Ameaças e oportunidades
do processo de Bolonha

por Rui Namorado Rosa

Europa Para entendermos as tendências da política de Ensino em Portugal temos de considerar o que se passa também na Europa e no Mundo. Só explica parte, mas é muito instrutivo, e até poderá ser a parte determinante.

Em Lisboa, em Abril de 1997, o Conselho da Europa e a UNESCO promoveram uma reunião conjunta em que foi adoptado o texto de uma Convenção sobre o reconhecimento de qualificações relativas ao Ensino Superior (de acesso e de graduação) na Região Europa. No ano seguinte (Setembro 1998) e já no âmbito da União Europeia, o Conselho de Ministros adoptou uma Recomendação (Nº 561/98) para a cooperação na garantia de qualidade no Ensino Superior. Entretanto, a Declaração da Sorbonne (Maio 1998), da iniciativa da França, Alemanha e Itália, havia já antecipado a criação de uma Área Europeia de Ensino Superior, proposta que foi depois reformulada e retomada em Bolonha (Junho 1999) pela cimeira de Ministros da Educação europeus (29 países) — a Declaração de Bolonha. A cimeira de Praga (Maio 2001) dos ministros da Educação europeus (32 países), veio confirmar e fixar medidas e metas concretas para esse processo de integração no espaço europeu. Assim surgiu o chamado processo de Bolonha que, como se verifica, é um processo com diversificados interventores e de geometria muito variável.

A Área Europeia do Ensino Superior comporta os seguintes conceitos-chave: a capacidade de atracção mundial da formação superior oferecida pela UE; comparabilidade entre formações homólogas adquiridas em países distintos; um sistema de unidades de crédito acumuláveis e transferíveis entre estabelecimentos de ensino e países (ECTS); a mobilidade de estudantes e professores; a cooperação na elaboração e a integração de programas de ensino; a organização do percurso escolar em dois ciclos (graduação e pós-graduação); a garantia de qualidade mediante orientações comuns relativas a avaliação do ensino, acreditação de habilitações profissionais e certificação de habilitações académicas.

COM AS PALAVRAS NOS CONFUNDEM

Este processo de Bolonha deve ser enquadrado num processo mais vasto que abarca todas as actividades de ensino e formação no seio da Europa e também à escala mundial. A mudança de ênfase do Ensino para a Aprendizagem; da Educação para a Formação; a “nova” Aprendizagem ao longo da vida (lembram-se do ensino recorrente, a formação contínua, etc.?) são mudanças que têm operado e acelerado na última década. Não seria essencial introduzir novos termos, mas novos termos facilitam a introdução de outras políticas. É subtil, mas pode ser perigosamente eficaz: a sociedade deixa de ter o dever de educar e ensinar as crianças e os jovens; são estes que têm o dever de obter (se puderem) aprendizagem; o termo “direito” esvanece-se.

Também termos como Sociedade do conhecimento ou Sociedade da informação são termos operativos para avançar “novas” políticas: “sociedade” passa a ser o que nestas definições se contém, pretendendo fazer desaparecer para o fundo do palco o que se não diz. Sociedade seria então a produção e a aquisição de conhecimento, até mesmo a sua comercialização. A tónica aparece nos conteúdos, nos meios e nas políticas governamentais, estas convenientemente orquestradas. Os poderes económicos não precisam sequer expor-se, embora sejam eles quem fornece (com vastos lucros) as infraestruturas materiais e quem extrai (não se falando mais em emprego) as mais valias do trabalho. Os objectivos sociais reduzem-se à disponibilidade quantitativa e qualitativa de força de trabalho.

Ensino à distância (lembram-se do estudo por correspondência, a tele-escola, etc?), integração das TIC (tecnologias da informação e comunicação) no ensino-aprendizagem e e-learning , eis as inovações metodológicas (e tecnológicas) que facilitarão esse proposto novo tipo de relação professor-aluno, mediada por produtos de ensino e de aprendizagem transaccionáveis.

O ENSINO NA CADEIA DE PRODUÇÃO

Uma ideia de mercantilização já instilada, a de ensino transnacional emerge já sem rebuço; enunciado no Seminário de Malmoe, Março 2001, é adoptado na Cimeira de Praga, Maio 2001; professores ensinam e estudantes aprendem, produtos a caminho de transacção à escala planetária, que a Organização Mundial do Comércio pretende promover.

Com efeito, desde 1998 que a OMC, em íntima colaboração com a Global Alliance for Transnational Education e a OCDE, bem como funcionários dos governos anglo-saxónicos que acolhem os principais provedores de ensino a distância, tem promovido a tese segundo a qual os governos, ao permitirem a existência de provedores privados de ensino, aceitam implicitamente o princípio de que este (e em particular o ensino superior) pode e deve ser tratada como um serviço comercial. Que, como tal, deverá ficar submetida à regulamentação da OMC. Ainda em 23-24 de Maio último, em Washington, a OCDE e o Banco Mundial organizaram um encontro para tratar do comércio dos serviços educativos e decidiram passar a financiar instituições que tenham por objectivo defender a comercialização do ensino superior.

A mercantilização (produção e consumo) do conhecimento abre também novas oportunidades à apropriação privada do conhecimento: é a migração de cérebros (dos países em desenvolvimento para os mais desenvolvidos); é a apropriação, através das publicações científicas internacionais, do conhecimento gerado em qualquer recanto do mundo; são as patentes, detidas ou adquiridas por monopólios transnacionais (porém taxadas nos países de origem); são os projectos “adjudicados” a universidades prestadoras de serviços (out-sourcing) , cujas competências foram potenciadas mediante financiamentos públicos; é mesmo a tentativa sucedida ou não de patenteamento de bens universais (códigos genéticos, softwares livres, etc.).

A AMEAÇA DOS CONGLOMERADOS
TECNOLÓGICOS E IDEOLÓGICOS

As indústrias do software (incluindo novos sistemas operativos para aplicações via Internet: Unix, Windows, etc.) e de produtos multimédia (CD-ROM, video-conferência, video-clips, telefone, chat-lines, correio electrónico, etc.) têm animado a “nova economia” com duas evidentes finalidades: uma, oferecer novas oportunidades ao capital especulativo e, outra, acelerar o desenvolvimento de novos produtos que viabilizem a crescente acumulação de capital sob a pressão de uma margem de lucro em declínio. Mas uma terceira finalidade emerge: não só os produtos da “nova economia” podem encontrar um vastíssimo “mercado” no ensino e formação como podem por essa via ser instrumentais no domínio ideológico que essas actividades permitem.

Na realidade, as TIC vão entrando, e bem, pelas escolas adentro; vão-se multiplicando as Bibliotecas virtuais e os Laboratórios virtuais, e bem, desde que não prescindam das bibliotecas e dos laboratórios “reais”. Universidades tradicionais e prestigiadas começam a oferecer serviços livres on-line (até gratuitos, com objectivo promocional ou não só), mas não prescindem do ensino presencial para a atribuição de graus (devidamente financiado). Mas nascem também novas “universidades”, para a corrida no novo “mercado” do ensino à distância, cujo futuro é incerto e as motivações duvidosas. A par do ensino à distância (sobre novos suportes técnicos proporcionados nas TIC) é oferecido também ensino presencial subcontratado (franchising). As oportunidades de negócio multiplicam-se.

Assistimos a uma arrebatadora integração económica quer de empresas quer de tecnologias de informação e comunicação. Serviços multimédia, serviços de relações públicas e de publicidade, agora também serviços de ensino e formação, são progressivamente integrados no seio de mega-empresas transnacionais (liderados, nos EUA, por empresas e associando empresas tecnológicas e Universidades). São “experiências” viabilizadas inicialmente (como é tradição) pelo orçamento da Defesa Nacional e que depois são transferidas para o plano civil e transnacional.

A EDUCAÇÃO A CAMINHO DO MERCADO

Conceitos empresariais como competitividade, empregabilidade, mercado de trabalho, gestão estratégica, eficiência, recursos mínimos e efeito máximo, “just in time”, certificação, etc., são acolhidos nos textos de política educativa independentemente da sua acepção precisa ou da sua adequabilidade no contexto da Escola e do sistema de Ensino. O discurso sobre o ensino surge então em termos de discurso económico como se aquele fosse mera componente particular deste. Aos estudantes não se quer oferecer um sistema de ensino público mas antes um mercado de aprendizagens.

Neste quadro, o processo de Bolonha surge com potencialidades bivalentes. A fragmentação do ensino e da aprendizagem em “produtos” sujeitos a re-integração em termos normalizados; a tendencial despersonalização do processo ensino-aprendizagem, por força de um novo quadro convivencial, viabilizado (não imposto) pelas TIC; a desmaterialização do conhecimento consequente (contingência que não necessidade) da inacessibilidade de suportes materiais concretos. Estas são evidentes ameaças que o processo de Bolonha poderá viabilizar, em consonância com tendências assinaladas um pouco por todo o mundo. As directivas da União Europeia reflectem naturalmente os interesses do poder económico e as orientações políticas prevalecentes no seio da União – a competitividade mundial, a empregabilidade, a mobilidade, etc. O que não exclui, porém, a expressão política de numerosas preocupações sociais também.

A NOSSA ESCOLHA SERÁ A NOSSA VONTADE

Está na nossa mão e é nosso dever acompanhar o processo de Bolonha, não por seguidismo ou por direcção imposta mas por interesse próprio, sem ingenuidade face aos objectivos de outrem e aos riscos próprios. O Ensino nunca foi um tema e um sistema acabado. São precisas reformas? São. Precisas para melhor, sabendo que caminhos há muitos.

Antes do mais, teremos de fazer valer a ideia que o primeiro factor para o desenvolvimento do nosso país e o seu principal destinatário é o povo português. Se aceitarmos essa premissa, reconheceremos que a Educação é ao mesmo tempo instrumento e finalidade do nosso progresso e bem estar. Teremos que rejeitar o Ensino como um fardo e ainda menos como um negócio. Ele deve ser assumido sim como um bem público de acesso universal. Ensino para quê? Para a libertação e o aperfeiçoamento do homem ser social. Mas estejamos atentos, pois não faltará quem, a pretexto do processo de Bolonha, pretenda fazer tudo ao contrário, para que no essencial fique na mesma.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

18/Jun/02