Flexibilização do trabalho, flexibilização do
ensino,
o mesmo objectivo do capital
por Rui Namorado Rosa
Contrariando os esforços manipuladores do grande capital através
dos governos submissos e da comunicação social ao seu
serviço, os professores, os estudantes, as comunidades educativas em
geral, têm a percepção ou mesmo a clara compreensão
do actual processo em marcha contra o bem comum que é a Escola e o
Ensino Público. Por isso resistem e vão à luta. É o
que temos observado ao longo dos anos e presentemente, aqui e ali por todo o
mundo, agora com mais intensidade em Portugal também. É uma luta
de resistência e prolongada cuja razão de ser e cujos objectivos
importa reflectir.
APRENDIZAGENS E FORMAÇÃO AO LONGO DA VIDA
COM A FLEXIBILIZAÇÃO À VISTA
A flexibilização é um dos conceitos chaves do
discurso neoliberal. Tem como alvo a maioria da população menos
qualificada, que ela pretende aceite como natural e boa a precariedade dum
emprego incerto e indefinido. A aprendizagem ao longo da vida
é um outro conceito chave, com aquele intimamente relacionado. Tem como
alvo a mesma população, agora para a manter como um enorme
exército em condições de vender a todo o momento o seu
trabalho, submisso e aplacado. Assim não surpreende a frequência
com que documentação e acções relacionadas com a
aprendizagem ao longo da vida se têm sucedido nos últimos anos, na
procura ainda de uma formulação ajustada e mais convincente:
formação contínua
, ou
permanente
, ou
ao longo da vida
e, agora,
aprendizagem ao longo da vida
, insinuando que é ao trabalhador que compete saber actualizar-se para
que adquira ou mereça empregabilidade [OCDE,
Politiques du marché du travail: nouveaux défis. Apprendre
à tout âge pour rester employable durant toute la vie
. Réunion du Comité de l'emploi, du travail et des affaires
sociales, Paris 14-15 Octobre 1997, OCDE/GD(97)162,
http://www.dglive.be/arbeit/Equal/OECDlebenslangesLernen.pdf
; Commission Européenne,
Les objectifs concrets futurs des systèmes d'éducation
, Rapport de la Commission, COM(2001)59 final, Bruxelles, le 31.01.2001,
http://www.info-europe.fr/doc02/233/g000e372.pdf
].
Formação ao longo da vida! Mas não, não é
para levar o conhecimento a todos e a todo o momento, os tesouros da literatura
e das artes, as descobertas da ciência e da técnica, a filosofia;
não; são essencialmente três coisas:
desregulamentação, adaptabilidade e
responsabilização [Nico Hirtt,
Les trois axes de la marchandisation scolaire
, Etudes marxistes n°56, décembre 2001,
http://users.skynet.be/aped/Analyses/Articles2/Trois%20axes.htm
,
, http://users.skynet.be/aped/Analyses/Articles2/Trois%20axes.htm
,
http://www.agl.ucl.ac.be/temp/ext/dossiers/enseignement/marchandisation/
].
Os programas de ensino secundário, sobretudo preenchidos de saberes e
símbolos culturais e destinados à legitimação das
relações sociais preexistentes, sobreviveram a época de
massificação do ensino sem descaracterização
profunda, ficando progressivamente inadaptados à elevação
do nível de formação profissional de massas.
A partilha de uma cultura comum deixa de ser tomado como o mais importante,
dando lugar à necessidade de adquirir competências, a
capacidade de aceder a novos saberes e de os aplicar em situações
novas. Mas também aqui não nos iludamos. Sem dominar as bases dos
novos saberes, a que aliás deverão aceder ao longo da
vida, o ensino secundário de massas está agora mais
vocacionado para a aquisição dessas competências sobretudo
instrumentais numa perspectiva de utilidade económica. Pretende-se que
os futuros trabalhadores aprendam a mover-se num ambiente dominado por
tecnologias materiais e organizacionais, capazes de dialogar com uma
máquina e com uma hierarquia, que se habituem a adaptar a rápidas
mudanças de instrumentos e de ambientes. Esses são os
ingredientes que se espera de um trabalhador num mercado de trabalho
flexível. Eles mesmos deverão ter o desembaraço de
utilizar eficazmente as tecnologias da informação e
comunicação para, em ambientes multimédia ou
através da Internet e acedendo a modalidades de ensino à
distância, adquirirem novas competências num processo de
actualização permanente (incluindo o que seriam tempos livres) e
incessante (ao longo da vida) em que eles deverão ser os próprios
investidores e os próprios mestres. Cada um deverá se assim capaz
de provar a sua competitividade profissional, aferível em termos de
empregabilidade e promover o seu auto-emprego. No dizer da
Comissão Europeia: «Na sociedade do conhecimento, os
próprios indivíduos são os principais protagonistas
(
) os indivíduos devem ter a vontade e os meios de tomarem os seus
destinos nas próprias mãos». O proletário do
século XIX é representado no início do século XXI
transfigurado em micro-empresário, e a relação de trabalho
entre mestre e aprendiz transfigurada em auto-aprendizagem e aprendizagem
intergeracional não formal. Quer dizer, para além da aprendizagem
formal, a informal, a intergeracional e a compensatória ganham agora,
neste novo quadro conceptual, maior ou novo sentido e importância.
eLearning, a região de aprendizagem, a comunidade da
aprendizagem e o mediador de aprendizagem surgem como novos conceitos e novos
instrumentos no processo de ensino ou antes em sua pretensa
substituição [Commission Européenne,
Mémorandum sur l'éducation et la formation tout au long de la vie
, SEC(2000) 1832, Bruxelles, le 30.10.2000; Communication
Réaliser un espace européen de l'éducation et de la
formation tout au long de la vie
, COM(2001) 678final, Bruxelles, le 21.11.2001;
http://europa.eu.int/comm/education/policies/lll/life/index_fr.html
;
http://europa.eu.int/comm/education/policies/lll/life/communication/com_pt.pdf
].
O resultado final será uma económica (para o capital)
selecção de competências e a sua flexível
mobilidade, produzidas por via de puro darwinismo social. O capitalismo
é desumanizante.
Como é que isto surgiu e como será? Foi em 1995 que a European
Round Table (confederação de grandes empresários)
formalizou a sua proposta de reforma educativa e afirmou
então «Os métodos e instrumentos de educação
deveriam ser modernizados, particularmente para encorajar a auto-aprendizagem
(
) na escola e em casa (
) cada aluno deveria a prazo dispor do seu
próprio computador.» Esta proposta encontraria então
condições favoráveis para avançar.
Oiçamos o relato expressivo desse avanço feito por Gérard
de Sélys [
Education et technologies: enjeux et défis pour le secteur de
l'éducation publique
, Internationale de l'Education, Table ronde de l'IE pour les pays de l'OCDE,
Helsinki, 8-10 Octobre 2000,
http://www.ei-ie.org/educ/french/fedhelsinkiselys.html
]: «Atenção, há um obstáculo. O ensino
é regido pela lei em todos os países, incluindo na União
Europeia. Não pode ensinar quem quer. Pânico. Então a ERT e
a Comissão debruçam-se sobre essa questão para encontrar
resposta. Ei-la
: O Tratado da CEE prevê uma
acção da Comunidade no domínio da educação e
da cultura. Este dispositivo limita as competências nacionais. A
educação à distância é explicitamente citada
como um dos objectivos da acção da Comunidade (artigo 126,
parágrafo 2, alínea 6 do Tratado de Maastricht). O ensino
privado à distância é um serviço. Ora A
livre prestação de serviços está garantida
pelo artigo 59 do tratado da CEE e constitui uma das liberdades fundamentais do
mercado comum. (
) É portanto possível fazê-la
prevalecer contra as restrições impostas pelos Estados
membros Assunto arrumado. (
) Porém novo alerta, há um
outro problema. A atribuição de diplomas e certificados de
conclusão de estudos é também regida pelas leis nacionais.
E os empresários não podem esperar que todas as leis sejam
revogadas ou revistas. Levaria anos. Então, uma vez mais, eles
põem-se ao trabalho com a Comissão. E esta vai conceber a
introdução de um cartão de acreditação
de competências (skill accreditation card). A ideia
é simples. Imaginemos que um jovem acede a vários fornecedores
comerciais de ensino através da Internet e adquire assim
competências em técnica, em gestão ou em
línguas. À medida da sua auto-aprendizagem, os fornecedores
creditá-lo-ão dos conhecimentos e competências que ele
adquiriu. Esta acreditação será feita
electronicamente e será contabilizada numa disquete (card)
que ele terá introduzido num computador ligado aos seus fornecedores.
Quando procurar um emprego, introduzirá a disquete no computador e
ligar-se-á a um sítio de oferta de emprego gerido por
uma associação patronal. O seu perfil será examinado por
um programa e, se as suas competências corresponderem
às que um empregador procura, ele será recrutado. Os diplomas
já não são necessários! (
) Em 29 de Fevereiro
de 1996, a Comissão lançou um concurso de ofertas para
operacionar a segunda fase anual do programa Leonardo Da Vinci. Na
memória informativa distribuída aos candidatos, intitulada
Sistema Europeu de Acreditação de Competências,
ESAS, a Comissão explica: A acreditação e a
validação das competências utilizarão um sistema de
programas interactivos ligados por uma rede (Internet) a um servidor que
fornecerá testes interactivos a pedido e avaliará os resultados e
validará o nível testado (
) Este nível (
)
registado num cartão pessoal (
) e estes cartões pessoais
tornar-se-ão o verdadeiro passaporte para o emprego.»
OPORTUNIDADES CONTRADITÓRIAS DO ENSINO À DISTÂNCIA E
ONLINE
A Internet parece ser a tecnologia da informação e
comunicação - TIC - mais promissora para concretizar
rápida e amplamente certos objectivos já identificados: o ensino
à distância, a aprendizagem ao longo da vida e a
comercialização dos serviços de ensino, em
competição com o processo geral da Educação. Essa
uma boa (má) razão para tanto se focar a atenção
sobre esta TIC em particular, remetendo para um plano mais recuado a
importância de outras TIC, omnipresentes e não menos poderosas,
como as telecomunicações móveis, a
observação e a navegação via satélite, a
automatização e robotização crescentes das linhas
de fabrico, etc., que nos libertam e nos vigiam, nos empregam e desempregam,
etc.
Nos EUA, alguns grupos financeiros constituíram a Western Governor's
University, com a colaboração da IBM e da Microsoft; uma outra
empresa, Kaplan Educational Centers, há muito conhecida pelos seus
serviços no apoio à preparação de exames,
constituiu a Concord University School of Law, para oferecer
formação exclusivamente através da Internet. Após o
que algumas grandes universidades Columbia, Stanford, Chicago, London
School of Economics firmaram contratos com uma empresa especializada em
difusão pedagógica via Internet para passarem a oferecer
também formação à distância nos
domínios da gestão, finança e negócios. Por
enquanto estas formações não são reconhecidas e
certificadas; algumas entidades, como o MIT, até oferecem esses
serviços gratuitamente. Um estudo da International Data Corporation
prevê nos EUA um rápido crescimento do número de estudantes
que farão a sua aprendizagem
online
e das instituições de ensino superior que
oferecerão essa modalidade de ensino [Michael Barker,
E-education is the New New Thing
, Edinvest, primeiro trimestre 2000,
http://www.wiredcottages.com/e-commerce/eeducation.htm
].
Jones International Ltd. detém uma posição de destaque.
Instituiu a Jones International University, uma instituição
pioneira em ensino superior exclusivamente
online
, já acreditada desde 1999, e instituiu também a GATE - Global
Alliance for Transnational Education, uma empresa especializada na
avaliação de qualidade e acreditação de ensino
superior transnacional, recentemente doada à US Distance Learning
Association, uma associação especializada no fornecimento de
serviços no âmbito da aprendizagem à distância.
[GATE,
Press release
, August 12, 2003,
http://www.edugate.org/usdla.htm
].
O ensino
online
é um instrumento muito versátil e poderoso. Importa
descodificar e analisar a diversidade de motivações que animam os
protagonistas em presença, a começar pelas
corporações transnacionais -CTN - constituídas e em
processo de constituição nos domínios das
telecomunicações, da indústria multimédia, do
comércio electrónico
(eCommerce)
e do ensino electrónico
(eLearning)
e pelos governos e instituições internacionais; cabe
também aos educadores e investigadores, embora em contracorrente,
extrair as virtualidades da Internet para efeitos pedagógicos
construtivos. [Chris Werry,
The Work of Education in the Age of E-College
, First Monday, volume 6, number 5, May 2001,
http://www.firstmonday.dk/issues/issue6_5/werry/
].
No ensino privado empresarial, como a experiência noutros sectores
empresariais tem mostrado, os grupos mais poderosos (incluindo os mais
precoces) seguem estratégias agressivas para conquistarem
posições monopolistas, ressarcindo-se amplamente dos seus
encargos passados com grossos proveitos futuros. Pelo caminho fica a
Educação ela própria, pois o que se oferece e é
adquirido são competências específicas e
padronizadas, centradas numa relação homem-máquina (uma
dada máquina), cultural e socialmente constrangedora.
Inovações tecnológicas, potencialmente libertadoras de
tempo de trabalho necessário, conduzem pelo contrário, na
economia de mercado capitalista, ao empobrecimento pessoal e social, à
desumanização do trabalhador. E a uma subtil mas poderosa
dependência funcional e económica do indivíduo face
à máquina, cuja actualidade ou obsolescência é
manipulada pelo grande capital, como os demais bens de consumo. A escolha que
se nos quer oferecer é entre a infor-exclusão, a que
a maioria não escapa, e a infor-dependência, em que os
demais ficam aprisionados.
A oferta de ensino
online
nos EUA permitiu o crescimento acelerado do número de
crianças que seguem os seus estudos em casa, mesmo aos níveis
primário e secundário
( home schooling),
anteriormente reservado aos meios rurais isolados e às
famílias abastadas que podiam pagar tutores privados, mas agora alargado
a um universo muito mais amplo. O sub-financiamento do sistema público e
a conflitualidade social não resolvida induzem muitas famílias
norte-americanas a optar por essa modalidade de ensino para as suas
crianças. Uma solução de recurso em alternativa à
escolarização, com custos financeiros para quem os pode suportar
e com custos sócio-culturais irreversíveis para as
crianças que dele beneficiam. Estamos a referir-nos aos EUA,
mas é porque o processo está aí mais avançado e
começa a chagar à Europa também. Como será esse
homem novo que resultará dessa modalidade de
Educação em que a socialização (?) é mediada
pela máquina? Os Antropólogos dirão.
DESREGULAMENTAÇÃO A CAMINHO DA ECONOMIA DE
MERCADO
A OCDE tem enunciado sistematicamente as orientações para o
ensino, de acordo com as exigências da nova ordem neoliberal, que os
governos deverão depois adoptar, confortados com a autoridade que emana
dessa instância internacional constituída pelos países
capitalistas mais desenvolvidos. Transcrevemos uma significativa recolha de
citações feita por Hirtt [Nico Hirtt,
Les trois axes de la marchandisation scolaire
, Etudes marxistes n°56, Bruxelles, novembre 2001,
http://users.skynet.be/aped/Analyses/Articles2/Trois%20axes.htm
]. Ei-las: «
(o benefício do ensino em alternância)
é aprender a tornar-se parte de uma equipa de trabalho, a aceitar
receber ordens e a trabalhar com os outros. Também compreender melhor o
ritmo do trabalho e a estar apto a corresponder a exigências diferentes
nas etapas sucessivas de uma carreira» [OCDE,
Redéfinir le curriculum: un enseignement pour le XXIe siècle
, Paris 1994]; outras: «
o sistema escolar deve esforçar-se
por reduzir o seu tempo de resposta fazendo uso de fórmulas mais
flexíveis que aquelas da função pública, a fim de
criar ou encerrar secções técnicas ou profissionais,
utilizar pessoal competente e dispor dos equipamentos necessários»;
«As múltiplas evoluções tornadas necessárias
pelas transformações económicas e tecnológicas
já não permitem aos sistemas escolares nem aos poderes
públicos assumirem sozinhos a formação inicial e a
formação contínua da mão-de-obra (
) (é
necessário) encontrar uma partilha de responsabilidades que, de acordo
com as particularidades dos países, garantam ao mesmo tempo a qualidade
e a flexibilidade dos ensinos e das formações»
[l'Observateur de l'OCDE, n°193 Avril-Mai 1995]; «
(quanto
à escola pública, esta deverá) assegurar o acesso à
aprendizagem àqueles que nunca constituirão um mercado
rentável e cuja exclusão da sociedade em geral se
acentuará à medida que outros continuarão a
progredir» [Adult learning and Technology in OECD Countries, OECD
Proceedings, Paris, 1996] e ainda «
admite-se que a aprendizagem se
desenrole em contextos múltiplos, formais e informais (
) a
globalização económica, política e cultural torna
obsoleta a instituição implantada localmente e ancorada numa
cultura determinada sob o nome de Escola e ao mesmo tempo que ela, o
docente» [OCDE, Analyse des politiques d' éducation, 1998]. Ver
ainda, sobre o mesmo assunto, a colectânea APED,
L'OCDE et l'enseignement
[
http://users.swing.be/aped/Dossiers/D0003OCDE_ens.html
]. Estas orientações surgem na documentação da OCDE
mas esta instituição internacional é apenas um
agente facilitador, uma correia de transmissão, das
orientações que partem das agremiações
empresariais, designadamente a ERT na Europa, que desde 1989 tem produzido
doutrina sobre Educação, para virem a ser acolhidas depois pela
Comissão Europeia (no caso da Europa) e finalmente impostas nos estados
membros da União.
Das sucessivas recomendações resulta uma
debilitação da centralidade da Educação como
objectivo da Escola para a colocar a reboque de uma utilidade estritamente
empresarial. Ao mesmo tempo, observa-se na União Europeia em geral a
tendência para a descentralização da
administração da rede escolar, dos governos centrais para
níveis intermédios, até à maior autonomia escolar
(importa ver em quê), mas invocando a sua acrescida
responsabilização (importa ver em quê também);
assiste-se igualmente ao questionamento da capacidade do sistema escolar e das
autoridades públicas para assegurarem os seus objectivos, a par da
exaltação dos méritos das aprendizagens informais e em
alternância realizadas fora de portas. Por um lado dir-se-ia
que se confere maior centralidade às escolas, por outro verifica-se que
se lha retira; o resultado final é uma séria ameaça
à credibilidade da Escola pública no presente contexto e uma
generosa facilitação da privatização do ensino; as
instituições de ensino privado comercial estão atentas e
agradecem.
A flexibilização do emprego e a rotação
rápida de posto de trabalho que o neoliberalismo exige implica com o
presente quadro de qualificação e da sua
certificação. Este está ajustado ao quadro de
relações de trabalho conquistado durante o período de
expansão económica e é agora um obstáculo aos
actuais desígnios do capital. O capital pretende, como se disse, a
flexibilização e rápida rotação da
força de trabalho, libertado portanto da actual rigidez dos
processos de negociações colectivas, acordos sociais,
regulamentação dos direitos laborais e segurança social.
Ora sendo uma questão distinta, a qualificação e
certificação profissional são em si mesmas
constrangimentos para a flexibilização e
desregulamentação que o capital pretende alcançar.
Daí a retórica a justificar a flexibilização dos
próprios processos de qualificação. Aparece então
também a flexibilização nos percursos escolares, assim
como a mobilidade (uma e outra não só por boas mas por más
razões também), a modularização das aprendizagens,
a multiplicação de modalidades de aprendizagem (formal e
informal) e de certificações de competências. Este contexto
será mais favorável à disponibilização e
exploração de uma força de trabalho flexibilizada e em
rápida rotação, como o capital pretende impor.
A EDUCAÇÃO COMO MERCADORIA
«Um acordo global está a ser negociado para permitir às
empresas transnacionais apoderarem-se dos serviços públicos de
todo o mundo independentemente da vontade dos povos. Se entrar em vigor,
isso significará a extinção do sector público»
[Maude Barlow,
GATS: a última fronteira da globalização
, 2002,
http://resistir.info/ambiente/barlow_gats.html
]. As despesas anuais com Educação somam perto de US$ 2
triliões (milhões de milhões) a nível mundial
[Cynthia Guttman, Éducation: un marché de 2 000 milliards de
dollars, Courier de l'UNESCO, Novembre 2000,
http://www.unesco.org/courier/2000_11/fr/doss0.htm
], ou seja, um montante comparável com o de transacções
de combustíveis fósseis e duplo do mercado automóvel.
É obviamente um alvo muito apetecível para o capital naquilo que
tiver de rentável no seu ponto de vista. A liberalização
da Educação contextualiza-se no processo mais amplo da
privatização dos serviços públicos, sendo
não o mais importante em volume de negócio (pois que a
Saúde é ainda mais volumoso) mas o mais ambicioso pelo seu
alcance em vertentes múltiplas.
A estratégia para atingir esse objectivo compreende necessariamente a
redução do financiamento público dos sistemas de ensino, a
desregulamentação deste serviço público e a
promoção de conceitos de formação ou aprendizagem
estranhos aos princípios e práticas tradicionais das escolas.
Segundo um relatório do banco de negócios norte-americano Merill
Lynch, o mercado da educação e formação representa
10% do PIB da economia dos EUA, embora (só) menos de 0,2% do
volume do mercado nacional de valores imobiliários
(stock market
)
- US$16 mil milhões em US$10 triliões. Por
comparação, o sector da saúde representa 14% do PIB e uma
fracção comparável do mercado de valores
imobiliários. O relatório extrai a conclusão que existe um
enorme potencial de crescimento do peso imobiliário e de
geração de receitas no sector educativo [Chris Werry,
The Work of Education in the Age of E-College
, First Monday, volume 6, number 5, May 2001,
http://www.firstmonday.dk/issues/issue6_5/werry/
]. Obviamente tem-se em vista a privatização maciça do
sistema de ensino em diversas das suas inúmeras vertentes. Também
de acordo com a Merril Lynch, o sector do ensino oferece agora as
características oferecidas pelo sector da saúde há trinta
anos: um mercado enorme e fragmentado, com baixa produtividade, com
insuficiente nível tecnológico (oferecendo amplas oportunidades
de actualização), com insuficiências de gestão
profissional e com baixa taxa de capitalização. A
situação estaria madura para uma grande operação de
privatização: a opinião pública estaria já
preparada para aceitar essa operação como boa e as escolas
já bastante carenciadas de financiamento, os estratos sociais mais
afluentes só por si constituiriam já uma enorme base de
financiamento para o ensino privatizado. Em particular, o negócio do
ensino
online
via Internet é não só já volumoso como
promete um crescimento acelerado Ainda nos EUA, em 1998 o volume do
negócio da Educação nesta modalidade atingia já US$
82 mil milhões/ano (sendo 24 em produtos, 30 em serviços e 28 em
receitas escolares) [Michael Barker,
E-education is the New New Thing
, Edinvest, primeiro trimestre 2000,
http://www.wiredcottages.com/e-commerce/eeducation.htm
]. A França ocupa o segundo lugar neste negócio a
nível mundial graças à sua posição
monopolista na comunidade de países francófonos. No Reino Unido,
em 1996 foi criado o índice bolsista UK Education and Training
Índex que tem demonstrado crescimento acima da média,
crescimento explicado pelos investimentos em centros de formação
em novas tecnologias e em computadores, pelos partenariados
universidade-indústria e pela subcontratação de
serviços educativos [Nico Hirttt,
Les trois axes de la marchandisation scolaire
, 2001,
http://users.skynet.be/aped/Analyses/Articles2/Trois%20axes.htm
].
A CAMINHO DA PRIVATIZAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO GLOBAL
DA EDUCAÇÃO
Para a cimeira de Seattle (Novembro-Dezembro 1999), a OMC havia preparado um
estudo (com colaboração da GATE - Global Alliance for
Transnational Education, OCDE e de funcionários dos governos
anglo-saxónicos que acolhem os principais provedores de ensino a
distância.) sobre as perspectivas da progressão da
liberalização da Educação. Aí se registava o
rápido crescimento das aprendizagens à distância e a
multiplicação de parcerias entre instituições de
ensino e de empresas dos sectores das TIC, multimédia e editorial.
Aí se louvava a desregulamentação do ensino superior em
progresso na Europa e felicitava os governos que haviam já encetado o
caminho de reduzir o financiamento público e a suscitar mecanismos de
financiamento alternativo, em aproximação ao mercado.
Por fim, a OMC apontava numerosos obstáculos que faltava ainda eliminar
até alcançar a liberalização dos serviços
educativos, particularmente a persistência de monopólios
educativos estatais e de situações de financiamento
público predominante, assim como os obstáculos colocados ao
investimento directo estrangeiro de fornecedores de serviços
educativos. Porém, e sob as críticas e
manifestações por parte de numerosas associações
sindicais, estudantis e cívicas, a cimeira de Seattle resultou num
insucesso temporário para os interesses do capitalismo. As
negociações sobre a abertura da Educação à
livre transacção internacional foram retomadas então no
âmbito do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (AGCS) em
Genebra. [Nico Hirttt,
Les trois axes de la marchandisation scolaire
, 2001,
http://users.skynet.be/aped/Analyses/Articles2/Trois%20axes.htm
]. Agora, a ofensiva prossegue no quadro do AGCS, impulsionada pelos poderosos
consórcios anglo-saxónicos já constituídos neste
negócio, liderada pelos EUA e com a cumplicidade activa da
União Europeia. [Susan Robertson,
Iludindo e Configurando a Economia do Conhecimento
, A Página da Educação n.º 119, Janeiro de 2003,
http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=2220
]. Logo em Dezembro de 2000 os EUA entregaram à OMC um pacote de
propostas relativas ao fornecimento de serviços pelos EUA, incluindo um
conjunto de 17 pontos no âmbito do ensino superior, tendo em vista a
abertura dos mercados nacionais. E em 23 - 24 de Maio de 2002, em Washington, a
OCDE e o Banco Mundial organizaram um encontro para tratar do comércio
de serviços educativos e decidiram passar a financiar
instituições que tenham por objectivo defender a
comercialização do ensino superior.
O Memorando da European University Association datado de 21 de Maio de 2001 [
http://www.esib.org/commodification/documents/EUA-GATS.pdf
] descreve o processo AGCS, assinala os termos não participativos em que
ele é conduzido, avalia as implicações da
liberalização do comércio em ensino superior em curso na
Europa e comenta a sua relação com o processo de Bolonha. Em
jeito de síntese afirma: «
Existe a possibilidade de estas
reformas comprometerem o tradicional sistema público democrático
operado por entidades responsabilizadas. Por outro lado, muitos argumentariam
que a liberalização comercial cria um sistema educativo de
natureza empresarial e dependente do comportamento do mercado. Contudo, ao
mesmo tempo, a verdade é que os serviços educativos já
são oferecidos em base comercial e existem operadores europeus
interessados em promoverem serviços educacionais no
estrangeiro
» Não só a AUE assimila quase exactamente a
terminologia e a retórica do AGCS como assume posição
desarmada face à ofensiva dos países anglo-saxões
promotores do negócio da Educação. Não sendo
obviamente uma instituição de classe, a AUE hesita
mas todavia reflecte perfeitamente a mentalidade e os interesses do grande
capital, para o qual a privatização dos serviços
públicos e a globalização comercial são objectivos
na agenda do dia.
Entretanto, com os patrocínios do Banco Mundial, da OCDE, da UE e outros
de menor peso, numerosas agremiações patronais e profissionais
lançaram-se numa intensa campanha de simpósios, congressos,
feiras, etc. para promoção da nova filosofia das
formações e aprendizagens, dos seus inovadores produtos e
metodologias bem como, naturalmente, dos próprios agentes de tais
mudanças, que assim procuram publicitação, parcerias e
futuras oportunidades de negócios. Esta actividade é
frenética por toda a Europa.
Para além dos próprios agentes das ditas mutações,
The World Business Organization, European Foundation for the Improvement of
Living and Working Conditions, Global Alliance for Transnational Education,
International Chamber of Commerce, European Centre for Strategic Management of
Universities
, são alguns dos representantes do capital transnacional nesta campanha.
Pelo contrário outras entidades, associações sindicais e
profissionais e outras organizações não governamentais,
militam pelo esclarecimento e denúncia dos reais objectivos e dos
iminentes riscos das mutações que o capital, com o apoio dos
governos, procura introduzir nos serviços públicos e em
particular na Educação. Temos aqui, entre muitas outras,
Public Citizen, World Development Movement, Corporate Europe Observatory,
Observatoire de la Mondialisation, Third World Network, Our World is not For
Sale Network, Unité de Recherche de Formation et d'Information sur la
Globalization, L'Appel pour une École Démocratique, The Council
of Canadians
, etc. É tempo de tomar partido.
O desenrolar deste confronto ideológico e social não está
determinado. A luta é difícil para ambos os lados. Sobretudo
vital para o lado do capital, não só mas também no
domínio da Educação, pois que é a sua
sobrevivência que está em causa. «A reforma mais
frequentemente necessária e a mais perigosa é a das empresas
públicas, seja em caso de sua reorganização seja da sua
privatização. Esta reforma é muito difícil porque
os assalariados deste sector estão frequentemente bem organizados e
controlam domínios estratégicos. Vão bater-se com todos os
meios possíveis (
) Quanto mais um país tenha desenvolvido
um grande sector público, mais esta reforma será difícil
de concretizar» [Morrisson Christian,
La Faisabilité politique de l'ajustement
, Cahier de politique économique n°13, OCDE 1996
http://www.oecd.org/dataoecd/24/22/1919060.pdf
]. Contrariando os esforços manipuladores do grande capital
através dos governos submissos e da comunicação social ao
seu serviço, os professores, os estudantes, as comunidades educativas em
geral, têm a percepção ou mesmo a compreensão do
processo em marcha. Por isso resistem e vão à luta.
18 de Outubro de 2003.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
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