A educação:
de serviço público a mercadoria transnacional
por Rui Namorado Rosa
O IMPERIALISMO EXERCE-SE E REFORÇA-SE
MEDIANTE O COMÉRCIO INTERNACIONAL
A ideologia neoliberal argumenta e propagandeia que as condições
de vida dos trabalhadores melhorariam em todo o mundo graças ao retorno
da economia a uma situação de expansão do capital e da
integração global do comércio livre. Contudo,
os sinais e os indicadores económicos apontam na direcção
oposta, um facto por vezes reconhecido mesmo por economistas da "corrente
dominante.
Por um lado, para os países da periferia, a prioridade dada à
abertura da economia tem determinado a subalternidade da
resolução de problemas sociais e do investimento produtivo
duradouro. Muitos países do "Terceiro Mundo" têm sido
forçados a desmantelar as suas infra-estruturas públicas nas
últimas décadas sob programas de ajuste estrutural impostos pelo
BM e pelo FMI. Para terem acesso à renegociação da
dívida, por exemplo, dúzias de países em
desenvolvimento" têm sido obrigados a abandonar os seus programas
sociais públicos ao longo dos últimos 20 anos, e a permitir que
corporações estrangeiras entrem e vendam os seus
"produtos" em educação e saúde aos
"clientes" que possam pagar por eles, deixando milhares sem os
serviços sociais básicos [Maude Barlow,
GATS: a última fronteira da globalização
, 2002,
http://resistir.info/ambiente/barlow_gats.html
].
Por outro lado, para os países do centro do sistema capitalista, o
principal efeito do comércio internacional parece ser uma
redistribuição do excedente das empresas em benefício do
patronato e não a ampliação do excedente. O
comércio não parece estar a ampliar a riqueza mas sim a
redistribui-la desigualmente. Na realidade, a acrescida
competição internacional traduz-se efectivamente numa maior
"elasticidade" da procura interna por trabalho, o que significa que
um trabalhador compete agora com uma oferta de trabalho muito mais vasta.
Então, uma pequena mudança nos salários de trabalhadores
estrangeiros ou na procura global de um produto ou serviço podem causar
grandes mudanças na procura interna de trabalho. Consequentemente,
aumenta a vulnerabilidade do trabalho às flutuações do
mercado, o que enfraquece a posição negocial do trabalho face ao
capital [Dani Rodrik,
Non, la mondialisation ne favorise pas le développement. Bien au
contraire
, Courrier International n.º 545, 12/04/2001 ; Dani Rodrik,
Trading in Illusions
, Foreign Policy March-April 2001,
http://www.courrierinternational.com/numeros/545/054505001.asp?TYPE=archives
;
http://www.foreignpolicy.com/issue_marapr_2001/rodrick.html
].
O comércio internacional é um componente central do
desenvolvimento do sistema capitalista. Desde o termo da Segunda Guerra
Mundial, ele tem sido regido - através da GATT depois reestruturado em
WTO (OMC) - pela potência capitalista hegemónica com a
conivência das restantes potências capitalistas e seguindo a
inspiração ditada pelas corporações transnacionais,
as mais directas interessadas. Contrariamente a qualquer outra
instituição global, a OMC tem poder legislativo e
judiciário para contestar e revogar leis, práticas e
políticas de países individuais. A OMC não contempla
quaisquer normas de protecção do trabalho nem dos direitos
humanos, assim como não contempla quaisquer princípios sociais ou
ambientais. Sempre que a OMC tem intervido para contestar e combater uma lei de
saúde doméstica, de segurança alimentar, de
comércio justo ou de meio ambiente, a OMC tem ganho. A soberania dos
povos é um obstáculo ao imperialismo e é aniquilada por
ele.
Os Serviços são o sector com maior crescimento no comércio
internacional, sobretudo a partir da UE e dos EUA, e oferecem excelentes
oportunidades de rendimento às transnacionais aí instaladas. Ora,
de entre os serviços públicos, a saúde, a
educação e o abastecimento de água estão
identificados como oferecendo os mais elevados potenciais lucrativos. Os gastos
mundiais com serviços de abastecimento de água excedem
actualmente em US$ 1 trilião (milhão de milhões) por ano;
em educação eles excedem 2 triliões; e em saúde,
excedem 3,5 triliões. [E. Elliott with Maud Barlow,
GATS Privatising all services!
,
http://www.2012.com.au/GATS.html
].
A OMC E O AGCS,
INSTRUMENTOS DE CONSTRUÇÃO DO MERCADO GLOBAL
Um acordo global está a ser negociado para permitir às CTN
apoderarem-se dos serviços públicos de todo o mundo,
independentemente da vontade dos povos. Se entrar em vigor, significará
a extinção do sector público [Maude Barlow,
GATS: a última fronteira da globalização,
http://resistir.info/ambiente/barlow_gats.html
].
O Acordo Geral sobre o Comércio em Serviços AGCS ou GATS
em inglês - é um dos mais de 20 acordos comerciais administrados
pela Organização Mundial de Comércio (OMC ou WTO). O AGCS
foi estabelecido em 1995, na conclusão do ciclo de debates do
"Uruguai round" do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade ou
Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) que conduziu à
criação da OMC. As negociações deveriam
começar cinco anos depois com o objectivo de aumentar progressivamente o
nível de liberalização comercial. Estas
conversações tiveram de facto seguimento em Fevereiro-Novembro de
2000 em Doha, Qatar. O objectivo era então alcançar um acordo
final até Dezembro de 2002 entre mais de 130 países. O seu
propósito final é tomar de assalto todos os serviços
públicos, a abolição mesmo do conceito fundamental de
serviço público sem fins lucrativos, para que as
corporações deles se apoderem sobre todo o mundo. Nada ficaria
isento, pelo contrário tudo deveria ser aberto aos interesses das
corporações.
O mandato do AGCS é a liberalização do comércio de
serviços, incluindo o desmantelamento das barreiras estatais à
privatização dos serviços públicos, até
desarmar os Estados da sua capacidade de administrarem os serviços
públicos em base não lucrativa. O actual ciclo de
negociações AGCS tem como meta estar completado e os seus acordos
entrarem em vigor em 2005. Mas o processo, embora conduzido quase
sigilosamente, com pouca informação e consulta pública,
enfrenta a desconfiança e por vezes a hostilidade aberta da
opinião pública, para além de não estar isento de
contradições internas.
Em Fevereiro de 2003, a campanha Europeia contra a AGCS atingiu uma
vitória quando o Comissário Europeu para o Comércio,
Pascal Lamy, foi forçado a anunciar (admitir?) que a Comissão
Europeia não comprometeria mais os sectores da saúde e da
educação às regras de mercado livre do AGCS e nenhum
compromisso seria de todo tomado em comunicação social em futuras
negociações com o AGCS. Foi uma evidente retirada táctica,
de cedência à corrente de opinião pública
organizada, tomada quando estava convocada uma manifestação que
reuniria milhares de manifestantes e sindicalistas em Bruxelas. Todavia, por
outro lado, a CE anunciou a intenção de aprofundar a abertura dos
serviços postais, de telecomunicações, de transportes,
financeiros, ambientais e de distribuição (retalho) Europeus
à competição estrangeira. Sem esquecer que a CE prossegue
a intenção e as diligências para alargar a
exploração privada de serviços públicos a
países terceiros, particularmente aos países menos desenvolvidos
dentro da sua esfera de influência. [World Development Movement,
http://www.wdm.org.uk/campaign/GATS.htm
].
Até agora, dez países opõem-se ao avanço das
negociações, e está em crescimento o movimento social
internacional que visa opor-se à trajectória do AGCS. [Our World
is Not For Sale,
http://www.ourworldisnotforsale.org/members.asp
]. O rotundo insucesso da conferência ministerial da OMC em Cancun no
México (10-14 de Setembro de 2003), é sintomático da
crescente contradição entre os interesses económicos
capitalistas e os interesses sociais das mais amplas massas de trabalhadores em
todo o mundo, bem como do progressivamente aberto confronto entre países
capitalistas mais industrializados, que até agora têm livremente
imposto a sua vontade no quadro do comércio mundial, e os países
em desenvolvimento, continuadamente espoliados e todavia
potencialmente mais ricos e poderosos em recursos naturais e humanos (Brasil,
México, Índia, R.P. China, entre outros).
Antes das negociações do AGCS começarem, no início
de 2002, as grandes corporações fizeram saber ao governo dos EUA
e à Comissão Europeia quais as áreas prioritárias a
serem alvo da liberalização comercial, e a lista é de
veras completa: assistência social, cuidados de saúde, cuidados
para a infância, serviços para idosos, educação a
todos os níveis, museus e biblioteca, banca e seguros, actividades
jurídicas, serviços postais, telecomunicações,
transportes públicos, construção, turismo, energia,
serviços de água, saneamento básico,
protecção ambiental, e não só. Os "bens
comuns", serão alvo de generalizado assalto se o AGCS entrar em
vigor. O património comum, como sementes e genes, ar e água,
cultura e herança cultural, saúde e educação,
poderão ser apropriados e retalhados para comercialização.
Também o emprego temporário de pessoas físicas como
profissionais independentes será liberalizado, reforçando a
mobilidade de cérebros e a flexibilidade da oferta e
prestação de trabalho, levando a exploração do
trabalho pelo capital aos seus concebíveis limites.
As transnacionais estão por detrás e impulsionam o AGCS. Desde a
constituição do GATT em 1947 até à sua
reconfiguração em WTO (OMC) em 1995, realizaram-se oito ciclos de
negociações de que o último foi no Uruguai (Uruguai
round). O sétimo ciclo em Tóquio (1973-1979) foi
contemporâneo da elaboração do que viria a ser denominado
"
Consenso de Washington
" - um modelo de economia baseado nos princípios de
privatização, do mercado livre e da
desregulamentação, a ser realizado a nível mundial - bem
como da constituição de corporações transnacionais
(TNC) gigantescas que, por já operarem a nível mundial, se haviam
isentado das regulamentações internas dos estados, e que
pretenderam então impor a desregulamentação da sua
actividades no plano internacional também. Ora a
constituição do GATS viria a concretizar-se finalmente a partir
de 1995, para satisfação dos desejos e necessidades das TNC dos
sectores dos serviços.
A acção do AGCS desenvolve-se em paralelo e consonância com
o desenvolvimento dos processos nacionais de privatização da
propriedade e dos serviços públicos. Esta ofensiva desenvolve-se
segundo um padrão reprodutível. O processo de
privatização da propriedade pública desenvolve-se em
três fases. A primeira fase, já muito avançada, foi a de
privatização de empresas públicas industriais e
financeiras. Estas empresas encontravam-se já a operar num mercado de
competição e a sua alienação pelo Estado decorreu
naturalmente com a mudança de política
económica de intervencionista para liberalizante [Asbjorn Wahl,
Privatisation, TNCs and Democracy
, in "Initiative for another Europe", Copenhagen 15 December 2002
(counter-conferance during the EU Summit),
http://www.aswahl.net/ENGELSK/
]. A segunda fase consiste ainda na privatização de
serviços públicos infra-estruturais água, energia,
transportes e comunicações; primeiro a privatização
do estatuto jurídico e de seguida a privatização do
capital social. Esta fase está ainda em curso na generalidade dos
países europeus, vindo a encontrar forte resistência da parte da
opinião pública e das organizações sindicais. A
táctica prosseguida compreende uma primeira etapa de
desregulamentação e liberalização do mercado
respectivo. A segunda, é de mudança do estatuto jurídico
do serviço público para empresa de capital público ou
misto. A terceira etapa consiste na venda das acções detidas pelo
Estado. A terceira fase está a iniciar-se na Europa, estando mais
avançada nalguns outros países e tem em vista a
privatização de serviços públicos de natureza
não empresarial saúde, educação,
segurança social ou seja, o núcleo essencial do estado
previdência (welfare state).
Foi acordado que determinadas normas já existentes no foro da OMC sejam
válidas "horizontalmente" para os serviços
públicos. Uma destas regras "horizontais" é
"nação mais favorecida", segundo a qual uma vez que
corporações estrangeiras operem num dado país, deve ser
permitido que corporações de qualquer outra origem operem
igualmente. Alguns países, num gesto proteccionista, já
reivindicaram isenções para os programas nacionais financiados
com fundos públicos. Contudo, à luz do articulado do AGCS, apenas
serviços inteiramente gratuitos podem ser considerados sob a autoridade
do governo. Como quase nenhum sector de serviços públicos no
mundo é inteiramente gratuito, esta isenção perde a
possibilidade de ser invocada.
«Precisamos de investigar todas as facetas do AGCS em cada país e
precisamos de partilhar esse conhecimento. Precisamos de formar frentes comuns
em cada país, incluindo nos principais sectores envolvidos - educadores,
profissionais da saúde e advogados, sindicatos do sector público,
ambientalistas, agricultores, escritores e artistas, povos indígenas, e
outros. Precisamos de solidariedade, cooperação e rapidez.
Precisamos de criar "Zonas livres do AGCS" em universidades e em
escolas secundárias, igrejas e centros comunitários locais.
Precisamos de dirigir-nos aos nossos governos e apresentar
resoluções locais contra o AGCS. Precisamos de escrever cartas
aos nossos governos, jornais e aos media alternativos. Os opositores ao AGCS e
aos seus desígnios deveriam ter três reivindicações
básicas: Em primeiro lugar, exigir uma moratória completa nas
negociações do AGCS e nas cláusulas draconianas do acordo
existente, como o assalto à regulamentação nacional.
É absolutamente inaceitável que os nossos governos se reunam por
detrás de portas fechadas a fim de arrasar os nossos direitos para
benefício de corporações suas amigas. Isso deve ser
travado imediatamente, enquanto fazemos o balanço da
situação e trazemos este tema para o domínio
público. Essencialmente, deveríamos exigir que os bens
comuns" sejam completamente removidos dos acordos de livre
comércio.» [Maude Barlow,
GATS: a última fronteira da globalização
,
http://resistir.info/ambiente/barlow_gats.html
].
O AGCS,
INSTRUMENTO DE PRIVATIZAÇÃO TRANSNACIONAL DA
EDUCAÇÃO
Vemos pois muito bem qual o alcance das políticas nacionais que
impõem propinas no ensino público e taxas moderadoras nos
serviços de saúde.
Sob o regime proposto pelo AGCS, as empresas estrangeiras de saúde e de
educação poderão estabelecer-se em qualquer país da
OMC e terão o direito de competir por financiamento público com
as instituições públicas, como hospitais e escolas. As
actividades dos profissionais de saúde e de educação
ficarão sujeitos a regras da OMC também. Serviços de
telemedicina (virtual) com sede no exterior serão legais e às
corporações educacionais sediadas no estrangeiro será
reconhecida autoridade para conferir graus académicos. E os governos
nacionais não terão autoridade para controlar a
competição transfronteiriça de profissionais de
saúde e de educação com baixas remunerações
salários. [Maude Barlow,
GATS: a última fronteira da globalização
, 2002
http://resistir.info/ambiente/barlow_gats.html
]. Tudo isto será possível em nome das virtudes transcendentes e
indiscutíveis do comércio livre, segundo a doutrina
neoliberal da cartilha do "
Consenso de Washington
".
A Educação é o último sector dos
serviços públicos que o grande capital tem para devorar. É
um sector de forte financiamento público e que cresceu muito rapidamente
no último meio século [
L'enseignement des chiffres
, Le Courrier de l'UNESCO, Novembre 2000,
http://www.unesco.org/courier/2000_11/fr/doss13.htm
]. O capital privado pretende agora controlar mais directamente este enorme
sector, tendo em vista várias finalidades vitais para o sistema
capitalista: a ampla difusão dos valores ideológicos neoliberais;
o negócio da educação (produtos e serviços); e a
formação de um vasto exército de trabalhadores menos
qualificados, vulneráveis e controláveis, a par de uma camada de
quadros altamente qualificados e ideologicamente domados e confiáveis.
Mais de 40 países, incluindo muitos da Europa, inscreveram a
educação no domínio do GATS, abrindo os respectivos
sectores da educação pública à
competição de empresas estrangeiras. Quase 100 países
fizeram o mesmo com a saúde. À medida que as
negociações progridem, será difícil para qualquer
país voltar a trás ou remar contra a corrente. Mas alguns
países europeus têm afirmado a sua oposição ao
acordo com o GATS no âmbito da Educação, e designadamente o
governo belga. Segundo este: «As regras do comércio mundial
não são adequadas a um sector como o da educação.
Existem outros instrumentos internacionais que, pelos princípios que
defendem, enfatizam o direito à educação compreendendo
nomeadamente a abertura do acesso, o princípio da gratuidade (inclusive
para o ensino superior),... O Pacto Internacional relativo aos direitos
económicos, sociais e culturais de 19 de Dezembro de 1996 é disso
um bom exemplo. O postulado da gratuitidade não é aliás
compatível, na nossa opinião, com o postulado do serviço
comercial.» [
La position belge concernant les relations entre Education et Accord
Général sur le Commerce des Services
, 30 Août 2002,
http://www.urfig.org/agcs-campagne-education-position-belge-pt.htm
].
Entretanto, a OMC já contratou a empresa Global Alliance for
Transnational Education (GATE) para inventariar políticas mundiais que
"discriminem contra fornecedores estrangeiros de serviços
educativos". Os resultados deste "estudo" serão usados
para obrigar os países que ainda detêm um sector de
educação pública fechado a abri-lo ao mercado
mundial. A GATE foi constituída nos EUA em 1995 para tratar da
questão (e poder gerir o negócio) do ensino superior
transnacional; tendo estudado os seus padrões para efeitos de
consistência, estabeleceu uma rede de
cooperação internacional entre corporações,
instituições de ensino, agência de
acreditação, organizações inter-governamentais e
representantes de governos e, finalmente, desenvolveu uma metodologia de
avaliação de qualidade e de acreditação para o
ensino superior transnacional. GATE foi doada agora (Agosto 2003) pela entidade
constituinte, Jones International Ltd., à US Distance Learning
Association (USDLA). Esta foi uma associação constituída
em 1987 para fornecer serviços de informação,
intermediação e jurídicos, a instituições de
ensino secundário, ensino superior, educação
contínua e ensino doméstico (home schooling), bem
como a corporações, departamentos governamentais e até
às forças armadas (no âmbito da sua especialidade - o de
aprendizagem à distância) [GATE,
Press release
, August 12, 2003,
http://www.edugate.org/usdla.htm
].
O ENSINO,
INSTRUMENTO DE REPRODUÇÃO DO SISTEMA POLÍTICO
Desde o início da década 1990 os sistemas educativos têm
sido alvo da imposição de mutações de
política que reflectem e estão em consonância com as
orientações da doutrina neoliberal no ataque e desmantelamento
dos serviços públicos em geral, designadamente:
redução do financiamento público,
descaracterização dos objectivos do sistema educativo,
introdução em força das TIC,
descentralização e desregulamentação,
facilitação e estímulo à privatização
do ensino, enfim, um conjunto de medidas que alteram a relação
dos cidadãos com o Estado e os deixam mais desprotegidos para que assim
se conformem com as características exigidas pelo grande capital para a
força de trabalho que este pretende explorar. A Escola é mudada
para que melhor sirva a economia na actual fase de desenvolvimento das
forças produtivas e de concentração do capital, ou seja,
formando o perfil (crescentemente assimétrico e estratificado) de
qualificações e conferindo as competências
(sincréticas e fragmentadas) para a flexibilidade que lhe convêm.
Também, para que a Educação se torne ela mesma em
mercadoria e a Escola ela mesma uma boa oportunidade de negócio. E como
sempre, para que o sistema de ensino cumpra a sua tradicional
função ideológica de perpetuação do sistema
político instalado no poder, o que agora significa educar para a
obediência aos valores do mercado, incluindo a competitividade
(anti-solidária) e o consumismo (não sustentável). [Nico
Hirtt,
Les trois axes de la marchandisation scolaire
, Etudes marxistes n° 56, Bruxelles, novembre 2001,
http://users.skynet.be/aped/Analyses/Articles2/Trois%20axes.htm
].
Algum recuo e perspectiva histórica ajudam a nossa compreensão da
actual fase de evolução do sistema capitalista mundial, com a
caracterização do correspondente sistema educativo.
No Século XIX, ao lado do ensino primário, destinado aos filhos
das classes trabalhadoras e à sua doutrinação de classe e
patriótico, o ensino secundário destinava-se aos filhos dos
estratos sociais superiores, que deveriam ocupar lugares de enquadramento e
direcção da sociedade burguesa. No Século XX, as
transformações científico-técnicas, as
intensificações nas esferas industrial e comercial, e a
complexificação da administração, exigiram o
crescimento da força de trabalho qualificada, em termos quantitativos e
sobretudo qualitativos. O sistema educativo teve de corresponder à essa
exigência, compreendendo: pronunciado crescimento do ensino superior,
diversificação das saídas escolares e das modalidades de
ensino e acrescida selectividade dos jovens estudantes. Acentuou-se a
função económica do ensino, em relativo prejuízo da
sua função social. Neste contexto, a mobilidade social facultada
pela aprendizagem e o mérito pessoal, nunca tendo sido posta em causa,
perdeu ainda mais a sua eficácia, e o sistema de ensino, no fim do
século XX, tende a reproduzir mais rigidamente a
estratificação sócio-económica vigente. Por isso
mesmo, para justificar este facto iludindo-o, nunca o discurso de
política educativa foi tão persistente em repetir ideias e
propósitos de igualdade de oportunidades, justiça social e de
primado do mérito, como nos recentes anos de ascensão do
ideário neoliberal, mas para fazer justamente o contrário.
O ENSINO E O TRABALHO
DURANTE TRINTA ANOS DE EXPANSÃO ECONÓMICA
Foi após a Segunda Guerra Mundial, com a Revolução
Científica e Técnica, o início de um novo ciclo longo de
Kondratieff, a ascensão de um mundo bipolar com uma potência
capitalista hegemónica, que as transformações se
aceleraram de novo. O sector agrícola bem como alguns sectores
industriais básicos entraram em crise nos países mais
desenvolvidos e observaram-se grandes quebras de emprego nesses sectores.
Porém, outros sectores ou adquiriram acrescido peso ou até
emergiram então, proporcionando a absorção da força
de trabalho disponibilizada e, mesmo, procurando o alargamento da força
de trabalho disponível para com ela sustentar essa expansão
económica.
Entre 1945 e 1975, tivemos três décadas de crescimento da oferta
de trabalho e da força de trabalho empregada e, posto que o
conteúdo mesmo das actividades económicas se foi alterando
substancialmente, essas foram décadas de massificação do
ensino secundário e de crescimento do ensino superior, nos países
mais industrializados. O crescimento verificado no sistema de ensino foi
realizado pelo Estado no sector público, alimentado por receitas fiscais
asseguras em clima de expansão económica, de tal forma que a
parte do PIB afectado a este sector duplicou na maioria dos países da
OCDE, no curso desse período. Paralelamente, a taxa de
participação dos jovens nos ensinos secundário e superior
e o espectro de qualificação da população subiram
drasticamente [
L'enseignement des chiffres
, Le Courier de l'UNESCO, Novembre 2000,
http://www.unesco.org/courier/2000_11/fr/doss13.htm
].
As preocupações no discurso do sector económico eram
então sobretudo quantitativas. E assim, o ensino secundário
não foi objecto de alterações significativas quanto aos
seus conteúdos e o ensino superior foi conduzido segundo o objectivo de
adequação quantitativa das diversas qualificações
existentes. A massificação no ensino secundário tem
interessante conteúdo social e pedagógico. Ela traz no seu bojo a
massificação também do insucesso escolar e da
acumulação de repetentes, fenómenos a que estão
subjacentes sobretudo factores socioculturais e mesmo
sócio-económicos. A opção entre o ensino geral
(conducente ao prosseguimento dos estudos) e as variantes técnica,
artística, vocacional, moderna, etc. configura não só
perspectivas de progressão sócio-profissional mas também
constrangimentos sócio-culturais e sócio-económicos.
À saída da escola secundária são os filhos dos
estratos sociais superiores que se encontram em vantagem para se tornarem os
futuros quadros e dirigentes. Em suma, a massificação do ensino
secundário reproduziu a estratificação social existente,
embora alguns políticos achem bem referi-lo como
democratização, mas a realidade é outra.
Com a viragem para a crise económica em meados da década de 1970,
as orientações das políticas educativas não
vão sofrer alteração de fundo, embora a sua
aplicação seja coarctada progressivamente, no imediato pela
desaceleração do investimento público.
Em Portugal, as reformas que estavam em curso nas décadas de 1960-70
reflectem, com atraso e noutra escala, a tendência geral verificada nos
países da OCDE, a que a Revolução de Abril veio conferir
renovado alento, porém já em período de
contracção do sistema económico mundial, pelo que o seu
impulso foi limitado no seu maior alcance, contrariedade que a
contra-revolução iria aproveitar e acentuar.
O ENSINO E O TRABALHO
EM PERÍODO DE CONTRACÇÃO ECONÓMICA
A Revolução Científica e Técnica está em
marcha. Mas a formação social e o seu modo de
produção permanecem intocáveis.
A produção de conhecimento e a invenção
técnica alargam-se progressivamente. As oportunidades de
aplicação técnica produtiva multiplicam-se. No seio do
sistema económico, as empresas sujeitam-se a competição
feroz, procuram a inovação técnica e organizativa,
formam-se e dissolvem-se, deslocalizam-se à procura de custos de
produção cada vez mais baixos. Diferentemente dos anteriores
ciclos de Kondratieff, a evolução é mais rápida e o
volume de produção entra em conflito com os limites ambientais e
mesmo planetários. Se é certo que a substituição de
fontes primárias de energia e dos meios de transporte físico
são processos intrinsecamente muito lentos (o que comporta outros
perigos, se ignorados nos seus pesados alcances) os bens de consumo e
serviços podem ter vidas muito efémeras, viabilizadas pela
rápida inovação tecnológica, pela feroz
competição, pelo consumismo e pela obsolescência prematura.
O telefone fixo levou 35 anos a instalar-se como serviço de
comunicação pessoal; o telefone portátil levou 13 anos; a
Internet (e seu correio electrónico) apenas 7 (utilizando o mesmo
critério de aferição). O horizonte de previsibilidade
económica revela-se cada vez mais curto.
O mercado do trabalho repercute evidentemente a contracção
económica. A taxa de desemprego apresenta tendência para aumentar,
a relação de trabalho tende a precarizar-se, a
rotação na ocupação de postos de trabalho acelera.
Para o trabalhador não é só o que ficou dito, o
desemprego, o vínculo precário, a mudança de posto de
trabalho, mas é também a mudança de actividade e a
tendência em termos gerais para a sua desqualificação (uma
elevada qualificação não se adquire num curto lapso de
tempo!). Crescem os exércitos de desempregados e de trabalhadores a
prazo; aumentam em volume e percentagem os exércitos do pessoal de
limpeza, de guarda e segurança, de venda e de caixa, de serviços
pessoais, de criados e serventes, etc., trabalhadores que mal tiveram
formação específica, e se a tiveram a adquiriram
rapidamente no local de trabalho (embora possam até deter um diploma
universitário) [Nico Hirtt,
Les trois axes de la marchandisation scolaire
, Etudes marxistes n° 56, Bruxelles, novembre 2001,
http://users.skynet.be/aped/Analyses/Articles2/Trois%20axes.htm
].
Um estudo do Departamento do Emprego dos EUA, relativo ao período
1998-2008, prevê o prosseguimento da tendência para a
centrifugação dos extremos e o afundamento das categorias
profissionais intermédias na composição da força de
trabalho naquele país. A dualização será igualmente
perceptível no que toca aos rendimentos. Assim, 35% dos novos empregos
são em categorias que se situam hoje no quartil superior de receitas (os
25% mais ricos), enquanto outros 39% se situam no quartil inferior
(os 25% mais pobres). Apenas 14% e 11%, respectivamente, pertencem aos dois
quartis intermédios, a classe operária tradicional e a classe
média. [Charles Bowman, Bureau of Labor Statistics,
Employment Outlook: 1998-2008
, Monthly Labor Review, November 1999,
http://www.bls.gov/opub/mlr/1999/11/art1full.pdf
].
Entretanto, os grupos de interesses económicos pressionam os governos no
sentido de baixarem as cargas fiscais, quer sobre as rendas de capitais e as
empresas, quer também sobre as receitas do trabalho, neste caso para que
sejam libertados recursos dos trabalhadores na expectativa que estes sejam mais
explorados nas negociações salariais e através do consumo.
Por outro lado, as alterações da legislação
laboral, forçando a flexibilização do trabalho e a sua
precarização, completam o quadro de guerra do capital contra o
trabalho. Menos Estado, melhor Estado é o slogan da
ideologia neoliberal, ao serviço do grande capital, para melhor explorar
os trabalhadores. Claro que, dada a identidade dos interesses de classe, em
caso de crise as grandes corporações podem contar com a
benevolência dos governos, não só nos ditos planos fiscal e
laboral como também com subvenções públicas quando
necessário. De vez em quando há um administrador que é
preso e julgado, mas esses casos raros são úteis para ajudarem a
manter a aparência que o sistema no seu todo é sério e
confiável.
A contracção económica em curso desde cerca 1980 vem
conduzindo portanto ao aumento da parte do capital em prejuízo do
trabalho na partilha do produto nacional, bem como à
redução das disponibilidades do Estado para aplicar as suas
receitas nas prestações sociais, na saúde e na
educação. É o retrocesso a caminho da
destruição do Estado providência (welfare
state) conquistado durante o período de expansão
capitalista (1945-1975) pelas classes trabalhadoras e no confronto
ideológico da guerra fria.
A centrifugação no mercado do trabalho repercute-se na
correspondente dualização do ensino. Quando, até nos EUA
como vimos, é maior a oferta de emprego para trabalhadores menos ou nada
qualificados, o poder político não precisa mais de prosseguir uma
política de massificação do ensino que para o sistema
económico deixou de ser rentável. Mas será conveniente
manter as aparências para ajudar a conter a reacção das
massas trabalhadoras. Já num documento dos serviços de estudos da
OCDE, datado de 1996, se preconiza claramente: «
Se diminuirmos as
despesas de funcionamento, será de cuidar não reduzir a
quantidade do serviço, ainda que a qualidade baixe. Pode-se reduzir, por
exemplo, o financiamento de funcionamento das escolas e das universidades, mas
seria perigoso reduzir o número de alunos e estudantes. As
famílias reagiriam violentamente à recusa de
inscrição dos seus filhos, mas não a uma
redução gradual da qualidade do ensino, e a escola pode
progressiva e pontualmente obter uma contribuição das
famílias ou suprimir algumas actividades.» [Christian Morrisson,
Centre de développement de l'OCDE,
La faisibilité politique de l'ajustement
, Cahier de politique économique nº. 13, 1996,
http://www.oecd.org/dataoecd/24/22/1919060.pdf
,
http://reseaudesbahuts.lautre.net/article.php3?id_article=178
].
Não é assumido e decretado o fim da massificação
(que a democratização não fora nunca a
preocupação do poder político) mas criam-se
condições (financeiras, organizativas e pedagógicas) que
conduzam necessariamente à travagem da tendência de
expansão do sistema de ensino e à dualização da sua
presente função económica (as elites altamente
qualificadas para o enquadramento e direcção e as massas
desqualificadas para o mercado flexível de trabalho precário).
Em Portugal, o governo propõe como base justificativa para a
reestruturação do ensino superior um documento de
orientação intitulado Um Ensino Superior de Qualidade
(22 de Abril de 2003). Nunca tanto a qualidade foi motivo do
discurso político para iludir a dura realidade. E na proposta de lei de
bases do financiamento, por lapso o governo deixa escapar a sua
verdade: «Reconhecendo-se que a expansão do Ensino Superior atingiu
o seu limite (
) na presente proposta de lei precisam-se os
critérios de financiamento público das actividades dos
estabelecimentos de ensino não público».
22 de Setembro de 2003.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
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