forças militares
ou pessoal técnico do terreno, enfraquecendo a coligação
quer militar e tecnicamente quer, sobretudo, diplomaticamente; a Espanha, as
Honduras e a República Dominicana retiraram na Primavera, a Noruega,
Singapura e as Filipinas retiraram no princípio do Verão, a Nova
Zelândia e a Tailândia vão retirar em Setembro, a Holanda e
a Polónia anunciaram retirar em meados de 2005. Outros países
reafirmam a sua fidelidade à coligação e prometem novos ou
reforçados contingentes, mas aquém do inicialmente prometido. A
tomada de reféns ao serviço de empresas de
reconstrução, e a ameaça ou a sua efectiva
execução, põe enorme pressão e desmobiliza dezenas
de milhares de trabalhadores de numerosas nacionalidades, de que os EUA
precisariam de dispor urgentemente como força de trabalho para levar por
diante o seu negócio de reconstrução.
A Conferência nacional de dirigentes políticos, religiosos e
regionais, em que seria seleccionado um Conselho Nacional de cem elementos,
cuja missão será superintender o governo interino,
Conferência considerada uma etapa fundamental no calendário do
processo político traçado para o corrente período em
preparação das eleições de Janeiro de 2005, foi
subitamente adiada em fins de Julho, a pedido da ONU, em face do boicote de
numerosos e relevantes presumidos participantes.
http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A50417-2004Jul14.html
http://www.truthout.org/docs_04/printer_073104B.shtml
Quer dizer que o processo político teima em não
seguir o caminho e o ritmo que a administração norte-americana
anseia impor. O povo iraquiano resiste.
5 de Agosto de 2004.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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