A estratégia não sustentável do governo português

por Rui Namorado Rosa

Nuvens e poeiras sobre a Europa O Conselho Europeu de Sevilha, a realizar a 22 de Junho corrente, apreciará as estratégias nacionais dos estados membros da União Europeia, no quadro da preparação da Cimeira sobre Desenvolvimento Sustentável, a realizar em Joanesburgo em fins de Agosto próximo. Esta cimeira é um compromisso assumido na "Cimeira da Terra", Conferência das Nações Unidas realizada no Rio de Janeiro em 1992, confirmada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1997.

À Cimeira de Sevilha o governo português leva agora este documento de 71 páginas intitulado Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentado – ENDS 2002 , colocado à discussão pública a 5 de Junho passado.

É um texto sumamente burocrático, provavelmente feito por medida de algum figurino. Elenca e transcreve demoradamente a Envolvente externa, o Enquadramento interno e os Instrumentos de medida da evolução do país. É um rol historiográfico de referências mais ou menos conexas, supostamente exaustivo (vejam-se os anexos com listagem exaustiva de Programas operacionais, Instrumentos e políticas estratégicas de âmbitos Internacional, Europeu e Nacional), com o qual se pretende construir um conceito difuso de «desenvolvimento sustentável». Por este andar, desenvolvimento sustentável seria de facto business as usual .

Um dos pontos mais significativos registado nesse enunciado é, nos derradeiros parágrafos do capítulo 3, o reconhecimento que a «sustentabilidade», tal como a temos conhecido, acabará em 2006, com o fim do QCA III e do Fundo de Coesão e com o alargamento da União Europeia.

Significativo também é o conceito sorrateiramente invocado no parágrafo 4.2, de «dissociação entre o crescimento económico e a degradação ambiental» ou «desmaterialização da economia» segundo os autores, o qual se pode traduzir, em termos correntes, pela confissão envergonhada de prosseguimento da desindustrialização do país. Conceito falsificador também, porque a "terciarização" em curso da nossa economia de modo nenhum significa "desmaterialização"; o desenvolvimento quer de serviços públicos quer de comércio e outros serviços de âmbito privado, implicam pesadas infraestruturas de transportes, telecomunicações, informáticos, etc. com fortes componentes de capital fixo. Por um e outro lado se deduz, o que não é declarado, que o "desenvolvimento" proposto é um desenvolvimento inteiramente dependente de bens importados, um "desenvolvimento" que só por malvadez ou má fé se pode apelidar de "sustentado".

No capítulo 5, decorridos dois terços do documento, tem-se finalmente um enunciado das Políticas e medidas prioritárias de índole global propostas pelo governo, onde lemos, por exemplo:

"um novo sentido de desenvolvimento, capaz de estruturar o discurso e a acção através dos valores do ambiente, da gestão qualificada dos recursos e da valorização do território"
"Aprofundar as funções de regulação dos mercados visando a garantia de estabilidade dos direitos de propriedade, a salvaguarda dos bens colectivos e dos princípios de equidade, igualdade de oportunidades e livre iniciativa"
"torna-se indispensável que os sistemas de ensino e formação assegurem qualificações dos recursos humanos, ajustando-os às novas necessidades resultantes da dinâmica de mercado e das transformações tecnológicas"
"Consolidar e avaliar a eficácia do projecto fiscal sobre a interioridade,.... Articulação deste regime com os demais impostos ambientais e impostos relacionados com o ambiente e de aplicação nacional,...."
"Generalizar a aplicação do princípio do poluidor-pagador em articulação com o princípio do utilizador-pagador...."
"...a dinamização do crescimento económico, dissociando-o da intensidade de uso dos recursos e da degradação ambiental"
"Assumir a importância do comércio.... como factor de revitalização de centros históricos e de aglomerados urbanos em meio rural"
"Alargar e adaptar aos sujeitos passivos de IRS algumas das medidas já em vigor para sujeitos passivos de IRC, nomeadamente em matéria de crédito fiscal...."
"Promover a Reforma Fiscal, reforçando a integração da vertente da sustentabilidade em todo o sistema tributário...."

Destas e outras amostras se conclui que a preocupação da «estratégia» é unicamente manter o mercado a funcionar, com cada "actor" no seu devido "lugar", cabendo ao estado manter essa "ordem" e cobrar as receitas fiscais. «Business as usual». É sintomático, que num tão grosso feixe de «políticas e medidas», nem a segurança social nem os sistemas de ensino e de saúde públicos sejam objecto de igual desvelo. De facto, todas as componentes sociais internas estão ausentes, como se o país fosse natureza e paisagem, e povo que baste, só para trabalhar e cobrar impostos.

O documento termina com cinco extensos anexos para cumprir as dimensões consideradas aceitáveis. O governo quis cumprir calendário e produziu este documento. Seria triste, se não fosse trágica, esta irresponsabilidade. O documento não define «desenvolvimento sustentável» porque pretende fazer passar a sua mensagem desapercebidamente. «Business as usual». Para cumprir mandato.

Desenvolvimento de quê e para quem? Com que meios? Com que recursos se trabalha e se produz ? Quem possui os solos urbanos, florestais e agrícolas e para quê? Como é que é sustentável uma economia em desindustrialização, sem especializações na produção de bens de equipamento, com balanças alimentar e energética altamente deficitárias, e com acelerada intensificação energética? Quem paga a educação, a saúde e a segurança social "sustentadas", sustentadas por quem e para quem? É sustentável o consumismo por um lado e a depauperação por outro? Em parte alguma se abordam estas várias questões chave.

Depois de 2006 não haverá Quadro Comunitário de Apoio nem Fundo de Coesão, o próprio governo pondera. Mas que orientação de acção toma? Nenhuma. Que espera o governo? Fazer relatórios destes, iludindo a degradação da situação social e económica sem que nada de substancial se faça? Como se não houvessem crises actuais e outras iminentes?

E todavia este é também o "contributo" de Portugal para o mundo. Afirma o documento, no seu último parágrafo, que seguirá as recomendações da OCDE na ajuda ao desenvolvimento, que obedecerá às conclusões da conferência ministerial da OMC, que cumprirá o objectivo da conferência de Monterrey relativo à ajuda aos países em desenvolvimento. Será bem comportado no plano das relações internacionais. Será isto suficiente, ou ao menos digno? É esta a contribuição que o país leva ao Conselho de Ministros de Sevilha (22 de Junho de 2002) e à Cimeira sobre o Desenvolvimento Sustentável. (Joanesburgo, Agosto-Setembro de 2002). Será possível que se esgote aqui, virada para dentro, a visão e a acção do país para o desenvolvimento sustentável num mundo «globalizado»?

Depois do Rio de Janeiro (Janeiro de 1992), dez anos depois, o que é que o país tem para oferecer ao mundo no quadro das Nações Unidas? E num mundo de fortes interdependências, no próprio interesse do país, que visão estratégica tem este governo para governar de facto, para que o desenvolvimento do país seja sustentável?

Quanto a nós, desenvolvimento sustentável tem de ter um enunciado claro e perceptível para o público em geral. Basta de tecnicismos ocos que cumprem a função de afastar os cidadãos da intervenção na vida pública, nacional e internacionalista. Basta de esconder a real natureza política do sistema económico e social e as causas das suas crises. Basta de tratar o país como o prolongamento automático da Europa política.

Além de não ser suportável, não é sustentável.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info

19/Jun/02