Ciência e filosofia: da compreensão à actuação

por Rui Namorado Rosa

A irreversibilidade do tempo Em meados do século XIX foi-se insinuando e impondo no conhecimento científico o conceito de irreversibilidade. No domínio da Mecânica, a ciência moderna por excelência desde o dealbar do século XVII, o modelo da Filosofia Natural cuja evolução tanto influenciou a marcha de pensamento filosófico, reversibilidade era aceite e significava a simetria do tempo físico (do movimento dos corpos eternos no espaço infinito ) e metafísico (dos elementos, das substâncias ou dos seres no universo). Mas o domínio filosófico era campo fértil de contradições. A assimetria, por seu lado, era reconhecida no ordenamento entre causa e efeito (sem em absoluto negar uma eventual reciprocidade entre estes), era reconhecida entre os actos de percepção e de cognição ("eu penso logo existo") e seria mesmo uma necessidade ao aceitar ou procurar um sentido teleológico nos acontecimentos. Uma síntese entre simetria e assimetria parecia necessária.

Irreversibilidade teve e tem vários enunciados e manifesta-se em todos os domínios. No domínio das Ciências Exactas, a consistência entre o sentido do tempo observado em variados fenómenos físicos (como a difusão, a propagação de ondas ou o decaimento radioactivo) veio a conferir um sentido universal ao tempo. O Segundo Princípio da Termodinâmica veio a fixar uma relação determinada entre forças e fluxos que implicitamente fixa um sentido para o correr do tempo. De um outro ponto de vista e por outras palavras, a "conservação" de energia não nega antes se completa com o reconhecimento da "transformação" da sua qualidade, a dita "dissipação" de energia. O conceito de entropia (Rudolph Clausius, 1865) foi então concebido para aferir essa qualidade, conceito fecundo, hoje corrente em diversos domínios do conhecimento (e ocasionalmente abusado). Sinteticamente, o crescimento da entropia aponta o sentido do tempo, a seta do tempo .

Este Segundo Princípio entra em rotura com o conhecimento fixado na Mecânica newtoniana, segundo a qual o movimento dos corpos é reversível num tempo simétrico. Essa rotura implicou o reconhecimento de que corpos extensos, compostos por inúmeras partes elementares, manifestam propriedades não existentes ou perceptíveis nessas partes elementares quando consideradas separadamente. O todo não se reduz à soma das partes, pois que novas grandezas e novas propriedades emergem do todo; a contradição entre os mundos microscópico e o macroscópico era pois aparente, isto é, superável. E, demonstrando a conciliação entre as leis reversíveis do mundo microscópico com as leis irreversíveis do mundo macroscópico, as propriedades médias e as flutuações dos corpos em estado de equilíbrio gozam e exibem permanência e reversibilidade.

Só em 1998, no CERN e no Fermi Lab, viria a ser confirmada a quebra de simetria do tempo à escala microscópica, concretamente no comportamento de certas partículas elementares, o que havia trinta anos se suspeitava já, em resultado da então descoberta quebra de simetria carga-paridade; esta quebra de simetria será responsável pela prevalência da matéria sobre a antimatéria no universo. Quer dizer que a seta do tempo também existe à escala microscópica, embora com pequeníssima expressão, mas com enorme consequência à escala do tempo cósmico. Enfim, poder-se-á dizer que o mundo existe como é porque "o tempo não é imparcial" ....

O desenvolvimento da História Natural, complementando, contrariando e superando a abordagem sistematizadora e coleccionista do século XVIII, veio evidenciar, no imenso tesouro dos registos ou "memórias" geográficas botânicas, zoológicas e geológicas, a distribuição, a mutação e a filiação de espécies animais e vegetais com um sentido evolutivo. O tempo exibe um sentido definido para o ser biológico (nascimento e morte); ora esse sentido é um pressuposto necessário à formulação das leis de evolução próprias da esfera biológica. O percurso acelerado que conduz de Carl von Lineu (1756) a Charles Darwin (1858) é o que parte da Filosofia Natural para chegar até à ciência moderna. O darwinismo foi uma rotura epistemológica profunda, com consequências enormes e fecundas, uma aquisição definitiva do pensamento científico cujo alcance ainda hoje não está esgotado.

Uma outra rotura se deu pela mesma época no domínio das então incipientes Ciências Sociais, com a obra de Karl Marx que concebeu o materialismo histórico como instrumento de interpretação da História, a qual adquire maior e determinante dimensão económica e social, e iniciando uma linha filosófica fecunda, o marxismo . O marxismo reflecte e fundamenta-se aliás nas mutações do conhecimento das Ciências Exactas e Naturais contemporâneas.

Mas é o materialismo dialéctico que está subjacente às profundas superações epistemológicas que ilustram as várias ciências no curso do século XIX europeu. Friedrich Engels desenvolveu o materialismo dialéctico na obra conhecida por Anti-Dühring (1878), bem como numa colectânea de manuscritos publicados em 1925 sob o título Dialektik der Natur . O materialismo dialéctico considera que os fenómenos materiais são processos. Opondo-se, por um lado, ao idealismo, incluindo o idealismo de George Hegel, mas colhendo deste a formulação dialéctica, Engels enunciou uma filosofia da Natureza que, por outro lado, superou o materialismo mecanicista. Este materialismo inspirava-se na física (mecânica) moderna e em interpretações filosóficas da ciência que, remontando a Tomas Hobbes e John Locke (século XVII), proliferaram no século XIX; seria, segundo Engels, superficial por não atender a que os modelos mecânicos não são igualmente aplicáveis a outros domínios, como a química e a biologia, e a novas descobertas científicas, como a então novel teoria da evolução das espécies. O materialismo mecanicista também ignorava a relevância prática do conhecimento e tanto as relações das ciências com as condições sociais como a repercussão da ciência na transformação da sociedade. Hegel insistia na natureza global e dialéctica das mudanças nos processos naturais, porém atribuía tais mudanças a manifestações do "espírito". Engels subverteu essa interpretação hegeliana, atribuindo a mudança à própria matéria no seu desenvolvimento dialéctico. A dialéctica da Natureza procede segundo três leis: a lei da transformação da quantidade em qualidade, a da interpenetração dos contrários ou opostos, e a da negação da negação. A mudança resulta da presença de contradições, contradições objectivas e não subjectivas, contradição entre opostos, de cujo conflito emerge a mudança.

O materialismo dialéctico, com a epistemologia científica subjacente, foi tomada por Lenine como doutrina para a luta por uma sociedade comunista, o que pode ser interpretado como a conversão do materialismo dialéctico em ideologia (sem perda da sua natureza filosófica), cuja pertinência dependerá da circunstância histórica, ou seja, o materialismo dialéctico adquiriria um sentido político. Mas a ser uma ideologia política, tem um sentido de compreensão para a mudança, não de justificação do presente. E, na base da interpretação marxista, estará vocacionada para a superação da sociedade de classes. Também na historia social o tempo aponta um sentido de mudança.

Estas várias roturas foram ganhos científicos e saltos epistemológicos. Nas últimas décadas do século XX, assistiu-se a uma outra sucessão de descobertas de novas categorias de fenómenos A dinâmica caótica é um desses novos domínios. O conceito científico de Caos surgiu do estudo de modelos simplificados de previsão meteorológica e de mudança climática (Lorenz); mas sistemas elementarmente simples mostram exibir comportamento caótico também (Verhults); o que antes era estranho, espúrio e marginal passa a ser objecto de estudo, e o caos revela ter leis próprias subjacentes; a aparente desordem revela-se ser passível de quantificação (expoentes de Liaponov, etc.). A teoria da informação é um outro desses domínios. O conceito de Informação (Shannon), formalmente próximo do de entropia, viria a ser um suporte conceptual estruturante dos actuais desenvolvimentos das tecnologias da informação e da comunicação. Nestes vários âmbitos o conceito de tempo é essencial; a dinâmica caótica comprova sugestivamente o sentido único do fluir do tempo; e a comunicação de informação só comporta um sentido.

Algumas novas categorias de fenómenos foram identificadas em sistemas progressivamente mais extensos e internamente interligados, de natureza física, biológica, social, etc. São fenómenos que se manifestam como comportamentos colectivos ou cooperantes; manifestações de complexidade e a emergência de novas fenómenos; processos de crescimento e a estruturação da forma; etc. Conceitos e leis da Termodinâmica, da Teoria da Informação, da Dinâmica Caótica são convocados e mostram-se instrumentais na procura da compreensão de sistemas económicos e sociais os mais variados.

O Materialismo Dialéctico pode e deve ser encontrado nestes novos âmbitos fenomenológicos. E pode e deve ser inspiração para procurar a sua compreensão. E concretamente, a integração num plano superior de "explicação", o material enorme que por enquanto se nos afigura diverso e fragmentado.

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27/Jul/02