Água e energia, com Alqueva ao fundo

Rui Namorado Rosa [*]

O plano de rega do Alentejo, no Sul de Portugal, incluindo um conjunto de albufeiras de armazenamento e uma rede de distribuição, permitirá irrigar mais de 110 mil hectares de solos agrícolas numa região carecida de água e em prolongado processo de desertificação biofísica e humana.

Inicialmente concebido durante o regime da ditadura do Estado Novo, com o propósito de beneficiar os grandes proprietários latifundiários — do mesmo passo abrindo oportunidades para a “colonização interna” por parte de famílias de pequenos agricultores e contribuindo para a fixação da mão-de-obra de um proletariado rural extremamente pobre — no anterior quadro de exploração agrícola puramente extensiva.

A Revolução de 25 de Abril de 1974 subverteu essa visão futura do mundo rural, que de súbito deu lugar a um impressionante movimento de Reforma Agrária, conduzida pelo proletariado rural, acompanhado por parte dos pequenos agricultores e apoiado pelo Movimento das Forças Armadas.

O plano de rega do Alentejo e a barragem de Alqueva, que é a sua peça central, foi sendo adiado por sucessivos governos no período da contra-revolução, mas a percepção da sua necessidade social e económica ganhou geral apoio entre o povo português, não obstante a derrota, temporária, do projecto de Reforma Agrária, e a obra foi retomada e avançando, lentamente, na última década. A grande barragem, que conterá a mais extensa albufeira da Europa, com capacidade para armazenar o dobro do caudal debitado anualmente pelo rio Guadiana, encontra-se agora em fase de enchimento.

É de novo muito diferente o quadro social e económico em que agora o plano de rega virá a tornar-se operacional; os interesses económicos entretanto instalados e dispondo de expressão política nos últimos governos, são uma ameaça à concretização das finalidade eminentemente públicas do grande empreendimento. Mas as forças sociais e políticas que, ao longo de quase meio século, lutaram por esse projecto, tendo com ele em vista a valorização do solo e da água, recursos naturais inestimáveis para a fixação e o bem-estar das populações residentes assim como para o aumento da produção nacional e a melhoria da balança alimentar do país, essas mesmas forças continuarão atentas e a lutar para que esses objectivos de futuro sejam alcançados.

Macrolocalização do Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva Os recursos hídricos atraem a nossa atenção na medida em que as necessidades e exigências de disponibilidade de água doce, em quantidade e em qualidade, aumentam ao ritmo do crescimento da população e do nível de poluição, à escala mundial. Hoje, a água é um bem natural precioso, por escassa e pela qualidade frequentemente inadequada para o abastecimento humano. Não discutindo a formulação evolutiva do conceito, o desenvolvimento sustentado terá de ser suportado na preservação dos recursos naturais, designadamente em fontes de energia tendencialmente renováveis, em recursos minerais tendencialmente reciclados, em disponibilidade de água e na preservação da biodiversidade.

O aproveitamento dos recursos de água doce superficiais coloca a evidente necessidade de construção de barragens cujas albufeiras regularizem os cursos de água e idealmente optimizem a disponibilidade de água colhida e escoada em cada bacia hidrográfica.

As barragens colocam contudo uma variedade de problemas que requerem consideração atenta - designadamente riscos geotécnicos e sísmicos e impactos biológicos, climáticos, agrícolas, sóciais e económicos, nos territórios e nas populações adjacentes.

As barragens representam sempre uma violenta perturbação, interferindo nos equilíbrios naturais, diminuindo a biodiversidade, destruindo o património cultural e suscitando problemas sociais. As barragens constituem uma violenta perturbação da dinâmica fluvial, interferindo no ciclo natural dos processos erosivos e sedimentares, causando impactos locais mas também regionais que alcançam o mar, subtraindo nutrientes necessários nas águas estuarinas e costeiras e contribuindo para a erosão das linhas de costa.

Clique para ampliar Sendo as barragens e as redes hidráulicas elementos fundamentais na gestão dos recursos hídricos para aprovisionamento de água, importantes também no âmbito dos recursos energéticos renováveis, a análise dos seus impactos positivos e negativos deve ser feita integradamente, sendo em cada caso imperativa a realização de estudos que integrem o conhecimento da atmosfera, da biosfera, da hidrosfera e da parte superior da litosfera, no quadro geográfico concreto em que se inserem.

A longa experiência acumulada, desde a Antiguidade até ao século XX, século em que se realizaram as mais ambiciosas obras de engenharia deste tipo, desde os Estados Unidos ao Egipto e à China, permite que os problemas inerentes a este tipo de empreendimento sejam hoje em princípio antecipáveis. O que não quer dizer que tenham sido – e sejam já – completa e inteiramente ponderados, o que só será possível se, aos interesses económicos sectoriais ou mesmo privados, de curto prazo, se sobrepuser o interesse social de longo prazo, em que o interesse humano não é separável do equilíbrio dos sistemas naturais.

Portugal tem, desde a década de 1950, uma considerável experiência no projecto e construção de grandes barragens, para fins de irrigação e de produção hidroeléctrica. Desde então até agora tais empreendimentos tornaram-se mais exigentes, na avaliação dos respectivos benefícios e dos respectivos impactos. Consequências indesejáveis não previstas ou não ponderadas, visão redutora da utilidade económica e social da água e erros de apreciação cometidos, são lições do passado que devem ser aprendidas.

Foto da barragem de Alqueva Nunca tantos estudos foram feitos em Portugal, em empreendimentos hidráulicos, como no caso da barragem de Alqueva e do plano de rega do Alentejo. Mas permaneceram lacunas nos estudos prévios feitos, designadamente no que toca ao património arqueológico da zona da albufeira, que só muito parcelarmente foi inventariado, ao estudo climatológico prévio à construção da barragem, que não foi feito, e ao mais pormenorizado estudo da complexa zona de falhas em que a albufeira e a própria barragem se inscrevem.

Agora que a albufeira de Alqueva está já em enchimento, para além dos estudos prévios do empreendimento que foram (ou não foram) feitos, impera a necessidade de manter sob observação e monitorização, ao longo de largos anos, os impactos desta grande albufeira, alguns que se farão sentir no curto prazo mas outros que só a longo prazo se tornarão evidentes. Estão reconhecidamente em causa a sismicidade induzida ou desencadeada pelo peso da massa de água, a alteração da climatologia local e regional induzida pela absorção de radiação solar e o incremento de vapor de água na atmosfera, a qualidade de água afluente, que deverá permitir a utilização dessa água para todos os fins úteis previstos e permitir manter a albufeira em condições de vida biológica equilibrada.

Clique para ampliar Os estudos deverão pois prosseguir (em parte ser iniciados), com não menor empenho e assiduidade, designadamente mantendo redes de monitorização do ambiente físico, incluindo a teledetecção via satélite. E, bem assim, deverão ser monitorizados a qualidade química e microbiológica das águas afluentes (sobre as quais impendem graves preocupações), os impactos da albufeira sobre as águas subterrâneas e, ainda, a erosão e o transporte de sedimentos na bacia hidrográfica do Guadiana.

As potencialidades agrícolas proporcionadas pela disponibilidade de uma boa rede de irrigação e a boa gestão da qualidade dos solos exigem acção esclarecida. Importa enfrentar o futuro também na perspectiva de precaver os riscos e de mitigar os impactos.

É evidente a necessidade de aprofundar e acompanhar o plano de ordenamento e utilização dos solos irrigados no perímetro do Alqueva, acompanhando também o comportamento dos presentes ecossistemas e os sistemas culturais tradicionais, face ao impacto climatológico.

O assoreamento das albufeiras, que se repercute no tempo de vida útil das mesmas, requer o seu desassoreamento a prazo; ora a análise desses sedimentos oferece a possibilidade de investigar os mecanismos de erosão e os processos químico-biológicos que operam nas bacias hidrográficas a montante. Acresce que os materiais dragados, ricos em nutrientes, se revelam de grande utilidade para a recuperação de solos empobrecidos; esta metodologia pode desde já ser aplicada às nossas albufeiras mais antigas.

A produção hidroeléctrica, não sendo determinante num grande empreendimento de fins múltiplos, também é importante, tendo em consideração a grande capacidade desta barragem para a regularização sazonal (e parcialmente inter-anual) do caudal do rio, e maior será essa importância quando a barragem for utilizada também para o armazenamento de energia da rede eléctrica. Com efeito, a barragem do Pedrógão, a jusante de Alqueva, criará uma albufeira de contra-embalse cuja operação, em regime reversível de turbinamento e bombagem da central de Alqueva, possibilitará a recuperação dos caudais utilizados por Alqueva na produção de energia eléctrica e o armazenamento nesta de energia da rede eléctrica.

Quer dizer que, com mais estudo e criatividade, não temos de recear o futuro; o conhecimento científico, se apoiado e bem aplicado, pode transformar o sentido das realidades, e até custos em benefícios.

Mas o futuro, como o acidentado percurso passado, não se encontra facilitado, posta a aparente confusão ou conflito de atribuições entre instituições com responsabilidade directa ou indirecta na gestão do empreendimento, e posta a agressividade de interesses económicos privados, com finalidades privadas. A escassa acessibilidade pública à informação científica e técnica teve e poderá continuar a ter repercussões negativas na opinião pública. E os estudos científicos de acompanhamento dos impactos ambientais do empreendimento e de identificação de seus eventuais riscos deverão ser apoiados.

O planeamento, o acompanhamento e a gestão dos grandes empreendimentos hidráulicos de fins múltiplos são tarefas complexas que requerem capacidade científica e técnica, a vigilância cívica e o empenhamento político. Vamos a isso.

Alqueva é um marco importante, mas não é o fim de um caminho. O plano de rega do Alentejo não está ainda concluído, em redes de distribuição e em albufeiras secundárias. E o potencial hidroeléctrico no território nacional ainda pode ser duplicado, embora a maioria dos grandes empreendimentos esteja já realizada; algumas grandes centrais hidroeléctricas e muitas de médio porte estão por realizar.

O país não poderá progredir sem valorizar os seus recursos desses dois bens preciosos, sem os quais nem a vida social nem o progresso económico se podem sustentar: a Água e a Energia.

11/Dez/2002

Este artigo encontra-se em http://resistir.info
16/Dez/02