A Vida Cultural Portuguesa
No primeiro terço do
século XX, a vida cultural portuguesa exibia sobretudo expressão
literária e centrava-se fundamentalmente em torno de algumas revistas.
Essa cultura literária seguia três correntes principais uma
tradicionalista, outra cosmopolita e outra, menos visível mas mais
perdurável, modernista. A vertente da cultura científica
não assumia comparável visibilidade, excepto no caso de alguns
cientistas de maior projecção e daqueles que também eram
escritores. De entre as disciplinas científicas destacavam-se a Medicina
e a Matemática por serem as que registaram maiores progressos e por
terem tido mais insignes cultores. Deste grupo, alguns foram também
ensaístas e publicistas, incluindo numerosos animadores da
Universidade Popular Portuguesa
. Bento Jesus Caraça foi um deles. Mas Caraça não foi
apenas mais um desses dignos publicistas, ele foi um dos seus
fundadores e presidiu por largos anos à sua direcção,
tendo muito contribuindo para o dinamismo e prestígio dessa
instituição.
A
Universidade Popular Portuguesa
foi fundada em 1919 (sendo encerrada em 1944). Universidades populares e
universidades livres haviam surgido pouco tempo após a
implantação do regime republicano, mas já na
sequência da tradição das academias de estudos livres e da
associação
A Voz do Operário,
constituídas no último quartel do século XIX por
iniciativa de trabalhadores. Eram esses projectos inspirados por ideais
socialistas, dirigidos para a elevação do nível cultural e
para a maior intervenção social da classe trabalhadora. Mas a
Universidade Popular Portuguesa
foi um projecto que beneficiou do entusiasmo da elite cultural, consciente do
elevado índice de analfabetismo e preocupada com o elevado isolamento
cultural das massas proletárias (sobretudo urbanas), indo ao encontro
das aspirações dos trabalhadores e contando com a sua pronta
adesão. A participação activa de Caraça nesta
Universidade
surge como um sinal claro de opção de classe que não
viria a ser atraiçoada e ponto de partida para um percurso de
intervenção cultural e cívica exemplar.
A Vida Política Portuguesa
O percurso de intervenção cultural e cívica de Bento de
Jesus Caraça (1901-1948) começa a evidenciar-se em 1929, ano em
que assume a cátedra de Matemáticas Superiores no Instituto
Superior de Ciências Económicas e Financeiras da Universidade
Técnica de Lisboa bem como a presidência da direcção
da
Universidade Popular Portuguesa
.
Recordemos alguns acontecimentos da época para situarmos as
preocupações que potencialmente afligiam Caraça e os seus
contemporâneos. Em 28 de Maio de 1926, um golpe militar havia posto fim
ao regime parlamentar da primeira República. A 1 de Junho a
Confederação Geral dos Trabalhadores reagira, lançando uma
greve geral que conseguiu resistir durante alguns dias. Mas em 1927 a CGT tinha
sido dissolvida e o seu órgão, o jornal
A Batalha,
encerrado. Após 1929, o movimento sindical reorganizara-se em torno da
Comissão Inter-Sindical e em 1930 lançara greves e
manifestações operárias. O ano de 1933 é o ano em
que é plebiscitada uma nova Constituição e é
promulgado o Estatuto do Trabalho Nacional, dois dos pilares da ditadura do
Estado Novo. Na sequência dessa promulgação, são
encerrados os sindicatos livres, criados os sindicatos
nacionais, os grémios e as corporações
oficiais; alguns sindicatos livres, porém, reagem à
dissolução e mantêm actividade semi-clandestina, até
1936. Em 1934, a 18 de Janeiro, foi lançado um movimento grevista
insurreccional que foi derrotado.
Os partidos políticos iam sendo reprimidos, em 1929 o PCP reorganizou-se
em função da passagem à acção clandestina, e
em 1934 o partido oficial único, a União Nacional, viu todos os
seus candidatos eleitos para a Assembleia Nacional. Em 1935, por decreto-lei
publicado a 13 de Maio, determinar-se-ia serem «aposentados ou reformados,
se a isso tiverem direito, ou demitidos, em caso contrário», os
funcionários ou empregados, civis ou militares, que tivessem revelado ou
revelassem «espírito de oposição aos
princípios fundamentais da Constituição
Política» ou não dessem garantias «de cooperar na
realização dos fins superiores do Estado». Logo no dia
seguinte, uma resolução do Conselho de Ministros demitiu, de uma
só vez, 30 altos funcionários do estado, oficiais superiores das
forças armadas, professores universitários (Sílvio Lima,
Aurélio Quintanilha, Rodrigues Lapa, Álvaro Lapa, Abel Salazar e
José Norton de Matos), professores do ensino secundário,
professores primários e quadros técnicos. Em 1936 foi
aberto o campo de concentração do Tarrafal em Cabo
Verde.
Estava instalada a ditadura do Estado Novo em Portugal. No resto do mundo,
recuperava-se da grande recessão e iniciava-se a encenação
da Guerra Civil em Espanha e da Segunda Guerra Mundial.
Bento de Jesus Caraça na Década de 30
É neste quadro complexo e por vezes sinistro que vamos encontrar Bento
de Jesus Caraça no seu lúcido e aparentemente sereno apostolado
cultural e cívico. Para ele, a década de 30 (e os primeiros anos
da década de 40) foi um período de intensa actividade
universitária, cívica e cultural no sentido mais lato do termo,
actividade de estudo e reflexão pessoal por um lado, igualmente de
comunicação e socialização, por outro. Dedica-se
à docência no Instituto Superior de Ciências
Económicas e Financeiras; profere conferências na Universidade
Popular Portuguesa e noutros âmbitos; colabora em jornais de combate
(como
O Diabo, O Sol Nascente, Liberdade
e
O Globo
) e em revistas de doutrinação (
Seara Nova
e
Vértice
); publica obras científico-pedagógicas para o ensino das
Matemáticas; funda o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicada
à Economia (1938); já em 1940 funda, com outros prestigiados
Matemáticos, a
Gazeta de Matemática
e a Sociedade Portuguesa de Matemática. Em 1941 lançará
um notável monumento da cultura portuguesa do século XX, a
Biblioteca Cosmos, que surgiu como a materialização de um
projecto de formação e divulgação que vinha
prosseguindo desde uma década atrás através da
Universidade Popular Portuguesa
, a que a sua experiência pessoal e a rede de cumplicidades
entretanto estabelecida entre a intelectualidade esclarecida conferiram
imediato sucesso.
Caraça, professor de
Matemática, para ensinar Matemática aprofunda os seus
fundamentos, pesquisa a sua história e a sua filosofia. O seu
posicionamento e a sua actuação são a de um intelectual
inteiramente a par das concepções contemporâneas mais
esclarecidas, numa época em que os saberes estavam ainda conscientemente
compartimentados. Pois que por esse tempo, e por muito tempo então ainda
por chegar, os homens das ciências exactas, quando interessados nos
antecedentes e fundamentos das respectivas disciplinas, limitavam-se a cultivar
as biografias das suas figuras consagradas e a historiar ou construir a
memória das suas agremiações científicas.
Simultaneamente, os homens das ciências humanas e sociais, os
historiadores em particular, debruçados sobre os factos
políticos, diplomáticos e militares, excluíam ou
subalternizavam no corpo da sua pesquisa o peso histórico dos progressos
científicos ou técnicos. Excepção foram os
Descobrimentos e a Expansão, movimentos historiados para
glorificação da Pátria, mas cristalizados no seu tempo,
obra de um punhado de heróis. É por esse tempo 1926-1933
que em Portugal os historiadores, prosseguindo as suas pesquisas
alheados da influência das demais ciências sociais, ignoram ou
rejeitam o modelo de 1929
Annales d'histoire économique et sociale
da dupla francesa de Estrasburgo Marc Bloch e Lucien Fèbvre, a
verdadeira revolução historiográfica na Europa de
então preferindo as humanidades cristãs e conservadoras,
avessos a mudanças de percurso ou a historiar as
transformações, as revoluções, o progresso e a
modernidade.
A Cultura Integral do
Indivíduo Problema Central do Nosso Tempo, é o
título de uma conferência proferida por Bento de Jesus
Caraça na
União Cultural Mocidade Livre
em 25 de Maio de 1933. Esse é possivelmente o seu mais conhecido
texto, cuja actualidade perdura. Em nota explicativa inserta na sua
edição como caderno da
Seara Nova,
em 1939, referindo-se aos jovens promotores dessa conferência e à
ocasião em que ela fora proferida, o autor afirma: «....O futuro
imediato não correspondeu às aspirações e
impaciências desses espíritos juvenis e ardentes. O desenvolver da
vida social europeia seguiu por caminhos que haviam de provocar a
revisão de muitos optimismos fáceis e, em contrapartida, fazer
abrir muitos olhos para realidades cruéis, em suma, proporcionar grandes
lições. Tudo isto fez que se amortecessem alguns entusiasmos das
primeiras horas. Que importa? É essencial que tenham existido! Mas foram
mais algumas ilusões perdidas, dir-se-á. Não. As
ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de
melhor na vida dos homens e dos povos. Perdidos são os cépticos
que escondem sob uma ironia fácil a sua impotência para
compreender e agir; perdidos são aqueles períodos da
história em que os melhores, gastos e cansados, se retiram da luta, sem
enxergarem no horizonte nada a que se entreguem, caída uma sombra
uniforme sobre o pântano estéril da vida sem formas.....».
No entanto, liquidados os partidos social-democratas, soçobradas as
frentes populares, tinham-se consolidado o nazismo e outros regimes fascistas
em vários países europeus; estava-se nas vésperas da
conflagração da Segunda Guerra Mundial.
Galileo Galilei
Valor Científico e Valor Moral da Sua Obra, é o
título de uma outra conferência proferida por Bento de Jesus
Caraça desta feita na sua
Universidade Popular Portuguesa
em 22 de Junho de 1933. Conferência que seria depois também
editada em 1940.
«Toda a obra de Galileo, bem como dos filósofos e cientistas dos
séculos XVI e XVII, consiste numa revalorização do homem e
no desfazer de um curioso paradoxo que a civilização
cristã tinha originado. Não se percebe, com efeito, como possam
conciliar-se as duas posições que o cristianismo adoptou, uma no
campo da ética, outra no da ciência..... Qual a
explicação desta contradição, deste paradoxo?
Parece-me simples. É que era precisamente essa a doutrina que convinha,
para manter em equilíbrio um estado social em que os bens da vida eram
logradouro duma ínfima minoria. Para a maioria, esmagadora mas ignara,
era preciso, para que ela não tomasse consciência da sua
força, mantê-la no culto da sua própria
imperfeição e indignidade.» Aqui Caraça interpreta a
dinâmica da evolução histórica da sociedade,
relevando a importância da superestrutura ideológica. Mais
adiante, o conferencista enuncia a sua visão epistemológica, a
sua interpretação da construção do conhecimento
científico, aliás ilustrada pela descrição
histórica que relata: «O que caracteriza o valor científico
duma época é qualquer destas duas coisas: ou o nascimento de
ideia criadoras, lançadas em seguida em todas as
direcções, e cujo rasto luminoso se mede pelas sugestões
fecundas que proporcionam, pela agitação que provocam e pelas
reacções que suscitam; ou a confluência dessas ideias e
seus cortejos que de diferentes pontos do horizonte surgem a congregar-se, a
unir-se, preparando uma síntese vasta de todos os conhecimentos
até aí adquiridos. Foi da primeira natureza aquele período
de encanto que se estende do século VI ao IV AC na Grécia
antiga; foi da segunda o constituído pelos séculos XVI e XVII da
nossa era......E todo esse prodigioso trabalho veio a conduzir a uma nova
confluência de algumas grandes correntes, neste primeiro quartel do
século XX. É uma nova grande época da história da
ciência, esta a que estamos assistindo, a terceira nos últimos
trinta séculos; ....». O autor referia-se assim à teoria da
relatividade de Einstein que apresentava enquadrada num processo
histórico longo e como resultado de «uma prodigiosa
síntese». E todavia estávamos em 1933, quando a
recepção dessa teoria ainda suscitava muita incompreensão
e pouca aceitação em Portugal.
Várias outras personalidades históricas da ciência
mereceram o interesse apaixonado de Caraça. Na
Gazeta de Matemática
, 1.º ano n.º 2, de Abril de 1940, num artigo intitulado Abel
e Galois descreve e analisa a personalidade e a obra desses dois grandes
matemáticos precoces mas de meteóricas vidas, do princípio
do século XIX. E escreve: «Ambos sofrem, mas na maneira de sofrer
são díspares Abel, fraco, de sensibilidade
infantil, retrai-se, procura um ponto de apoio afectivo e, como todos os
fracos, uma vez que entra na luta é para cometer uma injustiça
[contra Jacobi]; Galois, personalidade incomparavelmente mais forte,
revolta-se, ataca, ataca sempre. Abel, incapaz de ultrapassar os limites do
individual, nunca aborda de alto a posição do homem, não
relaciona os seus males com os males gerais de que enferma a sociedade do seu
tempo, restringe a sua ambição à tranquilidade dum lugar
na Universidade; Galois, mais esclarecido, discerne as conexões
íntimas do corpo social, vê nos defeitos orgânicos de base a
razão profunda de que os casos individuais são reflexo e,
logicamente, combate as causas, atira-se para a luta, bate-se na rua, com tal
ardor, tal exaltação no dom de si mesmo que chega a dizer
se for preciso um cadáver para que o povo se revolte, dar-lhe-ei o
meu! .... e, pensando nas condições desastrosas da
investigação científica, diz [Galois] Aqui, como em
todas as ciências, cada época tem de alguma maneira as suas
razões do momento: há questões vivas que fixam ao mesmo
tempo os espíritos mais esclarecidos..... Parece muitas vezes que as
mesmas ideias aparecem a vários como uma revelação. Se se
procura a causa, é fácil encontrá-la nas obras daqueles
que nos precedem, nas quais essas ideias estão presentes sem os seus
autores darem por isso. A ciência não tirou, até hoje,
grande partido desta coincidência tantas vezes observada nas
investigações dos sábios. Uma concorrência
desgraçada, uma rivalidade degradante têm sido os seus principais
frutos. Não é contudo difícil reconhecer neste facto a
prova de que os sábios não são, mais que os outros homens,
feitos para o isolamento, que eles pertencem também à sua
época e que, cedo ou tarde, multiplicarão as suas forças
pela associação. Então, quanto tempo será poupado
para a Ciência!...». A linha do texto de Caraça sugere
que ele faz seu o discurso de Galois, cerca de um século atrás,
que partilha com Galois a visão histórica e social da
construção do conhecimento científico.
Repare-se como tanto na conferência Galileo Galilei como no
artigo Abel e Galois Caraça faz uma
interpretação do progresso científico em que mostra estar
a par e ter posição própria face às ideias em
História e em Filosofia da Ciência, em exuberante
efervescência
na Europa do seu tempo. A Filosofia da primeira metade do século XX
estava sendo impulsionada por correntes de aproximação aos
fenómenos científicos em geral, e à Lógica e
à Epistemologia em especial; o
positivismo lógico
ou
neopositivismo
tornara-se a doutrina dominante a partir dos anos 30; era, porém, quase
ignorada em Portugal. Por outro lado, a partir da década de 30, sob
inspiração marxista, emergia e consolidava-se a
contextualização e a interpretação social e
económica da História da Ciência. Mergulhado na complexa
teia de correntes filosóficas e históricas da sua época,
Caraça insere-se na corrente marxista da História, incorporando
também novos elementos epistemológicos da Filosofia,
aproximando-se por antecipação às ideias que, com Thomas
Kuhn e Imre Lakatos, encontrariam explícita formulação e
ampla aceitação na segunda metade do século XX. Não
se tendo assumido como historiador ou filósofo da ciência, a sua
curiosidade e rigor intelectual e a sua preocupação em
fundamentar a sua acção pedagógica e cultural, teriam sido
os estímulos que o levaram a percorrer esses territórios
então praticamente ignorados entre nós.
Segundo o testemunho privilegiado de J. Sebastião e Silva (in
Diário de Lisboa, 25/Junho/1968) Caraça teria sido influenciado
pela Escola Italiana de matemáticos humanistas, quer
directamente quer através de seu mestre A. Mira Fernandes. Aliás,
encontramos nos seus textos frequentes referências a Federigo Enriques
(1871-1946), um dos matemáticos da referida Escola, matemático
que foi também destacado filósofo da ciência, relacionado
com os círculos neopositivistas.
Caraça entendia a
cultura una e universalista. A arte e a literatura teriam de estar
também no centro do seu interesse e da sua intervenção.
Assim as suas conferências
A Arte e a Cultura Popular
(1936),
Rabindranath Tagore
(1939) e
Algumas Reflexões sobre a Arte
- esta já em 1943, na abertura de uma série de
sessões de divulgação musical a cargo da Fernando Lopes
Graça - testemunham a intervenção de quem, não se
assumindo crítico de arte ou estudioso da estética, era seduzido
pelo sentimento do belo e estava fundamentalmente convicto da importância
da arte como factor de aperfeiçoamento individual e de comunhão
humana no plano social. Na perspectiva de Marx, segundo quem a
«....cultura compreende o máximo desenvolvimento das capacidades
intelectuais, artísticas e materiais encerradas no homem», na
conferência «
As Universidades Populares e a Cultura
» (1931) afirma «....Eduquemos e cultivemos a consciência
humana, acordemo-la quando estiver adormecida, demos a cada um a
consciência completa de todos os seus direitos e de todos os seus
deveres, da sua dignidade, da sua liberdade. Sejamos homens livres, dentro do
mais belo e nobre conceito de liberdade o reconhecimento a todos do
direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais,
artísticas e materiais»; e em a
A Cultura Integral do Indivíduo
(1933) afirma «...A aquisição da cultura significa
uma elevação constante, servida por um florescimento do que
há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas
as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista
físico, intelectual, moral e artístico, significa, numa palavra,
a conquista da liberdade....».
A década de 40
A partir de 1942 a intervenção cultural e cívica de Bento
de Jesus Caraça vai intensificar-se na sua vertente mais directamente
política. O que não significa quebra de continuidade da sua
acção pedagógica e científica. Por um lado assegura
com dedicação, e o entusiasmo dos seus alunos, a cátedra
no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras; em
1940 funda e dirige a Sociedade Portuguesa de Matemática e a
Gazeta de Matemática
(de colaboração com António A. Monteiro, M. Zaluar Nunes,
J. Silva Paulo, Ruy Luís Gomes, A. Mira Fernandes); participa em
1942-44-46 como delegado nos Congressos da Associação
Luso-Espanhola para o Progresso das Ciências; prossegue a sua
acção como conferencista e publica obras para o ensino e a
divulgação da Matemática; dirige a grande Biblioteca
Cosmos (1941-48). Mas, por outro lado, empenha-se (ainda nos anos 30) no
Socorro Vermelho Internacional, na Liga dos Amigos da URSS, no Comité
Mundial Contra a Guerra e o Fascismo (e na sua secção a Liga
Portuguesa contra a Guerra e o Fascismo), na Frente Popular Portuguesa, no
Bloco Académico Antifascista (todas estruturas de resistência
clandestinas). Já durante a Grande Guerra, é elemento central na
constituição em 1943 do clandestino MUNAF (Movimento de
Unidade Nacional Antifascista) e, logo após o termo da Guerra em 1945,
do MUD (Movimento de Unidade Democrática), de que assumiria a
vice-presidência e em nome do qual subscreverá
representações e manifestos. Era o inicio de um acidentado e
recorrente movimento cívico unitário de massas que viria a
impulsionar a revolução democrática e nacional que
eclodiria em 1974-75.
Mas como ficou dito, a
actividade científico-pedagógica não esmoreceu.
Os famosos
Conceitos Fundamentais da Matemática
, primeiro publicados pela
Cosmos
em 1941-42, seriam depois reeditados numerosas vezes até a actualidade.
È uma obra de divulgação cultural de elevada qualidade,
rigor e acessibilidade, inovadora até mesmo no plano internacional. O
seu interesse é tríplice: nas vertentes matemática,
histórica e filosófica. Sobre este livro António
Sérgio protagonizou com Caraça, nas páginas da
Vértice
, uma polémica cuja raiz era a divergência de
posições sobre a história e a filosofia da ciência.
Sérgio assumia uma posição espiritualista, da procura da
verdade pelo pensamento puro no plano das ideias e das formas; Caraça
assumia uma posição materialista, próximo do
neopositivismo, mas deste se afastando no recurso ao papel da história
na compreensão do movimento do pensamento científico.
A Biblioteca Cosmos, criada em 1941 sob a direcção de Bento de
Jesus Caraça, é um marco da história da cultura em
Portugal do século XX. Desde essa data até 1948, à data da
morte do seu fundador, foram publicados 114 títulos, 145 volumes, com
uma tiragem global de quase 800 mil exemplares. A Biblioteca Cosmos surge como
a materialização natural de um projecto de formação
e divulgação cultural para as massas populares que lenta e
seguramente vinha sendo prosseguido desde há uma década
atrás. Caraça propunha-se dar ao maior número de pessoas
o máximo possível de cultura geral, tornar acessível a
todos uma visão geral do mundo físico e social, a sua vida e os
seus problemas; divulgar sem abaixar nem deturpar, trazendo ao nível do
homem comum o património cultural comum; para o que o autor deveria
possuir domínio completo do assunto, inclinação
filosófica e capacidade de exprimir com simplicidade sem perder rigor
temático. As aspirações populares reprimidas, mas
também persistentemente alimentadas, a justeza do objectivo fixado, a
experiência e o prestígio pessoais de Caraça, a rede de
colaborações entretanto estabelecida entre a intelectualidade
sensibilizada para a concretização desse objectivo, todos foram
factores que se conjugaram em termos de conferir imediato e extenso sucesso ao
projecto. Entre os autores que colaboraram conta-se grande parte da elite
intelectual portuguesa de então, alguns já consagrados e outros
que o seriam mais tarde.
Em 10 de Setembro de 1946 Bento
de Jesus Caraça, professor catedrático da Universidade
Técnica de Lisboa, recebe uma nota de culpa deduzida pelo instrutor de
um processo disciplinar mandado instaurar por ter sido autor do manifesto
«O MUD perante a admissão de Portugal na ONU», facto que
constituía infracção prevista no Estatuto
Disciplinar dos Funcionários Civis do Estado. Idêntico
procedimento é iniciado para com Mário de Azevedo Gomes, primeiro
subscritor do referido manifesto e também professor da mesma
Universidade. Na sua resposta ao articulado da acusação, datada
de 18 de Setembro, Caraça escreve «.....o signatário usou de
um direito que a Constituição Política da República
Portuguesa lhe confere expressamente... Fê-lo ainda obedecendo a um
imperativo moral, uma vez que considera como uma das condições
necessárias para o exercício da profissão a que tem
dedicado toda a sua vida a independência moral e o sentido da
responsabilidade no uso dos seus direitos cívicos. E se o uso dessa
independência e dessa responsabilidade lhe podem, como agora, acarretar
perigos graves em face das reacções dos poderosos do momento,
não é isso razão para deixar de as usar, cônscio de
que é essa a maior e mais alta lição que pode dar na sua
vida de professor e portanto a maneira mais nobre de realizar a sua
missão de educador.» O Conselho Permanente da Acção
Educativa emite, com data de 7 de Outubro de 1946, parecer que aos arguidos
seja aplicada a pena de demissão, a qual na mesma data é decidida
por despacho ministerial.
Em
Bento de Jesus Caraça Militante Integral do ser Humano
, Campo das Letras 1999, Alberto Vilaça documenta a adesão
de Bento Caraça ao Partido Comunista Português, pelo menos desde
1931, então ligado através do efémero Núcleo de
Trabalhadores Intelectuais. Essa ligação sofreu
perturbações decorrentes do regime de clandestinidade, mas os
seus testemunhos e sinais persistiram ao longo dos anos. Essa
relação política ajuda a interpretar a natureza e a
multiplicidade de iniciativas bem como as vicissitudes e os êxitos dos
empreendimentos culturais e cívicos que protagonizou, explicando o
frequente envolvimento de Caraça em estruturas clandestinas e
esclarecendo a orientação e a coerência ideológica
dos textos do autor.
Mas só em Bento Jesus
Caraça ele mesmo, na sua personalidade de viva inteligência, de
generosa comunhão e de tenaz e persuasiva determinação,
podemos encontrar a origem, o propósito e o percurso da sua vida.
Não terá havido homem mais livre mesmo no mundo encarcerado como
foi o do seu tempo. Tese, antítese e síntese de si mesmo ele se
construiu.
Pela sua palavra e pela sua acção os termos
Cultura
e
Intelectual
ganharam aos olhos do povo português o sentido de dignidade humana e de
desejo de futuro e de compromisso moral e cívico entre
concidadãos.
Rui Namorado Rosa.
6 de Agosto de 2001
Este artigo encontra-se em
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.