Entrevista do Gen. Vasco Gonçalves
[*]
Um outro assunto: todos sabemos que cada vez menos os estados são donos
e senhores dos seus destinos. As influências e pressões
internacionais são, infelizmente, muito fortes, sobretudo nos pequenos
países como o nosso. O processo revolucionário foi acompanhado
com a máxima atenção (e preocupação) pelas
grandes potências mundiais. O Senhor General afirmou que a CIA trabalhou
directamente na queda do Quinto Governo. Não é, naturalmente, o
único a fazê-lo, mas o seu testemunho tem um valor especial...
Bom... é um assunto muito delicado, ainda mais para mim, como
compreende. Pela própria natureza do meu cargo, não podia afirmar
publicamente, como de facto nunca fiz, que a CIA trabalhou directamente na
queda do Quinto Governo, mas isso não significa que não tivesse
as minhas ideias sobre o que se passava. Concretamente, e como exemplo, posso
citar as pressões feitas pelos americanos sobre o Presidente da
República, que condicionaram o seu apoio à ponte aérea
para regresso dos colonos de Angola e à demissão do Quinto
Governo Provisório. Agora, os serviços de inteligência, os
serviços secretos, se trabalham bem, não deixam, assim, no
momento, provas concretas, fáceis de apresentar publicamente. Podemos
ter suspeitas, indícios, informações, hipóteses, e
daí tiramos conclusões e procuramos agir em conformidade.
Só quando são cometidos erros grosseiros, ou desclassificados os
arquivos dos serviços, ou ainda quando surgem a posteriori
declarações de antigos agentes ou seus colaboradores é que
aparecem à luz do dia essas actividades.
O Senhor General teve, por razões institucionais, contacto directo com o
embaixador norte-americano, Frank Carlucci. Com que opinião pessoal
ficou?
Antes de mais, é do conhecimento geral que as actividades de um
embaixador dos EUA e as da CIA, em qualquer país, são partes do
mesmo todo. Tive, naturalmente, contactos pessoais de primeiro-ministro para
embaixador dos EUA, mas, por várias razões, era necessário
ser reservado e cuidadoso nas conversas. Ele era, como sabe, um alto
funcionário da CIA, com uma folha de serviços
«brilhante», e foi por isso também que veio para Portugal. E
a acção que cá desempenhou também deve ter sido
muito apreciada pelo Governo norte-americano, uma vez que daqui foi promovido a
vice-director daquela agência. Certamente que, dados os reflexos na
opinião pública daquilo que os jornais publicavam desse passado,
ele tinha a noção de que nos era suspeito, assim era
também cauteloso. Apesar de conhecida essa actividade em vários
países, como o Zanzibar, o ex-Congo Belga e o Brasil, não havia
condições para se recusar a sua acreditação pelo
Presidente da República, general Spínola, e pelo governo
português. Éramos aliados dos EUA, membros da NATO e uma atitude
dessas seria considerada pelos americanos um acto hostil.
Mas com todas essas cautelas (e reservas) de parte a parte como decorriam os
vossos encontros?
A melhor resposta à sua pergunta poderá ser aquilo que disse aos
jornalistas aquando do nosso primeiro encontro. Quando terminou, estavam
muitos jornalistas para saber como decorreu. Disse-lhes que acertara um
modus vivendi
com ele. Que tínhamos falado com franqueza e que, se esta prevalecesse,
as relações poderiam correr bem. Franqueza era, naturalmente,
uma expressão de circunstância, diplomática. Agora dessa
franqueza também fazia parte a ideia, que penso que lhe transmiti, de
que quando os governos têm a noção da sua dignidade, do
respeito pela independência nacional, podem, de certa forma, contrariar
tentações de intervenções nos seus assuntos
internos. O próprio Carlucci, no primeiro encontro que teve comigo,
disse-me que pensava dar uma conferência de imprensa e perguntou-me se eu
via nisso algum inconveniente. Respondi--lhe que poderia dizer o que
entendesse, desde que não molestasse o MFA e o governo português,
nem se intrometesse nos nossos assuntos internos.
Foi então esse o tom do primeiro encontro.
Ao contrário do que se possa pensar, tive muito poucos encontros com
ele. Então a partir do meu regresso de Bruxelas, em fins de Maio de 75,
não tive praticamente nenhum. Penso que, depois das
conversações na capital belga com o presidente dos EUA e o
secretário de Estado Henry Kissinger, e tendo eles verificado, no
decorrer do encontro, que não resultaria pressionarem-me, que eu
não era influenciável, apostaram noutras pessoas dentro e fora do
MFA, o que, aliás, já vinham fazendo. O final do encontro,
embora correcto, foi visivelmente inamistoso por parte do presidente Ford.
É que ele queria, quase explicitamente, que eu lhe garantisse que,
apenas chegado a Lisboa, afastaria os comunistas do Governo. É claro
que eu lhe respondi que não, que não eram os comunistas que
detinham o poder, que eles integravam um governo com a mesma legitimidade dos
outros partidos.
Mas voltando aos seus contactos com Carlucci. Tenho informação de
que, logo no primeiro encontro, ele o tentou convencer de que a CIA estava a
mudar substancialmente os seus métodos de trabalho, e que agora apostava
fundamentalmente em apoiar social e economicamente os países em
desenvolvimento...
Não me lembro de ele ter falado concretamente da CIA, mas disse-me, de
facto, que o governo dos EUA pretendia apoiar-nos em diversos domínios
da nossa vida económica. Mais tarde andou pelo país,
nomeadamente no Norte, com variados programas de apoio.
Mas não com o Quinto Governo...
É verdade, mas o que eu lhe disse foi que todos os apoios que os EUA nos
quisessem dar deviam ser canalizados para o nosso Governo, que, depois,
administraria esses apoios segundo os seus próprios critérios.
Quer dizer, eles atribuíam as verbas, e nós é que depois
as utilizaríamos como melhor nos parecesse. Eu percebi que ele queria
andar aí pelo país a fazer a política do governo americano
e a propaganda dos «melhores amigos de Portugal». Clarifiquei assim
o âmbito das suas actividades no sector económico e social,
nomeadamente o da habitação social. Portanto, nunca perdi de
vista que estava a falar com um homem da CIA, e procurava limitar o seu campo
de actuação de modo a ser, quanto possível, controlado
pelo governo. Este devia ser sempre o intermediário para qualquer tipo
de apoio, e não seria a administração americana a entrar
directamente em contacto, fosse para o que fosse, com empresas, autarquias,
etc...
Mas foi mais ou menos isso que aconteceu com o Sexto Governo.
Sim, foi. Ele passou a deslocar-se por sua conta por todo o país, no
papel de benemérito desinteressado e carinhoso, que só queria
ajudar e beneficiar o nosso povo.
Voltando um pouco atrás: apesar das dificuldades referidas em
apresentar provas concretas, é quase um lugar-comum assinalar a
presença de vários serviços secretos europeus (franceses,
alemães, espanhóis), e particularmente da CIA, em todas as datas
críticas do nosso processo revolucionário: 28 de Setembro, 11 de
Março, 25 de Novembro...
Vejamos as coisas com mais profundidade. A Revolução de Abril
foi, a vários níveis, como tenho afirmado repetidamente, uma
revolução desprotegida. Até ao 11 de Março,
só dispúnhamos dos serviços da Segunda Divisão do
EMGFA e das segundas repartições dos Estados-Maiores dos
três ramos. Ambos os serviços dependiam do CEMGFA. Trabalhavam a
informação militar e suas implicações
políticas, e utilizavam a metodologia e a técnica de tratamento
da informação da NATO, em estreito relacionamento com esta
aliança. Parte apreciável dos seus militares tinha sido formada,
no plano das informações, nas escolas da NATO, dos EUA e doutros
países aliados. Depois do 11 de Março, o MFA criou, na
dependência do CR, o Serviço de Detecção e Controlo
de Informações (SDCI), este já direccionado para a
informação sobre actividades contra-revolucionárias. Era
um serviço incipiente, inexperiente e limitado de meios, dirigido por
militares do MFA, que foi imediatamente extinto pelos vencedores do 25 de
Novembro. Mas, importa referir, nessa matéria nós éramos
uns aprendizes que davam os primeiros passos. Nas condições
concretas do país de que temos falado, e dados os fracos meios de
contra-informação de que dispúnhamos para nos defendermos
contra actividades conspirativas, necessitaríamos, absolutamente, em
primeiro lugar, de unidade, coesão e firmeza
político-ideológica do MFA; em segundo, de vigilância e
consciência política da população; em terceiro, de
uma política nacional favorável aos interesses das mais vastas
camadas da população; e, finalmente, de uma política
externa de independência nacional. A difícil
conjugação de todas estas condições não foi
possível. A unidade do MFA foi dramaticamente abalada, como vimos. No
respeitante à vigilância popular (decisiva no 28 de Setembro e no
11 de Março) e à consciencialização política
da população, a travagem do processo revolucionário por
parte do PS, PPD, CDS e outros partidos menores (como o MRPP), as
divergências insanáveis no MFA, o regresso da
população branca das ex-colónias, etc, criaram
inevitável e deliberadamente grandes divisões entre os
trabalhadores e o resto da população, que beneficiaram,
naturalmente, a contra-revolução.
SOARES & CARLUCCI: ELOGIOS MÚTUOS
Mas voltando ao papel da CIA ao serviço da
contra-revolução...
Voltamos, então, aos indícios, informações e
hipóteses, e, sobretudo, ao que tem aparecido ao longo destes anos em
livros, entrevistas, artigos de imprensa, etc. E nesse aspecto o material
é muito esclarecedor sobre apoios e contactos da embaixada americana, da
CIA e de outros serviços secretos (como os da Espanha franquista), em
ligação nomeadamente com o PS, o PPD e o CDS, quer no nosso
país, quer nas antigas colónias, durante o processo de
descolonização e mesmo antes. Estou a lembrar-me, por exemplo,
de declarações recentes de Carlucci e de Mário Soares,
elogiando-se mutuamente. Carlucci veio propositadamente a Lisboa, a convite de
Balsemão, para entregar o Globo de Ouro da SIC (1996) a Soares, e este
disse, entre outras coisas, que o antigo embaixador americano tinha tido um
papel «verdadeiramente fabuloso» em Portugal. Mais recentemente, em
Junho do ano passado, em cerimónia de homenagem a Carlucci, em Lisboa,
Soares enalteceu o papel do homem da CIA na «instauração da
democracia em Portugal»! Por sua vez, Hall Temido, antigo embaixador de
Portugal nos EUA, escreveu nas suas memórias que Carlucci «foi um
protector das forças democráticas, designadamente do PS e de
Mário Soares». Recordo ainda que o New York Times, em Setembro de
1975, noticiava que a ajuda americana ao PS para combater o Quinto Governo
seria canalizada por intermédio da CIA, por meio dos partidos
socialistas e dos sindicatos sob sua influência da Europa ocidental.
Segundo a imprensa da época, o Presidente Ford disse que a
operação tinha custado apenas dez milhões de
dólares.
Mas não só. As sensacionais revelações de Rui
Mateus sobre o Plano Callagan são deveras esclarecedoras. Trata-se de um
plano de intervenção dos serviços secretos americanos
(CIA) e ingleses (MI6) de apoio ao golpe contra-revolucionário de 25 de
Novembro, em preparação, e que previa o lançamento de
operações clandestinas, apoio logístico aos militares
contra-revolucionários, utilização de meios aéreos
e marítimos para abastecimento da «resistência
portuguesa» na zona norte, etc. Neste plano, segundo penso, se integrou a
deslocação de Mário Soares, no dia 25 de Novembro, ao
Norte, onde Pires Veloso e Lemos Ferreira, da Força Aérea, lhe
deram apoio. O plano não veio a ser concretizado porque a esquerda
militar, o Partido Comunista e as forças progressistas não se
deixaram envolver na provocação do 25 de Novembro e porque Costa
Gomes chamou a si a dependência directa de todas as unidades militares do
país. Um dos objectivos do plano era provocar o aparecimento da
«comuna da Lisboa», a que se seguiria a sua repressão por
forças militares a partir da zona norte. A própria
expressão «comuna de Lisboa» não pode deixar de
suscitar a imediata associação com a matança
sanguinária da Comuna de Paris, em 1871.
Também Rui Mateus cita Carlucci como um dos heróis do 25 de
Novembro. Como vê, as referências não faltam e não
precisamos de grande esforço para chegar a conclusões.
Aliás, são os próprios autores e actores dessas manobras
contra-revolucionárias a confessar, com todo o despudor e até com
orgulho, a sua actividade conspirativa, como recentemente mostrou Álvaro
Cunhal, com a maior clareza, no seu livro "Verdade e Mentira na
Revolução de Abril".
[*]
Capítulo do livro "Vasco Gonçalves – Um General na
Revolução"
, publicado pela Editorial Notícias. Entrevista conduzida por
Maria Manuela Cruzeiro.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info