Educação e tecnologia — Portugal em transe
por Rui Namorado Rosa
Nos anos recentes surgiram novos termos no discurso oficial da União
Europeia, rapidamente assimilados em Portugal, que reflectem o esforço
de estruturação da União Europeia na
competição face às demais potências capitalistas e
que, sob fachada tecnocrática, procuram confundir e desarmar a
opinião pública.
O que está em causa é a formação de força de
trabalho e a reformulação das relações de
trabalho, aceleradas pela criação e difusão de novos
saberes e, particularmente, novas tecnologias.
EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO
O Conselho Europeu de Lisboa (Março de 2000) propusera ao Conselho da
Educação proceder a uma reflexão geral sobre os
objectivos futuros concretos dos sistemas educativos, que incida nas
preocupações e prioridades comuns e simultaneamente respeite a
diversidade nacional... Esta proposta foi entendida como abrangendo
também os sistemas de formação e também extensivo
aos países em vias de adesão à União Europeia, e
resultou num relatório aprovado no Conselho Europeu de Estocolmo
(Março de 2001) já sob a designação Os
Objectivos Futuros Concretos dos Sistemas de Educação e
Formação. Aí se fixam cinco objectivos concretos a
serem prosseguidos no horizonte de dez anos.
Sob a presidência espanhola, está em elaboração um
programa detalhado para acompanhamento da implementação dos
objectivos dos sistemas de educação e
formação, que procurará identificar as
questões chave, enumerar e calendarizar as acções de
acompanhamento, as metas a atingir e os indicadores qualitativos e
quantitativos a aplicar, na prossecução dos seus objectivos. Esse
programa foi apreciado no Conselho da Educação em Janeiro de 2002
e levado ao Conselho Europeu de Barcelona (Março de 2002).
A propósito deste processo deve recordar-se que, na sequência da
conferência de Ministros da União Europeia e dos países
candidatos (Praga, Junho de 1998), a Comissão das Comunidades Europeias
elaborou um relatório europeu sobre a qualidade do ensino
básico e secundário, baseado em indicadores de qualidade
(Maio de 2000). Também em Setembro de 1998 o Conselho da
Educação adoptara uma recomendação relativa
à cooperação em matéria de garantia de qualidade do
ensino superior; e posteriormente, em Novembro de 2000, adoptou uma outra
recomendação semelhante no relativa ao ensino básico e
secundário. Os sistemas de garantia de qualidade como factor essencial
para a eficácia dos sistemas de educação e
formação são referidos com insistência e a
progressivo nível de decisão política. A
comunicação da Comissão COM(2000)594 final (Setembro de
2000) estabelece indicadores estruturais, designadamente nos domínios da
educação e da formação.
No ensino superior, a Declaração da Sorbonne (25 Maio de 1998),
reformulada pela Declaração de Bolonha (19 Junho 1999) e
consagrada na Declaração de Praga (18 Maio 2001), são
momentos sucessivos dum percurso em marcha para a construção do
Espaço Europeu do Ensino Superior, cujos objectivos e prazos
estão fixados, devendo a sua implementação ser apreciada
em Berlim (2.º semestre de 2003). A Associação das
Universidades Europeias (EUA) e a Associação das Uniões
Nacionais de Estudantes na Europa (ESIB) constituíram-se rapidamente nos
principais interlocutores deste processo. Os sindicatos de professores e as
associações científicas e profissionais tem tido
intervenção mais discreta, exceptuando as
associações profissionais que representam profissões
regulamentadas, em domínios como Engenharia e Ciências da
Saúde.
Numa outra vertente, a Aprendizagem ao Longo da Vida foi objecto de
um memorando da Comissão, SEC(2000)1832, presente ao Conselho da
Educação (Novembro de 2000) e agora objecto da
comunicação da Comissão, COM(2001) 678. A
aprendizagem ao longo da vida é o conceito chave adoptado
para lidar, no quadro da agora designada sociedade do conhecimento,
com um universo de questões socio-económicas em continua
transformação.
Em paralelo com a evolução descrita, regista-se uma
evolução análoga para o Espaço Europeu da
Investigação, objecto das comunicações da
Comissão COM(2000)6 (Janeiro de 2000) e COM(2000)612 (Outubro de 2000).
O conceito de Espaço Europeu de Investigação surge
explicita e plenamente enunciado na Proposta de Programa-Quadro
plurianual 2002-2006 da Comunidade Europeia de Acções em
matéria de Investigação, Desenvolvimento
Tecnológico e Demonstração (Doc. COM.2001.94)
aprovado pelo Conselho de Ministros e o Parlamento Europeu. Neste âmbito,
a intervenção não governamental é muito escassa,
à parte as posições institucionais assumidas pela
Associação das Universidades Europeias, pelas Academias Europeias
de Ciências (ALLEA) e a pela Fundação Europeia para a
Ciência (ESF).
RECURSOS HUMANOS E FORÇA DE TRABALHO
É aparente o relativo alheamento dos parceiros sociais
sindicatos, sociedades científicas, associações
profissionais, outras organizações não governamentais
face a estes processos, conduzidos em gabinete e nas instâncias de
decisão política. O ritmo a que são conduzidos e a
diversidade de frentes abrangidas tornam pouco compreensível o sentido
geral da sua evolução, o que dificulta ou obsta a
intervenção.
Podemos aperceber-nos que o complexo de processos descrito procura, por
várias vias e a ritmo acelerado, moldar a formação da
força de trabalho e a sua relação no seio do sistema
económico europeu, na competição entre pólos de
acumulação capitalista, no quadro actual da
globalização. No entanto, a Organização Mundial do
Comércio reflecte os interesses que procurarão integrar no
âmbito de serviços transaccionáveis todo o tipo de
formação e até a própria educação.
Por um lado temos a mercantilização dos saberes. Por outro lado
temos em acção, sob novas formas, o exercício de
domínio ideológico sobre os trabalhadores.
Segundo a Eurostat, na União Europeia existem actualmente 112
milhões de trabalhadores, dos quais 74 milhões em PME; e destes,
38 milhões em empresas com menos de 10 trabalhadores. A
pulverização da força de trabalho é enorme e
prossegue. O próximo alargamento da União Europeia a novos
países é uma opção política e
económica, no interesse do centro da União, que
automaticamente importará força de trabalho com
elevada qualificação.
A realidade portuguesa é frágil neste contexto. O nível
médio de qualificação da população
portuguesa é dos mais baixos da Europa; a nossa força de trabalho
é particularmente débil em ciências e engenharias. Devemos
questionar: Que educação e formação vamos oferecer
a jovens e adultos, a trabalhadores estudantes e profissionais activos, e a
desempregados? Que meios de aprendizagem e ensinos vamos oferecer e encorajar
nas nossas Escolas? Questões agravadas por termos o sector empresarial
público quase totalmente dizimado e um empresariado que
não é empreendedor e naturalmente já capitulou perante o
capital internacional.
A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
Sociedade de Informação é um termo que
não significa uma presumivelmente nova sociedade, embora
haja quem pretenda que seja. O termo pode ser útil para abordarmos
certos aspectos particulares e importantes da nossa sociedade
contemporânea, mas significa apenas uma parte dela, não o todo,
como alguns pretendem. Nem significa uma transformação inesperada
que esteja a acontecer de repente; as tecnologias da comunicação
e informação TIC - que suportam a Sociedade da
Informação são as telecomunicações,
cujas origens remontam há um século atrás (a telegrafia,
depois a rádio) e os computadores, cujas origens modernas têm meio
século já (as máquinas criptográficas e o
transístor). Sem dúvida que as TIC têm evoluído
muito, e sobretudo têm encontrado utilidade nos mais diversos
âmbitos da indústria, dos serviços e da vida quotidiana -
os computadores pessoais, os telemóveis, a televisão interactiva,
a internet, etc. Mas as TIC não são as únicas novas
tecnologias que suportam as recentes transformações sociais; o
presente e o próximo futuro estão e estarão igualmente
marcados pelas nanotecnologias e as tecnologias genéticas.
É uma armadilha ideológica querer fazer passar a parte pelo todo
e insinuar estar na tecnologia o instrumento para transformar a sociedade,
decidir o futuro. Por detrás dessa armadilha estão vorazes
interesses económicos.
Essa insinuação de que as tecnologias da informação
e da comunicação estão a revolucionar a sociedade, em
termos de esta merecer ser agora designada Sociedade da
Informação, vai de par com outras insinuações
que têm surgido ultimamente na União Europeia, como é
também designá-la Sociedade do Conhecimento, para
esconder a realidade de que ela continua sendo a sociedade capitalista.
São de facto novas as tecnologias e com elas mais diversas as formas e
mais rápida e global a exploração do homem pelo homem e a
concomitante acumulação de capital.
No quadro da sociedade do conhecimento, o domínio das
tecnologias da informação e da comunicação
são instrumentos extremamente relevantes para a
qualificação dos recursos humanos, nomeadamente no Ensino; para a
prestação de serviços a toda a população,
designadamente serviços a cargo da Administração
Pública nos âmbitos da Educação, Saúde,
Justiça, Finanças, etc.; para o funcionamento do sistema
produtivo, organização do trabalho e modernização
dos equipamentos. As tecnologias da informação e da
comunicação são elas mesmas objecto de relevantes
oportunidades da actividade produtiva, enquanto produtos de empresas desses
ramos ou como factores de inovação em empresas de qualquer outro
ramo.
A sociedade actual, fortemente marcada pela disseminação, ao
longo da segunda metade do século XX de tecnologias da
comunicação e da informação e, particularmente,
pela sua progressiva integração e globalização na
última década, oferece grandes oportunidades de progresso mas
cria inversas ameaças. A progressiva fusão das empresas
produtoras e fornecedoras de informação em grandes grupos
mundiais (AOL Time-Warner (EUA), Vivendi-Universal (França) e poucas
mais), tirando partido da convergência dos media
tradicionais, por um lado, mas, por outro, a grande massa de
população excluída do acesso a alguns ou muitos dos meios
de comunicação e com baixo grau de literacia, são
ameaças quer de violento domínio cultural e ideológico
quer de extrema exclusão cultural e social. Num mundo de assimetrias
regionais e sociais, o perigo da aceleração dessas assimetrias
é evidente. Esse perigo está no seio da própria
União Europeia e está a afecta negativamente o nosso país,
ou melhor, Portugal não tem sido capaz de resistir a ele, e a sua
posição relativa no seio da União Europeia tem-se
degradado.
PORTUGAL NA CRISE
O nosso desenvolvimento económico sustentado requer que se produza para
consumir. Ora, para produzir é necessário conhecer e saber fazer.
Daí a importância essencial que a Educação e a
Investigação, ou seja, a criação e a
transmissão alargada de saberes têm para conseguirmos progredir.
Entretanto é preciso também investimento produtivo para que os
saberes possam produzir; mas, infelizmente, investimentos produtivos escasseiam
em Portugal. Assim, o nosso país quase não contribui para a
produção de bens incorporando TIC; os equipamentos para as TIC
são quase todos importados, quando as TIC poderiam oferecer muitas
oportunidades para industrias e serviços emergentes como também
para melhorar produtos e processos nos ramos tradicionais. Por isso devemos
duvidar dos reais propósitos daqueles que propagandeiam a
sociedade da informação para procurarem acelerar
investimentos, satisfazerem interesses sobretudo comerciais, para o país
atingir índices de desenvolvimento que seriam realmente enganadores, num
processo que só agravaria o seu atraso relativo. E ainda mais duvidar
dos propósitos daqueles que, enxergando o mundo à sua imagem,
propagandeiam a nova sociedade da informação como o
ideal de um computador e a internet para toda a gente.
No caso das TIC, uma parte importante do investimento passa necessariamente por
uma infra-estrutura básica para a transmissão e armazenamento de
informação por todo o território para toda a
população; é a propósito dessa infra-estrutura que
se fala em plataforma de banda larga, isto é,
capaz de suportar um elevado tráfego de informação de
todas as naturezas (som, imagem, texto, dados,...). Assiste-se agora a uma
intensa corrida de interesses empresariais por esse investimento, diversas
soluções técnicas sendo possíveis; porém,
esse investimento, sendo de escala e interesse nacional, deverá ser
feito por forma a que seja duradouro e tecnicamente evolutível, evitando
soluções que se tornem obsoletas em poucos anos.
A sociedade portuguesa tem tido um desempenho comparativamente negativo no
contexto europeu. Mas tal não tem de ser um destino inelutável.
Dependerá da correcta identificação dos obstáculos
e dos erros cometidos a possibilidade de o ultrapassarmos. No Painel da
Inovação de 2001 da União Europeia (staff working paper
SEC(2001) 1414), de entre 16 indicadores, Portugal estava aquém da
média europeia em 14 deles; e, no conjunto, destacava-se não
só por ter o mais baixo indicador global de inovação (SII
summary innovation index) como também por ter a mais baixa taxa
de crescimento respectiva (de 1995/7 para 1999/2000); e isto não
obstante algum crescimento absoluto desses indicadores.
No seio do conjunto da União, a maioria dos indicadores de
inovação divergiu no mesmo período e o indicador global de
inovação aparece negativamente correlacionado com alguns
indicadores sociais, designadamente a pobreza. Estes factos constituem um grave
problema político pois que questionam o objectivo prometido, mas
não realizado, da coesão social europeia. Não é com
a população menos qualificada e menos saudável que se cria
riqueza. Não é com baixas remunerações e sem acesso
ao trabalho que se cria riqueza. Para criar riqueza não basta acumular
capital, exige-se que este seja bem aplicado: em empresas inovadoras e em
remunerações justas.
No fundo, esses factos comprovam a incapacidade histórica do capitalismo
em assegurar o progresso da sociedade no seu conjunto, sem clivagens de classe
cada vez mais vastas.
A SAÍDA DA CRISE
No nosso país, de modo mais pronunciado do que noutros que têm
melhor desempenho, são notórios: a influência negativa de
interesses particulares relativamente ao interesse comum; o esforço
insuficiente da sociedade, e em particular do Estado, na Educação
e Formação e na Investigação Científica e
Desenvolvimento Experimental, para a formação de recursos humanos
e na criação de conhecimento; a desvalorização
relativa do factor trabalho, traduzida na sua baixa remuneração,
na insegurança do direito ao trabalho e no sub-aproveitamento dos
recursos humanos existentes, inclusivamente os mais qualificados; o progressivo
desmantelamento do aparelho produtivo, particularmente a
alienação das empresas públicas e a progressiva venda de
empresas ao capital internacional; a falta de incentivos à
difusão de novos conhecimentos e de investimento em empresas inovadoras,
designadamente incentivos fiscais e capital de risco, estão entre os
principais factores que concorrem para a crise da sociedade portuguesa.
Esta crise é a própria incapacidade em ultrapassar o atraso
relativo, mas como ficou dito, não é inelutável, tem
origens identificáveis e poderia ser vencida mediante políticas
apoiadas na defesa do interesse público, e particularmente do interesse
das mais largas camadas da população, as camadas trabalhadoras.
Por isso, o nosso povo necessita de analisar e reflectir as realidades e os
meios ao seu alcance, a fim de poder decidir conscientemente e actuar sobre o
curso dos acontecimentos, segundo estratégias que neste contexto
suportem o seu desenvolvimento. No plano político e cívico,
é necessária a participação dos cidadãos e
das organizações na identificação das suas
necessidades em serviços e aplicações, tendo em vista as
possibilidades crescentes de oferta de soluções diversificadas;
para o que não bastam estruturas governamentais, mas se requer
também a constituição de um conselho nacional
representativo das estruturas económicas, sociais e culturais e dos
centros de intervenção política e institucional, dotado de
autoridade institucional, com funções de orientação
estratégica para as áreas da ciência e da tecnologia; que
designadamente observe e se pronuncie, em defesa das garantias e dos direitos
fundamentais e do interesse público, sobre os impactes das TIC como o
teletrabalho e o comércio electrónico. No plano técnico,
é necessário proceder à generalização do
armazenamento, transporte e processamento digital da informação
existente e a criar, por forma a facilitar o seu acesso universal. O que
significa o transporte sobre diversas vias (cabo, microondas, terrestre,
satélite, ...) da informação requerida a todos os locais e
a toda a população; a combinação multimédia
dos sinais que contêm essa informação sob diversas formas
(voz, texto, gráficos, imagens fixas, vídeo, música,
dados, etc.) e, bem assim, o acesso aos novos meios através dos meios
previamente existentes (telefone fixo e móvel, audiovisual,
rádio, livros, jornais, etc.).
A evolução mundial e a integração europeia
têm sido razões de forte condicionamento e de óbvia
justificação para a negativa evolução
sócio-económica de Portugal e a sua desfavorável
posição no quadro da divisão internacional do trabalho.
O conhecimento científico e a tecnologia têm servido objectivos de
apropriação privada pelo capital nacional e internacional. Mas
poderão também servir para assegurar a elevação do
nível de vida de todo o povo. Se escolhermos apostar na
qualificação geral da população, no investimento
produtivo, na remuneração justa do trabalho e na soberania
nacional.
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Publicado originalmente na revista "Vértice", nº 105, Março-Abril/2002
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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