Ensino Superior:
A reforma ditada pela União Europeia
por Rui Namorado Rosa
Este Verão, o Conselho e o Parlamento Europeus adoptaram o programa
e-Learning, para a integração das Tecnologias da
informação e comunicação (TIC) nos sistemas
Europeus de Educação e Formação. Ao mesmo tempo, o
governo Português tramitava pressurosamente a revisão da Lei de
Bases do Sistema Educativa e vários outros diplomas do pacote
legislativo com que pretende adequar o ensino e através dele o perfil da
força de trabalho nacional aos desígnios do capital
transnacional. Nada que tenha a ver com objectivos sociais, culturais,
cívicos, nada disso.
O referido programa
e-Learning
confirma a orientação segundo medidas que desestruturam as
modalidades de ensino formal e do ensino presencial em particular. Essas
medidas, por um lado, e o sub-financiamento dos estabelecimentos de ensino, por
outro, pretendem arrasar o ensino público e facilitar o caminho à
oferta privada de modalidades de ensino informais, incluindo o ensino à
distância. O valor da qualificação escolar perde o seu
pleno reconhecimento. Assim também, é facilitada a
contratualização
ad hoc
dos trabalhadores formados em tal sistema de ensino informal.
Será criado um comité de apoio à Comissão Europeia
na administração do programa
e-Learning
. Esse propósito denota a importância conferida aos objectivos
deste programa. Constituído por peritos, contornará a
autoridade dos governos dos estados membros nas matérias de ensino que
caiem sob a sua alçada, e não são poucas. Este e outros
programas
e-Learning, Leonardo, Socrates
, etc bem como as várias componentes do Espaço Europeu de
Educação em constituição, actuando conjuntamente,
tendem a telecomandar e a reduzir de facto a margem de manobra dos governos e
dos estabelecimentos de ensino, em cada estado membro.
E a finalidade não é a Educação. A relevância
repetidamente colocada na intermediação tecnológica denota
como a finalidade educativa é secundária ou apenas justificativa.
No programa
e-Learning
o que se tem em vista realizar ou atingir são campus virtuais europeus,
incluindo a formação de professores, a geminação
electrónica entre escolas, com salas de formação virtuais
para professores, o desenvolvimento de software de conteúdos e
multimédia europeus de qualidade a competir (por outras
palavras à semelhança) com o oferecido pelos EUA e aproveitando
as experiências dos países anglo-saxónicos. Há
evidentes interesses económicos subjacentes a estes desígnios de
política educativa, situados no âmbito da
produção multimédia (consabidamente ligada à
indústria da comunicação social) e na
produção e exploração de redes de
telecomunicações informáticas.
ECONOMIA DE MERCADO E ENSINO NA UNIÃO EUROPEIA
Durante trinta anos os interesses económicos haviam concentrado a sua
atenção no desenvolvimento quantitativo do ensino mas, desde
então, contrapõem os aspectos qualitativos, na
proporção em que o confronto da competitividade torna mais
urgente para eles uma reforma do ensino, nas vertentes de estrutura,
conteúdos, metodologias e mesmo de atitudes (nomeadamente a
concorrência, a competição, a flexibilidade, etc.).
O capital, particularmente as corporações transnacionais, tem de
modo sistemático actuado através de grupos de pressão em
que se organiza, alcançado sucesso em influenciarem a generalidade das
políticas da União Europeia e de outras
instituições internacionais, designadamente OCDE, OMC e
organismos da ONU. Na presente estratégia neoliberal, que compreende a
liberalização e intensificação mundial do
comércio, a privatização e a
desregulamentação de virtualmente todos os domínios
económicos e a subordinação de todos os domínios de
política nacional ao objectivo da competitividade internacional, surgem
como protagonistas discretos mas centrais alguns importantes grupos de
pressão empresariais, constituídos por iniciativa ou com o
beneplácito da Comissão Europeia, que actua como o governo
de facto da União Europeia. Mencionemos os mais importantes
grupos de pressão empresariais: European Roundtable of Industrialists
(ERT), Union des Industries de la Communauté européenne (UNICE),
International Chamber of Commerce (ICC), Association for Monetary Union of
Europe (AMUE), Business and Sustainable Development (BSD), European Services
Fórum (ESF), etc. bem como as alianças constituídas
entre esses grupos e os governos nacionais [
Europe Inc.; Regional & Global Restructuring and the Rise of Corporate Power,
Belén Balanyá, Ann Doherty, Olivier Hoedeman, Adam Ma'anit, Erik
Wesselius, London: Pluto Press, 2000].
Em 1983 foi constituído, com a cumplicidade e benevolência do
Comissário Europeu com o pelouro do Mercado Interno, Etienne Davignon, o
lobby empresarial dos maiores grupos capitalistas (europeus e não
só) ERT - European Round Table (of Industrialists) [
http://www.ert.be/
]. Nele se associaram os grupos Rockefeller, Standard Oil, Asea-Brown-Bovery,
Deutsche Bank, Fiat, Volvo, Renault, Societé General, Unilever, e mais
tarde até a Comissão Trilateral. É considerada
particularmente relevante a influência deste lobby no curso das
transformações da política educativa na União
Europeia desde 1995 [Gérard de Sélys,
Education et technologies: enjeux et défis pour le secteur de
l'éducation publique
, Internationale de l'Education, Table ronde de l'IE pour les pays de l'OCDE,
Helsinki, 8-10 Octobre 2000,
http://www.ei-ie.org/educ/french/fedhelsinkiselys.html
].
Desde a sua criação, triplicou o número de empresas
associadas nesse círculo privado, institucionalizou a sua
relação com a Comissão Europeia, tem elaborado estudos e
propostas para estas e outras instâncias políticas, feito
acções de insinuação e influência pela Europa
fora e mesmo no exterior. Desde 1987 mantém relações de
consulta e cooperação com a congénere norte-americana BRT
- Business Roundtable [
http://www.brtable.org/index.cfm
]. Exerceu pressão sobre a constituição do mercado
comum europeu em 1992 (1985-89), a conclusão do Uruguai
round (1987-94), o alargamento a Leste da União Europeia
(1991-99), a modernização da governação
(governance) europeia (2001-03), as negociações com a
OMC (2002-03), etc. Mas cabe aqui destacar que, desde 1988, a ERT tem formulado
orientações e tem-nas transmitido sobre matérias de
legislação social (1989), legislação laboral
(1988/90), aprendizagem ao longo da vida (1992), reforma educativa (1995),
emprego, reforma da segurança social (2000-01). Não haja
dúvida da sua influência junto da Comissão Europeia e
daí sobre os governos nacionais.
O primeiro relatório da ERT que aborda a Educação é
datado de 1989; a educação e a formação eram
então investimentos de interesse vital para as empresas; lamentava que o
sector empresarial tivesse tão pouca influência sobre os cursos
ensinados e que os docentes ignorassem o contexto económico e as
necessidades da indústria. Após o que outros relatórios
foram sendo produzidos, esses já preconizando
recomendações, ou seja, os objectivos que os governos deveriam
incorporar nas suas políticas. Essas recomendações
multiplicam-se, depois, nos documentos oficiais da OCDE e da Comissão
Europeia, e encontram eco em associações patronais e governos
nacionais.
No quadro de prolongada contracção económica, o capital
necessita proceder ao reordenamento da divisão social do trabalho e das
qualificações, para o que não é decretado o fim da
massificação mas serão criadas condições
(financeiras, organizativas e pedagógicas) que conduzam à
travagem da expansão do sistema de ensino e à
centrifugação da sua função económica (as
elites altamente qualificadas versus as massas desqualificadas).
Esta política foi sendo concebida e elaborada, ao longo da década
de 1990, e foi sendo posta em prática e produzindo seus frutos. Em 1999,
na conferência Visions of a European Future: Bologna and
Beyond promovida pela European Association for International Education
(Maastricht, 2-3 December 1999), os especialistas confirmavam que
os países industrializados haviam entrado numa fase de
post-massificação e que a extraordinária
explosão da população estudantil, verificada durante os
trinta anos anteriores, havia chegado ao seu fim. Eles constatavam assim um
facto já perceptível sobre toda a União Europeia para, com
base nesse facto empírico, inelutavelmente elaborarem e
concluírem sobre a política futura, que de facto é a que
já estava a ser praticada e a produzir os seus efeitos há
vários anos, para a prosseguir e acelerar [Chantal Kaufmann,
L'enseignement supérieur en Europe: Etat des lieux
, Colloque L'Université dans la Toutmente, Bruxelles, 25 Février
2000,
http://www.cfwb.be/infosup/pg062.htm
].
Em Março de 2000 o Conselho Europeu aprova a estratégia de
Lisboa segundo a qual a União Europeia afirma a
intenção de se tornar na economia mais competitiva e mais
dinâmica do mundo, capaz de suportar um crescimento económico
duradouro. Era o clímax de um percurso, a tomada do poder
político na Europa pelos interesses económicos, aspirando
à hegemonia mundial. Essa aspiração hegemónica tem
um sentido literal, mas vale sobretudo pela sua intenção
mobilizadora dos povos europeus em torno de uma difusa
identidade europeia, num tempo em a identidade nacional (e o
patriotismo) não são mais valores úteis para as classes
dirigentes.
A concretização dessa estratégia na vertente da
Educação e Formação, é acompanhada por
deliberações nos Conselhos Europeus de Estocolmo em Março
de 2001 (
Os objectivos concretos futuros dos sistemas de educação
, COM(2001) 59final) e de Barcelona em Março de 2002 e, na vertente
vocacional, no Conselho de Ministros da Educação e
Formação em Copenhaga em Novembro de 2002. O Espaço
Europeu da Investigação já constituído, a
constituição do Espaço Europeu do Ensino Superior
até 2010, formalmente iniciado em Bolonha em 1999, já estava em
marcha. O Espaço Europeu do Ensino Superior comporta os seguintes
conceitos-chave: a capacidade de atracção mundial da
formação superior oferecida pela UE; comparabilidade entre
formações homólogas adquiridas em países distintos;
um sistema de unidades de crédito acumuláveis e
transferíveis entre estabelecimentos de ensino e países (ECTS); a
mobilidade de estudantes e professores; a cooperação na
elaboração e a integração de programas de ensino; a
organização do percurso escolar em três ciclos (um de
graduação e dois de pós-graduação); a
garantia de qualidade mediante orientações comuns relativas a
avaliação do ensino, acreditação de
habilitações profissionais e certificação de
habilitações académicas.
Esta é uma das vertentes internas de actuação
do grande capital na determinação das políticas de
configuração da força de trabalho: a
qualificação. Outra vertente interna respeita às
condições da prestação do trabalho, objecto da
legislação laboral, em que
flexibilização é a palavra-chave. Mas existe
também uma vertente externa dessa acção,
exercida através das instituições internacionais e
intergovernamentais, umas mais vocacionadas para a programação
das políticas, como a OCDE, outras vocacionadas para as impor, como o
BM/FMI e a OMT/AGCS.
AS NOVAS TECNOLOGIAS
AO SERVIÇO DA DEMOCRACIA OU DO MERCADO?
A escola continua a ser o local onde se transmite o dogma da coesão
social e política e da legitimação do Estado
democrático. Omitindo, porque não faz parte dos
conteúdos de ensino, excepto na mensagem de alguns docentes, que os
direitos dos cidadãos (eleitores) terminam onde começam os
interesses do poder económico (o que para este são os direitos
reais).
O conteúdo presente de democracia é mera construção
ideológica para assegurar, na presente etapa, a ditadura do capital
sobre o trabalho, construção eficaz particularmente dirigida
às classes intermédias e largamente assimilada. A escola
desempenha uma função chave nessa difusão e
assimilação, mas não está sozinha, a
comunicação social tornou-se mais eficaz para o capital. A escola
é ainda insubmissa e representa encargo para o Estado. A
comunicação social é há muito fonte de grossos
proventos e atinge públicos mais amplos ainda, no que parafraseando
diríamos lifewide washing. Na realidade um e outro
instrumento de controlo social deixaram de ter como objectivo a
formação de cidadãos de uma sociedade burguesa mas antes
trabalhadores e consumidores flexíveis para mercados de
trabalho e de produtos em permanente inovação de
produtos e competências e em acelerada rotação. As
tecnologias da informação e comunicação (TIC)
aparecem com um protagonismo central (mas ambivalente) neste projecto de
sociedade.
Sociedade da Informação [
http://europa.eu.int/scadplus/leg/pt/lvb/l24100.htm
] é uma política que, se não foi concebida com esse
propósito, evoluiu de facto no sentido de se tornar num dos pilares da
reforma educativa na Europa. A estratégia comunitária com vista
ao desenvolvimento das capacidades tecnológicas exigidas pela dita
sociedade da informação remonta a meados da década de 1980
e comportou duas vertentes principais. Primeiro, um programa de
investigação e desenvolvimento, que foi iniciado em 1984 com o
programa ESPRIT para as tecnologias da informação, seguido em
1986 por programas dirigidos às suas aplicações
telemáticas e pelo programa RACE para as tecnologias avançadas de
telecomunicações. Segundo, o desenvolvimento da componente
infra-estrutural das telecomunicações, que foi lançado em
1987 com o Livro Verde sobre a liberalização das
telecomunicações, apontando três objectivos principais: a
liberalização dos segmentos de mercado sujeitos a
monopólio, a harmonização do sector das
telecomunicações na Europa e a aplicação das regras
da concorrência aos segmentos liberalizados.
Estes antecedentes foram obviamente mobilizados pelos interesses empresariais
ligados às TIC, à indústria e aos operadores de
telecomunicações. Nas palavras da Comissária Edith Cresson
perante empresários europeus: «O mercado europeu é demasiado
estreito, fragmentado, o ainda reduzido número de utilizadores e de
criadores penaliza a nossa indústria (..) É por isso
indispensável tomar medidas para o apoiar e estimular. É esse o
objectivo do plano de acção
Aprender na sociedade da informação
que a Comissão adoptou em Outubro de 1996. Este tem duas
ambições principais: por um lado, ajudar as escolas europeias a
aceder o mais rápido possível às TIC, e por outro,
acelerar a emergência e abrir o nosso mercado à dimensão de
que a nossa indústria precisa» [Commission Européenne,
Rapport du Groupe de Réflexion sur l'Education et la Formation «
Accomplir l' Europe par l'Education et la Formation
», Resumé et recommandations, Décembre 1996].
O lançamento formal de uma política global designada por
sociedade da informação ocorreu na sequência do
Livro Branco da Comissão sobre "
Crescimento, Competitividade e Emprego
" publicado em 1993, o qual atribuía à sociedade da
informação um papel chave para o futuro crescimento
económico, a competitividade, a criação de emprego e uma
melhor qualidade de vida. Na sequência deste Livro Branco, foi produzido
o relatório "
A Europa e a Sociedade Global da Informação
", que apresentava recomendações para o estabelecimento de
um quadro regulamentar, tecnológico e social favorável à
sociedade da informação, sobre o qual foi adoptado, em Junho de
1994, o primeiro plano de acção da UE para a sociedade da
informação, "
A Via Europeia para a Sociedade da Informação
". Em 1999 foi aprovada uma comunicação intitulada "
eEurope - uma Sociedade da Informação para todos
", depois adoptada como plano de acção na Cimeira da Feira
em Junho de 2000 e apresentada como um dos pilares da estratégia
de Lisboa para a próxima década. Este Plano de
Acção eEuropa 2002
Uma sociedade de informação para todos
[
tp://europa.eu.int/information_society/eeurope/action_plan/pdf/actionplan_en.pdf
], enfatiza a oferta de Internet mais rápida, barata e segura, a
formação e a qualificação, e a
promoção da sua utilização. O Plano de
Acção eEuropa 2005, aprovado no Conselho de Sevilha em Junho de
2002
[
http://europa.eu.int/information_society/ eeurope/news_library/documents/eeurope2005/eeurope2005_pt.pdf
faz um balanço desse plano e aprofunda-o no que toca a infra-estruturas
necessárias, monitorização da sua execução,
coordenação de políticas e alargamento dos seus
objectivos; eGovernment, eLearning,
eCommerce, eHealth, etc. são termos que se
insinuam na política que pretende levar as TIC a toda a parte, para
todos os fins e, tanto quanto possível, a toda a gente. A difusão
maciça das TIC na Escola oferece oportunidades e riscos e coloca
questões pedagógicas cujo desfecho é ainda incerto; mais
certo é alargar entre os jovens o domínio de certas
competências básicas, ao mesmo tempo que induz padrões
não só de trabalho mas mais geralmente de comportamento e de
consumo entre esses jovens e nos respectivos lares.
A REFORMA DO ENSINO SUPERIOR NA UNIÃO EUROPEIA
E O PROCESSO DE BOLONHA
Em Lisboa, em Abril de 1997, o Conselho da Europa e a UNESCO promoveram uma
convenção conjunta em que foi adoptado o texto de uma
Convenção sobre o reconhecimento de qualificações
relativas ao Ensino Superior (de acesso e de graduação) na
Região Europa. No ano seguinte (Setembro 1998) e já no
âmbito da União Europeia, o Conselho de Ministros adoptou uma
Recomendação (Nº 561/98) para a cooperação na
garantia de qualidade no Ensino Superior. Entretanto, a
Declaração da Sorbonne (Maio 1998), da iniciativa da
França, Alemanha e Itália, havia já antecipado a
criação de uma Área Europeia de Ensino Superior, proposta
que foi depois reformulada e retomada na Declaração de Bolonha
subscrita em Junho de 1999 pelos Ministros da Educação da
União Europeia [
http://www.ntb.ch/SEFI/bologna-dec.html
], e culminou com a Declaração de Praga em Maio de 2001
(subscrita já pelos países da futura União Europeia
alargada) [
http://www.ntb.ch/SEFI/milestones/Prague_Comm_engl.pdf
].
Em conferência plenária, na referida Conferência da EAIA,
Guy Haug caracterizou a situação do ensino superior na Europa e
expôs o projecto do processo de Bolonha (assinado alguns meses antes, a
19 de Junho de 1999) [Guy Haug,
Keynote address
, Visions of a European Future: Bologna and Beyond,
http://www.eaie.nl/about/comments/speech.html
]. Com o propósito de contextualizar este processo, enunciou
então as principais mudanças em que esse processo se inseriria;
procurando desconvolucionar o seu discurso, procuramos também resumi-lo:
i) a emergência de um real mercado de trabalho europeu e a
contradição entre elevadas taxas de desemprego de licenciados e a
carência de jovens altamente qualificados em domínios chave; ii) o
fim da forte expansão quantitativa nas universidades e a expectativa de
aceleração da competição entre elas, nomeadamente
através da diversificação das suas ofertas; iii) a
emergência de novos fornecedores de ensino superior, muitos
dos quais estrangeiros, que entrarão em competição se o
suporte ao crescimento do ingresso no ensino superior for posto em causa; a
responsabilização das universidades pela sua
aplicação do financiamento público na perspectiva de este
ser reduzido. Nesse enunciado encontramos causas e efeitos misturados; toma-se
a observação do processo já em curso para justificar e
fixar objectivos para o seu prosseguimento. Noutros contextos
técnico-políticos o termo utilizado para descrever o processo de
Bolonha seria o cenário business as usual. E este é:
i) renuncia à ideia de ensino público como bem social e sua
substituição pela ideia de atribuição
prioritariamente económica ao ensino superior; ii) redução
da responsabilidade do Estado na oferta de ensino público; iii)
promoção da privatização,
internacionalização e mercantilização progressiva
do ensino superior.
O processo de Bolonha, tem sido, como se verifica, um processo com
diversificados interventores e com geometria variável, mas o seu sentido
prossegue com aparente segurança. Para melhor compreensão, ele
deve ser enquadrado num processo mais vasto que abarca todas as actividades de
ensino e formação no seio da Europa e igualmente à escala
mundial, pois que na realidade tem a ver com a presente fase de desenvolvimento
do sistema capitalista imperial. A mudança de ênfase do Ensino
para a Aprendizagem; da Educação para a Formação; a
nova aprendizagem ao longo da vida; e a
diversificação de modalidades de aprendizagem que se pretende
sejam certificadas, são mudanças que têm
acelerado na última década. Não seria essencial introduzir
novos termos, mas novos termos facilitam a introdução de novas
políticas. É subtil, mas perigosamente eficaz: a sociedade deixa
de ter o dever de educar e ensinar os jovens e os adultos; são estes que
têm o dever de obter (se puderem) aprendizagem; o termo
direito esvanece-se.
Os conceitos sociedade do conhecimento e sociedade da
informação, surgidos em meados da década de 1990,
foram igualmente operativos para avançar novas
políticas: sociedade passa a ser o que nessas
definições se sugere, pretendendo fazer desaparecer para o fundo
do palco o que se não diz mas se quer atingir, a relação
de trabalho e o seu conteúdo. Tal sociedade seria então a
produção e a aquisição de conhecimento, até
mesmo a sua comercialização. A tónica aparece nos
conteúdos, nos meios e em várias políticas governamentais
convenientemente orquestradas. Os poderes económicos não precisam
expor-se, embora sejam eles quem fornece (com vastos lucros) as
infra-estruturas materiais e quem extrai (não se falando mais em
emprego) as mais valias do trabalho. Os objectivos sociais reduzem-se à
disponibilidade quantitativa e qualitativa de força de trabalho, com
suas elites e seu exército flexível de trabalhadores
precários.
Também a generalização do velho conceito de ensino
à distância, apoiado agora na integração
maciça das TIC (tecnologias da informação e
comunicação) no processo ensino-aprendizagem, em particular na
expansão avassaladora do eLearning através na
Internet, eis mais inovações metodológicas (de base
técnica) que facilitam, flexibilizam e fragmentam esse proposto novo
tipo de relação professor-aluno mediada por produtos de ensino e
de aprendizagem transaccionáveis à volta do mundo.
O processo de Bolonha surge com potencialidades bivalentes. A
fragmentação do ensino e da aprendizagem em produtos
sujeitos a reintegração em termos normalizados; a tendencial
despersonalização do processo ensino-aprendizagem, por
força de um novo contexto convivencial viabilizado (não imposto)
pelas TIC; a consequente desmaterialização de (algum)
conhecimento (contingência que não necessidade) da
inacessibilidade de suportes materiais concretos. Estas são evidentes
ameaças que o processo de Bolonha poderá viabilizar e
provavelmente determinará um pouco por todo o mundo.
A REFORMA DO ENSINO SUPERIOR EM PORTUGAL
Em Portugal, o CRUP manifestou a sua adesão à
declaração de Bolonha em Abril de 2001 e o mesmo fez o CNAVES em
Fevereiro de 2002. A adesão ao processo de Bolonha tem sido lenta, pouco
convicta e acrítica. Como exemplo, segundo o CNAVES [
Parecer n.º 5/2002
, Diário da República II série, 25 Março 2002,
71:5682-3] «Os objectivos de transparência, comparabilidade,
mobilidade, empregabilidade e competitividade dos ensinos superiores são
de uma pertinência que dispensa justificação». Para
tal contribuirá a debilidade do governo em política educativa;
como também o insuficiente conhecimento e a desconfiança da
maioria dos agentes de ensino (instituições, docentes e
estudantes), face a um processo aparentemente alheio e pré-determinado
no seu desenlace. De facto, a sociedade portuguesa, aprisionada pelas grandes
opções do grande capital, pela integração europeia,
pela desintegração sócio-económica, não
dispõe actualmente de um projecto nacional consonante com o seu projecto
constitucional, para o qual se mobilize.
Corresponde a uma significativa corrente de opinião e a uma parte
substantiva da presente realidade, a análise explanada por Luís
Vicente [
Sorbonne, Bolonha, Praga
Notas para uma leitura crítica
, Vértice n.º 112, Julho-Agosto 2003]. O autor defende duas teses:
as declarações da Sorbonne, Bolonha e Praga visam condicionar o
ensino superior aos interesses do capital financeiro e visam a
privatização do ensino superior público. Ao enquadrar essa
explicação afirma: «
para a burguesia o Estado tem sido
uma necessidade imperativa. É-o, em primeiro lugar, enquanto instrumento
de repressão. É-o, em segundo lugar, enquanto detentor de
sectores que, apesar de não rentáveis, são fundamentais
à própria dinâmica da economia capitalista (...) E, enfim,
é-o em terceiro lugar porque, nesta perspectiva, o Estado é
tutelado politicamente por um governo que, geralmente, não passa de um
comité de negócios dos homens da finança.» Ao
concluir a análise afirma: «
é necessário
reconhecer que há hoje no mundo uma luta titânica para orientar a
economia de acordo com prioridades de grupos minoritários. Contudo,
existe também uma enorme pressão para colocar e desenvolver
formações económicas que respondam com acerto ao interesse
da maioria do povo. Portanto, no ensino essa tensão está presente
de forma palpável (
) A expropriação capitalista do
ensino público, seria realmente uma mudança num certo
status quo, mas com um sentido retrógrado. O que se pretende
é, de facto, uma profunda reconfiguração do ensino
público português que habilite os estudantes a serem criadores de
um país avançado, consciente, democrático (
) O
futuro do ensino não está, portanto, pré-determinado como
possa, à primeira vista, parecer
»
Em Portugal, a actual proposta de lei que estabelece as bases do
financiamento do ensino superior, pelo governo submetida à
Assembleia da República em Julho de 2003, na respectiva
exposição de motivos afirma-se claramente: «Reconhecendo-se
que a expansão do Ensino Superior atingiu o seu limite (
) na
presente proposta de lei precisam-se os critérios de financiamento
público das actividades dos estabelecimentos de ensino não
público». Acresce que a proposta é notoriamente omissa em
relação a outras missões cometidas aos estabelecimentos de
ensino superior, para além do ensino de primeiro ciclo ou
seja de licenciatura; ciclos de pós-graduação,
investigação científica, extensão e cultura, foram
omitidos embora sejam também importantes na generalidade das Faculdades
e Escolas Superiores públicas. É notoriamente omissa
também, em relação a novas metodologias e modalidades de
ensino, como é notoriamente o caso do ensino à distância,
ensino pós-secundário, acções de
formação contínua, etc.
E a actual proposta de lei da autonomia do ensino superior afirma
que o Estado garante o direito de criação de estabelecimentos
privados e considera o
«
regime de autonomia dos estabelecimentos de ensino superior detidos
por entidades instituidoras particulares e cooperativas
», mas depois argumenta «
o direito de propriedade privada e o de direcção de meios de
produção
.» Primeiro, o exercício do ensino privado é salvaguardado
como exercício do direito fundamental da liberdade de ensino, conquanto
em relação ao ensino público esse direito e essa liberdade
não sejam afirmados. Na realidade, à luz da
Constituição da república, o ensino público
é um direito universal e tendencialmente gratuito, enquanto o ensino de
iniciativa privada é uma liberdade. Segundo, onde se exigiria
política educativa surge política económica, e em lugar da
salvaguarda de garantias, direitos e liberdades fundamentais, em que o acesso
universal a todos os graus de ensino se inscreve, aparece antes a
subordinação de uma função social do Estado a
interesses privados e liberalidade do Governo perante a
privatização de bens e serviços públicos.
A proposta é tão generosa face aos interesses privados, que chega
ao ponto de admitir que o registo de estatutos dos estabelecimentos superiores
privados possa acontecer por deferimento tácito. Bem como que o ensino
superior privado possa combinar actividades de docência com
investigação, forma ínvia de admitir que os respectivos
estabelecimentos possam não ter outras actividades que não a
estrita transmissão de conhecimentos e de ideias, meros intermediadores
portanto, embora com estatuto formalmente comparável a uma verdadeira
universidade pública. E se é certo que afirma estar o ensino
superior privado sujeito à
fiscalização
do Governo, omite pronunciar-se sobre meios e fins e referências
explícitas à sua avaliação, comparabilidade e
certificação dos ensinos.
Deveremos concluir que o actual pacote legislativo com que o
governo português pretende reformar o ensino superior procura muito
claramente abrir caminho ao cumprimento das grandes linhas da reforma educativa
ditada pelo grande capital: desregulamentação,
privatização, mercantilização,
transnacionalização, etc., tendo em vista reconfigurar a
força de trabalho com sua elite e seu exército flexível de
trabalhadores precários, bem como rentabilizar em lucros privados um
importantíssimo sector de actividade.
10/Nov/2003
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
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