Capítulo do livro, ainda inédito, do General Vasco Gonçalves
Documento dos Nove
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Vasco Gonçalves – Um General na Revolução (Entrevista de Maria Manuela Cruzeiro). Dia 5 de Novembro, às 18h30, na Associação 25 de Abril (Rua da Misericórdia, 95), em Lisboa Publicado pela Editorial Notícias e o Círculo de Leitores. A apresentação da obra pelo será feita coronel-engenheiro Nuno Pinto Soares. |
Passemos então ao Documento dos Nove. Antes mesmo da análise
desse documento, gostaria de que o Senhor General evocasse um pouco o contexto
que lhe dá origem e a forma como ele surge.
Esse documento surgiu, para mim, de forma estranha e surpreendente, porque era
um militar, tinha e continuo a ter um certo número de normas da
disciplina e do procedimento dos militares e, acima de todas, a da lealdade.
Por isso, a minha primeira reacção foi considerar que aquilo era
um procedimento inadmissível. Surgiu à margem de todas as
estruturas institucionais do MFA, pois não foi apresentado para
discussão interna nem ao Directório, nem ao CR, nem à
Assembleia de Delegados do MFA. Foi entregue ao Presidente da República
e ao comandante do Copcon, no mesmo dia em que era divulgado nos jornais e na
rádio, e ainda posto a circular nas unidades para recolha de
assinaturas, procurando, certamente, explorar a falta de
politização da generalidade dos militares e da nossa
população. Por isso digo que quer como primeiro-ministro, quer
como membro do CR, quer como militar em sentido estrito, esse documento foi
profundamente desleal. Permita-me, a propósito, que lhe leia uma
passagem de uma entrevista de Melo Antunes: «Estávamos numa
confrontação, numa luta pelo poder, claro que era um acto de
subversão, que nada tinha a ver com a ética militar. A essa luz
é absolutamente condenável.»1
É por isso que lhe chama, na sua resposta, «um documento selvagem,
desrespeitador das estruturas democráticas do MFA»?
Sem dúvida. Na crítica que lhe fiz em Tancos, na assembleia do
Exército de 2 de Setembro, é analisado profundamente. Foi
nitidamente um documento selvagem. Poderão querer responder à
acusação, argumentando acerca da decisão polémica
da criação do Directório, mas essa decisão resultou
da aprovação de uma proposta feita na assembleia do MFA, com a
presença de todos os delegados. Portanto, foi feita às claras e,
não decidida nos corredores ou nos gabinetes. Pode ser
criticável, pode ter havido aspectos criticáveis, como a
descoordenação com o Conselho da Revolução, mas o
certo é que a apresentação dessa proposta na assembleia do
MFA, que tinha uma hierarquia de poderes superior ao Conselho de
Revolução, mostra boa-fé e lealdade. Portanto, não
se pode invocar que tínhamos constituído o Directório para
justificar esse procedimento. Em conclusão, são métodos de
actuação que considerei impróprios de militares com
grandes responsabilidades políticas perante o MFA e o nosso povo. O PAP
e o próprio Documento-Guia, por muitas críticas que se lhes
façam, não apareceram de surpresa, foram discutidos nas nossas
assembleias.
Passemos então à análise do documento. Independentemente
de condenar a forma como apareceu, que aspectos lhe parecem de salientar?
O documento tinha, quanto a mim, um objectivo fundamental: pôr fim ao
processo revolucionário, às transformações
económicas, sociais e políticas a caminho do socialismo. É
centrado, na melhor das hipóteses, num conceito de terceira via para
Portugal e exprime um pensamento de esquerda da pequena e média
burguesia, bem como os seus receios em relação à
ascensão da classe operária, em geral, e do Partido Comunista, em
particular.
Aceitando que é um documento de esquerda, como pode afirmar que tentava
acabar com o processo revolucionário? Não seria antes uma
tentativa de consolidar conquistas e não empurrar decididamente esssas
classes para a direita e a contra-revolução?
De uma leitura superficial e da linguagem utilizada poderá resultar essa
ideia, mas analisando-o em profundidade vemos que é um documento com
grandes contradições ambiguidades e debilidades teóricas.
E, mesmo, com falsidades, como, por exemplo, afirmar o comprometimento do MFA
com «determinado projecto político» , insinuando que era com o
do PCP. Além disso, analisa as contradições,
agitações e perturbações próprias de uma
revolução, mas pelos fenómenos de superfície,
não mergulhando nas questões de fundo, e essa análise
traduz, repito, as sérias preocupações da burguesia pelos
seus interesses de classe, que via ameaçados pelas conquistas
democráticas. É isso que, por exemplo, se expressa na
acusação de estarmos a seguir um modelo de sociedade socialista
de tipo europeu oriental. Pergunto: que sinais de modelo soviético
haveria nas conquistas alcançadas? Não vieram todas elas a ser
integradas na Constituição de 1976, com a aprovação
do Presidente da República, do próprio Grupo dos Nove, do PS e do
PPD, além do Partido Comunista e do MDP/CDE?
Mas, por outro lado, também rejeitava os modelos sociais-democratas
conhecidos.
E ao mesmo tempo afirmava que a via para o socialismo passou a ter um
carácter irreversível, sobretudo a partir das
eleições para a Assembleia Constituinte. Ora se essas
eleições foram imediatamente aproveitadas para a
contestação do processo revolucionário e não para a
consolidação da via para o socialismo, havia aqui, no
mínimo, uma enorme ambiguidade, para não dizer
mistificação. Isto é: se de facto o queriam, não
fazia sentido centrarem as suas críticas em quem o defendia de facto,
poupando os seus reais inimigos. Foi isso que fizeram.
Por exemplo?
Em vez de defenderem, como faz o PAP, a «necessidade de
liquidação do poder explorador da grande burguesia monopolista,
latifundiária e financeira e da colectivização dos meios
de produção para atingir a sociedade socialista», em vez
disso, lamentam e criticam «o ritmo, impossível de absorver, das
nacionalizações» e apontam «o grave risco de ruptura do
tecido cultural e social preexistente, o mínimo indispensável de
normalidade nas relações sociais entre todos os
portugueses». Como se o caminho para o socialismo, opção que
havia sido aprovada pelo MFA, fosse compatível com a
manutenção do tecido social preexistente e com a normalidade nas
relações sociais entre «todos» os indivíduos e
«todas» as classes sociais... Por outro lado, não rejeitando
as nacionalizações, fazem-se no documento graves
acusações sobre a situação económica do
país e a crise para que se encaminhava. Ora isso era mentira. A
missão da OCDE, insuspeita, que se deslocou a Portugal em Dezembro de
1975, a fim de estudar a nossa situação económica,
considerou, como atrás já se disse, que esta era
«surpreendentemente saudável», embora reconhecesse «a
fluidez da situação e as potencialidades perigosas»
existentes.
Portanto, em sua opinião, o documento erra completamente o alvo...
Não digo que errou o alvo... pois atingiu o seu objectivo
contra-revolucionário. Diria que foge à análise profunda
do processo revolucionário e escolhe o caminho fácil de explicar
todas as dificuldades pelos «erros de direcção
política», pelos «desvios graves de orientação
no interior do MFA», pela «falta de credibilidade e manifesta
incapacidade governativa da actual equipa dirigente», etc., etc...
Mas como explica que tenha sido, de todos os documentos produzidos por
militares, o único que agitou verdadeiramente a sociedade civil?
A generalizada carência de consciencialização
política da nossa população, a sua
composição social, a ideologia burguesa dominante, o
conservantismo, a juntar ao medo de transformações estruturais
profundas, à ideologia e preconceitos anticomunistas e, em particular,
à enorme influência de uma Igreja Católica conservadora (e
mesmo reaccionária), todos estes factores, a coberto da
invocação da ameaça de uma ditadura comunista contra a
jovem democracia portuguesa, serviram, de facto, na prática, para que a
mensagem contra-revolucionária passasse.
Para além da sua própria resposta, apresentada na assembleia do
MFA, que outras reacções houve, no sector militar, ao documento?
Dado o procedimento do Grupo dos Nove, desleal quer no plano das
relações entre militares, quer no das relações
políticas dentro do MFA, concluímos que a
publicação do documento era a consumação da ruptura
entre os moderados e aquela que, em meu entender, era a esquerda mais coerente
e consequente. Contudo, depois da análise e discussão da
situação com camaradas que também repudiavam a atitude do
Grupo dos Nove, concluímos que devíamos encontrar-nos com eles e
discutirmos em conjunto a situação.
Há um nome em que ambos estamos a pensar, certamente, porque é
uma figura-chave de todo o processo: Melo Antunes. Como, neste contexto que
está a expor, avalia a sua actuação?
Bem, penso que o major Melo Antunes era dos homens mais conscientes dentro do
MFA, que tinha mais bagagem política, que tinha desses assuntos um
conhecimento que a generalidade dos elementos do MFA não possuía.
É claro que ele foi fundamental na elaboração do Documento
dos Nove, que traduz, segundo penso, fielmente as suas ideias. Devo esclarecer
que as minhas críticas ao documento não me impediram nunca de
reconhecer as grandes qualidades de Melo Antunes, e uma delas era a
coerência. Ele não mudou de ideias ou de posições,
no fundamental, entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro. Era um homem
sinceramente de esquerda (à esquerda do PS), era um patriota, um
anticolonialista convicto, e não era anticomunista, como mostram as suas
declarações no 25 de Novembro. Na crise Palma Carlos, no 28 de
Setembro, no 11 de Março, esteve sempre firmemente com a esquerda do
MFA, contra Spínola, quer na política interna, quer na de
descolonização. É conhecida de todos a influência
decisiva que teve nesse processo logo a partir do Segundo Governo
Provisório. Foi ele a propor-me que o MFA passasse a desempenhar um
papel determinante no processo (com o que concordei, de um modo empenhado),
impedindo os objectivos neocolonialistas de Spínola e levando à
prática os nossos propósitos de uma descolonização
verdadeiramente libertadora. Como todos nós, certamente, não
esperava os desenvolvimentos que o processo teve desde o derrubamento do
fascismo-colonialismo.
Afirmou atrás que Melo Antunes não mudou entre o 25 de Abril e o
25 de Novembro. Mas diz também que ele não esperaria que o
processo fosse o que foi...
Melo Antunes apoiou o processo revolucionário até a um certo
ponto. À medida que este se aprofundou, foram surgindo as suas reservas
quanto à legitimidade de certas medidas e a sua correspondência
com o exercício das liberdades políticas e com o respeito pela
vontade popular maioritária. As divergências entre ele e a
esquerda militar, de que eu fazia parte, manifestaram-se em aspectos como a
unicidade sindical (que acabou por apoiar, após ter manifestado certas
reservas), o Plano Económico de Transição e o primeiro
Pacto MFA-Partidos. Lembro-me de que não quis tomar parte activa nas
negociações do Pacto, ao contrário do que seria de
esperar, dado o seu prestígio e a sua preparação
política. Embora tenha acompanhado indirectamente essas
negociações, penso que não quis participar por ter
reservas quanto à legitimidade de o MFA propor condicionalismos à
Assembleia Constituinte (consagração das conquistas
democráticas alcançadas por via revolucionária), que, no
seu entender, limitavam as liberdades políticas da Assembleia. Por outro
lado, manifestava reservas quanto ao Partido Comunista e às suas
alegadas «tendências hegemónicas», à
Intersindical, à actuação da classe operária e das
massas populares. Salientava que haviam sido os militares e não a classe
operária a derrubar o fascismo. Respondia-lhe que não receava
esse «perigo», que nós, MFA, é que tínhamos as
armas, mas a minha resposta não lhe parecia realista nem convincente.
Politicamente, temia que estivéssemos a avançar para um regime do
tipo do dos países socialistas da Europa oriental (como, aliás,
refere no Documento dos Nove). Receava pelas liberdades (as palavras traduzem a
ideia com que fiquei do seu pensamento), obcecado, quanto a mim, pelo que
pensava estar a acontecer nos países do chamado «socialismo
real». Eu considerava que essas posições eram erradas, que
não caminhávamos para um regime do tipo do dos países
atrás citados, mas Melo Antunes, repito, não era anticomunista,
era, mais propriamente, anti-soviético.
Economicamente, ele pensava que, sendo nós uma economia integrada na
Europa e no Ocidente, tínhamos condicionamentos políticos e
económicos que não nos permitiam um desenvolvimento separado
desse contexto, podíamos mesmo vir a ser hostilizados, por exemplo,
pelos Estados Unidos e ou por países da Europa ocidental. Estas
preocupações influenciaram muito a acção de Melo
Antunes. Contudo, por outro lado, no processo de descolonização,
não foi inibido por preocupações desse tipo, trabalhou e
lutou, de facto, por uma solução para as antigas colónias
que não fosse neocolonialista. Afirmou, mais tarde, que o que o separava
da esquerda militar dizia respeito «à legitimidade do que
podíamos fazer», na fase de transição até
à democracia.
Segundo Dinis de Almeida, a grande tragédia da Revolução
portuguesa foi o desentendimento entre os seus dois maiores teóricos:
Vasco Gonçalves e Melo Antunes. Concorda?
Compreende que é delicado responder a essa pergunta, mas faço
questão de esclarecer detalhadamente as nossas divergências, que
eram sobre:
o sentido profundo da opção socialista do MFA, decidida na
assembleia de 7 de Abril de 75;
o significado das medidas adoptadas e a adoptar, seus reflexos imediatos
e a prazo na nossa população, quer no âmbito
económico-social, quer quanto ao atraso da consciência social em
relação ao alcance das transformações estruturais
efectuadas (nacionalizações, relações de trabalho,
reforma agrária, etc), tendo presente a despolitização do
nosso povo;
o modelo e a estratégia de desenvolvimento;
a composição da base social de apoio à
Revolução;
as alianças de classes a efectivar pelo MFA;
as relações externas políticas e económicas.
Sublinho de novo, porque me parece essencial, que a elaboração e
a aprovação da Constituição da República
eram etapa fundamental do processo revolucionário, tal como havia sido
acordado no Pacto MFA-Partidos. Contudo, PS e PPD estavam a procurar pôr
fim a esse processo, mostrando não terem assinado o pacto de
boa-fé. Duas opiniões diferentes se confrontavam: a partilhada
por Melo Antunes e os moderados, que veio a ser maioritária no fim de
Agosto de 75, defendia que a condução do processo deveria ser
feita por uma aliança entre o MFA e a pequena e média burguesias
(obviamente seus sectores democráticos), uma vez que a ditadura
não fora derrubada por uma revolução popular, pela classe
operária e pelos trabalhadores, mas pelo MFA
aqueles desempenhariam um importante papel apoiante, de aliados, mas
não de direcção; e a partilhada pela esquerda militar, que
depois de Agosto-Setembro veio a ser minoritária: a de que essa
aliança deveria ser realizada pelo MFA com a classe operária e as
outras classes trabalhadoras, a pequena burguesia e estratos ou sectores da
média burguesia. As classes trabalhadoras deveriam ter, tal como o MFA,
um papel principal e decisivo para levar à prática a
opção socialista do MFA. Como seria possível realizar uma
transição democrática e pacífica (que estava ao
nosso alcance por dispormos do poder militar) para o socialismo, sem a
força decisiva da classe operária e dos trabalhadores em geral?
A situação que se vivia, com a crescente
intervenção das massas populares, impulsionadas sobretudo pelos
comunistas, causou apreensões entre os moderados (quanto a mim
não justificadas) sobre o futuro da democracia e das liberdades. Eram
influenciados, consciente ou inconscientemente, por posições de
classe. Tragicamente, os moderados chegaram ao ponto de considerar a esquerda
militar como seu inimigo principal. Melo Antunes pretendia caminhar como que
por uma terceira via, mas a experiência tem mostrado que essa via
é o caminho da social-democracia para a direita. Recusando uma
discussão aprofundada das nossas opiniões, faltando a
reuniões combinadas, os moderados enfraqueceram o MFA, favoreceram,
muitos deles de boa-fé, a contra-revolução. Foi mais forte
a resistência da ideologia burguesa e pequeno-burguesa entre os sectores
maioritários dos militares e dos trabalhadores, a influência
caceteira dos sectores mais reaccionários do clero, sobretudo a norte da
cordilheira central, explorando o conservantismo, os aspectos mais negativos do
tradicionalismo e do espírito religioso de grande parte da nossa
população, e tudo isto conduziu ao 25 de Novembro.
Mas considera Melo Antunes um homem de Novembro?
Gostaria de lhe responder com uma citação, que acho
esclarecedora, retirada da entrevista que ele lhe deu para o Centro de
Documentação 25 de Abril: «Mas, para além das
acções legais e semilegais, a que deitávamos mão
para obter a supremacia militar, também desenvolvíamos
acções clandestinas para nos prepararmos para uma
confrontação que eu julgava inevitável. O nosso caminho
era o de apertar o cerco, ganhar posições; fomos criando cada vez
mais dificuldades: ou saltava o PC, ou a extrema-esquerda. Para isso
tínhamos uma organização militar em marcha.» Mas
também não queria deixar de a confrontar com outra
declaração de um outro destacado elemento do Grupo dos Nove,
Vasco Lourenço: «Tínhamos pensado (os Nove) numa sociedade
muito mais justa do que a que se vive hoje em Portugal e em que a
política social estivesse mais aprofundada do que se encontra realmente.
O que existe em relação ao Documento dos Nove é a parte da
democracia formal. Se ele tivesse sido posto em prática, penso que
estaríamos bastante melhor.» Esta era a utopia de muitos moderados,
confundidos, arrastados para a contra-revolução. O PS, o PPD e o
CDS aproveitaram essas contradições e colaram-se-lhes contra a
esquerda militar, constituindo uma ampla frente com importantes apoios na
direita e extrema-direita, que haviam sobrevivido ao 25 de Abril e que sempre
estiveram contra o MFA.
Apesar de ter apresentado um documento de resposta ao Documento dos Nove
(naturalmente de natureza política), afirmou que a sua
reacção foi, mais do que política, eminentemente moral.
Porquê?
A minha reacção, como a de outra pessoa qualquer, teve
várias componentes: uma moral, uma política e outra militar. Uma
coisa que me chocou muito, e aos meus camaradas que se opuseram ao Documento
dos Nove, foi precisamente ele ter sido publicado sem ser discutido no Conselho
da Revolução ou na Assembleia do MFA. Quer dizer, não
foram respeitadas as instituições democráticas que
tínhamos criado dentro do MFA, não foram ouvidos os
órgãos dentro dos quais esse documento devia ter sido analisado.
Portanto, considero que isso foi um procedimento desleal da parte desses meus
camaradas, e nessa análise certamente que influi muito a nossa
formação militar porque estamos sempre a procurar pôr em
prática procedimentos leais e a defender a correcção das
relações, etc. Por outro lado, afirmei muitas vezes, e continuo a
fazê-lo, que a política e a moral andam de par e penso que
não é possível destrinçar uma da outra. Todos os
factos políticos incluem um conteúdo moral e, portanto, esse
não podia ser diferente. A minha reacção, como,
aliás, a dos camaradas que estavam comigo, terá sido muito
influenciada por questões de ética e da nossa própria
formação militar, da nossa idiossincrasia. Isto do ponto de vista
das acções desencadeadas para nos opormos ao Documento dos Nove e
às acções que vinham sendo desenvolvidas por eles.
Poderá dizer-se que não teremos sido muito habilidosos, que
não deviam ser expulsos ou suspensos do CR os camaradas que assinaram o
documento, mas não só reagimos em termos puramente
políticos, como também em termos éticos.
Logo no dia seguinte à saída do Documento dos Nove, ou seja, dia
8 de Agosto de 1975, toma posse o Quinto Governo Provisório. Sabe-se que
o Senhor General teve grandes dificuldades para formar o seu novo gabinete.
É verdade que Otelo foi convidado para primeiro-ministro?
Não, Costa Gomes nunca convidou Otelo para primeiro-ministro. Surgiu a
ideia, quando se estava nas diligências para a constituição
do Quinto Governo, de Otelo ser o vice-primeiro-ministro, e eu concordei, por
achar que podia dar mais força ao Governo. Isso foi falado com ele antes
da sua partida para Cuba e, em princípio, aceitou. Depois (é uma
pessoa volúvel no plano das ideias e dos procedimentos
políticos), quando regressou já não quis. Penso que houve
diligências do Grupo dos Nove com quem ele tinha relações
mais estreitas do que comigo. Aquilo que unia mais Otelo ao Grupo dos Nove
(sobretudo aos elementos do Exército) era o facto de serem mais ou menos
do mesmo tempo da Escola do Exército ou da Academia Militar, assim como,
também, a oposição à minha pessoa e os tais
preconceitos anticomunistas. Otelo era um homem com uma espécie de
anticomunismo que, se não era primário, andava lá muito
perto.
Mas o Senhor General aceitava colaborar com Otelo Saraiva de Carvalho como
vice-primeiro-ministro? Quais eram, na altura, as vossas
relações?
Nunca tive quaisquer confrontos com Otelo; sabia que ele às vezes dizia:
«Qualquer dia faço saltar o Vasco» e coisas assim no
género. Só quando a situação se agravou é
que chegou a afirmar ao general Costa Gomes, numa reunião do
Directório: «Se fosse eu que mandasse, demitia o nosso general,
não o queria para primeiro-ministro», etc., mas isto já
depois do Quinto Governo em funcionamento. Por mim, não tinha dessas
discussões com Otelo e pensava que, se ele fosse vice-primeiro-ministro,
seria capaz de me entender com ele. Além disso, a situação
naquele momento era tal que se nos afigurava que, como vice-primeiro-ministro,
daria força ao Governo, que traria uma certa acalmia ao grupo do Copcon
e que poderia ser também uma certa caução em
relação aos moderados. Quer dizer, era um sinal de abertura, uma
prova de que afinal não estavam, como eles diziam, só comunistas
no Governo e que aquele sector do MFA, aquela sua esquerda mais consequente,
mais identificada com os interesses populares, não se encontrava, na
verdade, ao serviço do Partido Comunista.
Afirma que não teve confrontações concretas com Otelo
Saraiva de Carvalho, mas, por exemplo, numa reunião a 4 de Agosto de
1975, terá surgido uma. Eu especifico: foi exactamente a
propósito da crise que se desencadeou no Regimento de Comandos, causada
pela demissão de Jaime Neves. O Senhor General lembra-se de uma
reunião onde estiveram ambos presentes?
Não, nessa reunião não foi posta a questão. Noutras
ocasiões, Otelo afirmou que ia jogar as estrelas na
deposição ou na continuação do Jaime Neves como
comandante do regimento, mas esse assunto não o tratou comigo. Embora
tivesse naturalmente a minha opinião e não fosse alheio ao que se
passava, procurava não me imiscuir directamente nesses assuntos, que
eram do Copcon e, portanto, da competência do seu comandante supremo, o
general Costa Gomes.
Mas então essa reunião de 4 de Agosto, no Quartel-General da
Região Militar de Lisboa, foi para discutir o quê?
Eram questões relacionadas precisamente com a formação do
novo Governo. Por esses dias lembro-me, concretamente, de uma reunião a
3 de Agosto, em São Julião da Barra, e essa, a de 4 de Agosto. Em
nenhuma delas foi discutida a crise no Regimento de Comandos. Na primeira,
além do Presidente da República, primeiro-ministro, Otelo e
camaradas do CR esteve também presente o Prof. Teixeira Ribeiro, que eu
propusera para vice-primeiro-ministro do futuro Governo, que nesse momento
já estava esboçado. Foi então que Otelo me fez uma
crítica cerrada. Aparentemente, trazia de Cuba um certo espírito
de caudilho ou coisa parecida. De modo que eu, em jeito de
provocação e para saber da reacção dos presentes,
acabei por dizer mais ou menos isto: «Então, vá o Otelo para
primeiro-ministro. Se você diz que é capaz de fazer isto ou
aquilo... então vá para primeiro-ministro...»
Foi também uma forma de colocar o Presidente da República perante
aquela hipótese, que eu previa não ser, de maneira alguma, do seu
agrado. Otelo hesitou e disse:«Eu só posso aceitar se o Copcon
estiver de acordo.»
E foi então que se marcou para o dia seguinte, 4 de Agosto, uma
reunião no Quartel-General da Região Militar de Lisboa, na qual
seria posta aos comandantes das diversas unidades a questão de eu ser
substituído por Otelo.
Naturalmente que o general Costa Gomes ficou a ponderar e, muito preocupado,
mesmo antes de a reunião começar, disse-me mais ou menos o
seguinte: «Estive a pensar, parece-me que não seria bom o Otelo ser
o primeiro-ministro», mas não adiantou mais razões, como era
próprio do seu estilo muito reservado e cauteloso. Nessa reunião,
que começou com uma exposição de Otelo sobre as
razões que tinham levado à realização da mesma,
foram decisivas as intervenções de Mário Tomé e de
Dinis de Almeida, que afirmaram que, no seu entender, eu devia continuar a ser
primeiro-ministro. Então, os comandantes das unidades concordaram e o PR
e Otelo não puseram objecções de qualquer natureza. Fui
mandatado por unanimidade para formar o Quinto Governo Provisório.
Terminada a reunião, telefonei ao Prof. Teixeira Ribeiro perguntando-lhe
se ele continuava na disposição de ser vice-
-primeiro-ministro depois daquilo a que assistira em São Julião
da Barra. Respondeu-me sem hesitação que sim. O Governo foi
formado imediatamente, uma vez que já estava anteriormente
esboçado, desde o regresso de Costa Gomes de Helsínquia, a 2 de
Agosto.
O apoio do Otelo e do Copcon ao Quinto Governo foi incondicional?
Não foram postas condições. A assembleia no Governo
Militar de Lisboa chegou à conclusão de que eu deveria continuar
a ser primeiro-ministro e terminou os seus trabalhos.
Mas entretanto, a nível de assembleias militares, discutia-se uma
moção, já apresentada na assembleia da Arma de Infantaria
de 23 de Julho, onde o Senhor General era criticado, adiantando
«não se verem inconvenientes na sua
substituição».
É verdade, mas isso exige um esclarecimento. Os termos da
moção aprovada nessa assembleia eram ambíguos. Na
própria reunião do Quartel-General, um qualificado comandante que
estivera presente na assembleia que refere esclareceu categoricamente que o que
fora aprovado era que não se viam inconvenientes em que eu deixasse de
ser primeiro-ministro. Não se verem inconvenientes é muito
diferente de vetar pura e simplesmente o meu nome. Nesse momento, eles ainda
não tinham dito «aquele homem não pode ser
primeiro-ministro», porque a relação de forças dentro
do MFA ainda era favorável à esquerda militar, não
obstante as manobras conspirativas que os Nove e os seus apoiantes levavam a
cabo com determinação.
A partir daí, o processo foi rápido, mas para trás ficava
quase um mês de complexas diligências para se conseguir um Governo,
num período particularmente crítico, tanto interna como
externamente...
Estas diligências demoraram muito tempo não só pela ida de
Otelo a Cuba e de Costa Gomes à Conferência de Helsínquia,
mas ainda pela acção paralisante desenvolvida pelos camaradas do
Grupo dos Nove... O Presidente da República foi à
conferência e eu fiquei cá a fazer diligências para se
formar uma lista de ministros. Quando ele regressou, perguntou-me como iam as
coisas. Informei-o de que o Governo estava projectado, mas não podia ser
nomeado porque o Otelo, que fazia parte do Directório, estava ausente e
devia ser o Directório a responsabilizar-se por ele. Havia, obviamente,
urgência em formar Governo, existia aquele vazio que era
necessário preencher, e Costa Gomes era partidário de que se
avançasse, mas eu respondi: «Temos de esperar pelo Otelo, porque
ele é também membro do Directório.» Então
ficou resolvido que esperaríamos o seu regresso. Na volta ele vinha,
como disse, com a ideia de não aceitar o cargo de
vice-primeiro-ministro, ou de eu ser nomeado primeiro-ministro, provavelmente
influenciado pelos camaradas do Grupo dos Nove, que com ele mantiveram
contactos, sem meu conhecimento, durante a sua estada em Cuba.
Foi então um Governo concluído em tempo recorde. Entre o dia 4 e
o dia 8 de Agosto.
Não, porque eu já tinha o Governo todo formado. O problema foi de
o Otelo o aprovar ou não, de todas as dúvidas em torno da
questão de aceitar ou não ser vice-primeiro-ministro, ou de eu
ser primeiro-ministro. De facto, já tinha os nomes de todos os ministros
há oito ou dez dias. Depois da criação do
Directório, que era, digamos, um aval para um determinado número
de ministros que eu pensava serem fundamentais, o problema ficara resolvido.
Gostaria que esclarecesse melhor como chegou à formação
desse Quinto Governo, cuja equipa o Senhor General não se cansa de
elogiar, classificando-a como a mais coesa e mais revolucionária que se
conseguiu em Portugal. Quais foram realmente as diligências fundamentais
para a constituição desse Governo?
De facto confirmo e reafirmo que o nosso país nunca teve, ao longo de
mais de oito séculos da sua história, um Governo tão
próximo dos interesses e das aspirações mais profundas do
nosso povo como o Quinto Governo Provisório. Não obstante ter
desempenhado as suas funções num período muito curto,
elaborou e propôs um programa que compreendia uma política de
austeridade, um modelo de sociedade e uma estratégia de desenvolvimento
para o nosso país; esse programa foi também elaborado num tempo
recorde, porque tínhamos presente a curta duração do
governo, dadas as afirmações de Costa Gomes no acto de posse.
Quando se verificou a queda do Quarto Governo, pôs-se no Conselho da
Revolução a questão da substituição desse
governo e eu próprio pus a questão da confiança em
relação a mim. Se queriam ou não apoiar um novo governo
sob a minha direcção. Durante a discussão foi,
necessariamente, ouvido o parecer das regiões militares, cujos
comandantes faziam parte do CR e me apoiaram. Fui, portanto, encarregado por
este órgão de formar novo Governo. Nesse momento a
relação de forças dentro do MFA ainda era favorável
à esquerda dita gonçalvista, tínhamos nítida
maioria no CR e o Grupo dos Nove ainda não estava formalmente
constituído. A decisão foi aprovada por consenso, portanto, as
diligências para a formação do Quinto Governo foram nossas.
Resolveu-se, em virtude das desinteligências existentes que o Governo
não integrasse elementos dos partidos como seus representantes, mas sim
a título individual. Procurei que elementos do PS participassem no
governo e fiz uma reunião com eles. Eram muito críticos de
Mário Soares e partidários de um entendimento com os militares do
MFA. Aguardei que tomassem uma decisão, pois consideravam
necessário colocar a questão no seu partido. A resposta demorou a
chegar e foi negativa, salvo de dois dos elementos. Convidei também dois
sacerdotes para integrarem o elenco governativo. As coisas pareciam bem
encaminhadas, cheguei a falar com o Cardeal-Patriarca, que me disse que a
autorização (que os sacerdotes consideravam necessária)
era da competência da Conferência Episcopal, a qual, uma vez
consultada, não aprovou a ideia.
Simultaneamente, eram feitas diligências para a
participação de antigos ministros e secretários de Estado
e de outros democratas e revolucionários. Nesse período é
criado o Directório, após dramáticas discussões no
CR e na assembleia do MFA, Otelo visita Cuba e Costa Gomes participa na
Conferência de Helsínquia. No regresso de Cuba, Otelo, que tinha
aceitado ser vice-primeiro-ministro do Quinto Governo Provisório,
modificou a sua posição e contrariou também a minha
nomeação. Foi suspensa a nomeação do novo Governo,
que já estava constituído. Novas discussões e
reuniões em São Julião da Barra e no Quartel-General da
RML. Finalmente, a confirmação da minha incumbência de
constituir Governo.
Tudo isto demorou a formação e a tomada de posse do novo Governo,
que vem a acontecer cerca de três semanas depois da queda do anterior.
Simultaneamente, a correlação de forças foi-se modificando
em sentido favorável aos Nove.
Mas o certo é que o Quinto Governo não obtém apoios e,
mais, não consegue, em si próprio, abarcar as forças que
pretendia. É à partida um Governo sem apoio social. Os
comentadores dizem, inclusive, que não houve um apoio expresso de
alguém, senão do Partido Comunista Português. O Senhor
General aceita essa afirmação de que era o Governo do Partido
Comunista?
Há aí dois aspectos. Um é saber se era um Governo
unicamente apoiado pelo Partido Comunista Português, outro se o Quinto
Governo era o Governo do Partido Comunista Português. Ora é
absolutamente falso que ele fosse o Governo deste partido. Constantemente
são feitas essas afirmações para degradarem a imagem do
Quinto Governo, para instigarem ao anticomunismo, à
contra-revolução, à oposição, e para
criticarem a sua actuação revolucionária. Ora, se se
analisar concretamente, objectivamente, essa acusação,
verifica-se que ele não estava ao serviço de nenhum partido em
particular, nem do Partido Comunista, mas sim ao serviço do nosso
país. As medidas que tomou eram as que interessavam às mais
vastas camadas da população portuguesa. Se eram apoiadas pelo
Partido Comunista, isso quer dizer que este partido também apoiava as
aspirações mais legítimas da população
portuguesa, e quer dizer, quanto a mim, que o Partido Socialista e o PPD
não tomaram posições no sentido de abrir caminho à
libertação do nosso povo, mas antes se colocaram em
posições de compromisso com os interesses que dominavam o
país antes do 25 de Abril, com a grande burguesia. com a gente dos
grupos económicos. Aliás, vi uma vez Mário Soares, na
televisão, declarar que nunca pretendera liquidar ou destruir os grupos
monopolistas, mas, antes, condicioná-los. Esta ideia foi confirmada
noutras ocasiões, nomeadamente numa entrevista ao semanário
Independente
, julgo que em 1990. Esta afirmação é elucidativa, se a
compararmos com a que fez no Barreiro, no dia seguinte à
nacionalização da banca, em 15 de Março de 1975, e que
faço questão de citar: «O dia histórico em que se
pode assinalar que o capitalismo se afundou com a nacionalização
da banca privada. É possível que nem todos os portugueses se
tenham dado conta deste momento histórico, em que a
nacionalização da banca, que, por sua vez, detém nas
carteiras a maior parte das acções das grandes empresas
portuguesas e, ao mesmo tempo, a fuga ou a prisão dos chefes das nove
grandes famílias que dominavam Portugal indica, de uma maneira bem
clara, que se está a caminho de criar um sociedade nova em
Portugal.»
Pergunto: o que tem isto a ver com o objectivo, mais tarde declarado, de apenas
querer «condicionar a actividade dos grupos monopolistas»? E pergunto
ainda: é alguma forma de «condicionar» a
reconstituição do domínio do grande capital monopolista
nacional (em estreita ligação e dependência do grande
capital estrangeiro) a absoluta sujeição dos nossos governos a
esses interesses? Isto a propósito de eu rejeitar categoricamente que o
Quinto Governo Privisório era o do Partido Comunista.
Senhor General...
Desculpe, mas insisto ainda noutro ponto. É que, se analisar o que foi o
percurso político dos membros do Quinto Governo Provisório
tão acusados de serem comunistas, verifica que essa
afirmação, essa acusação, serve apenas a baixa
política e a das pessoas para as quais a política e a moral
não andam de par, mas estão separadas, e para as quais não
há meios que não devam ser utilizados para os fins mais obscuros.
E atacavam-me a mim e outros elementos do MFA, como Rosa Coutinho, por exemplo,
de querermos implantar uma ditadura militar no nosso país, de sermos
totalitários.
Senhor General, a propósito gostaria de colocar uma outra questão
relativa ao seu Gabinete. Estou a recordar-me, por exemplo, de uma
declaração de Costa Gomes que afirma que, de facto, o problema
não era tanto o primeiro-ministro, mas sim a equipa que o assessorava, e
refere, inclusivamente, o chefe do gabinete dessa altura, que classifica de
pessoa muito exaltada e radical. O Senhor General quer comentar?
Comento, com todo o gosto. Ele não se deve ter referido ao chefe de
gabinete, mas sim a um adjunto para os assuntos económicos e que teve um
papel destacado no processo da reforma agrária e das
nacionalizações.
Quem era, Senhor General?
Era um camarada que já morreu. Morreu prematuramente, era o...
Rosário Dias?
Sim, o jovem primeiro-tenente Rosário Dias. Foi proposto pelo hoje
almirante Vítor Crespo para fazer parte do meu gabinete, no Segundo
Governo Provisório. Era um economista muito competente e conhecedor, um
homem profundamente sério, exaltado na sua generosidade, franco, leal,
idealista, por vezes até voluntarista. Empenhava-se frontalmente, sem
medo. Sobre a influência determinante que terá exercido no meu
gabinete trata-se, uma vez mais, de um erro de Costa Gomes, que já se
verificava em 1975. Acho muito infeliz que ele tenha insistido nesse erro, pois
já desde essa altura que eu lhe criticava essas posições
em relação a Rosário Dias e ao meu gabinete. Penso que a
causa profunda reside no facto de o meu adjunto ter uma forte personalidade, de
ter invariavelmente tomado posições em favor dos mais
desfavorecidos e de informações tendenciosas que forneciam a
Costa Gomes. É minha convicção de que as opiniões
deste foram largamente influenciadas por alguns camaradas do Grupo dos Nove.
Mas, ainda a respeito do gabinete, Rosário Dias era o elemento mais
destacado, ou havia outros com igual protagonismo?
Havia outros colaboradores, mas é preciso salientar que a
posição deles era de adjuntos do meu gabinete. Era, como hei-de
dizer, uma equipa de pessoal que se revelou competente e que não foi
escolhida por razões partidárias, mas por motivos de fidelidade
à Revolução de Abril e ao MFA. Claro, pessoas de direita
não havia lá no meu gabinete, isso não havia de maneira
alguma, era tudo gente que queria marchar para o futuro, a caminho do
socialismo.
Mas este gabinete não era, obviamente, na sua constituição
global, o mesmo que o acompanhou desde o Segundo Governo Provisório. Foi
sofrendo alterações, não é verdade?
No essencial foi o mesmo. Sofreu uma alteração ou outra, mas, no
essencial, era o mesmo. Foram colaboradores muito dedicados, honrados,
empenhados no trabalho que faziam.
Quem era então o seu chefe de gabinete?
Era o, hoje, coronel Sousa Lobo, um homem profundamente sério. Escolhi-o
porque o conhecia como oficial dos mais distintos da Engenharia. Tinha sido meu
oficial em Angola e portanto, repito, foi preferido por razões da minha
própria formação militar, como aconteceu com outros meus
colaboradores. Escolhi muitos dos meus adjuntos a partir do que conhecia deles
como militares e não como políticos. O Sousa Lobo fez a sua
aprendizagem política no meu gabinete; era um homem muito sério,
muito inteligente, um homem de carácter e, portanto, desempenhou as suas
funções de maneira inteligente e honesta. Posso dizer-lhe que
vários dos meus adjuntos foram indicados pelos meus camaradas do
Movimento das Forças Armadas, que eu nem sequer os conhecia
O Senhor General foi avisado pelo Presidente da República de que o
Quinto Governo era um Executivo de passagem?
Não. Na véspera da tomada de posse falei com o general Costa
Gomes, que não me disse nada. Foi uma surpresa para mim ele ter feito
essa declaração. De resto, o Doutor Teixeira Ribeiro ficou muito
incomodado e, como ele, todos os outros ministros. Eu tive de pôr
água na fervura. É preciso ver que o Quinto Governo
Provisório foi o mais revolucionário que até hoje existiu
no nosso país. Por isso mesmo, eles aguentaram essa
declaração do Presidente da República e não se
demitiram. Tinham consciência de que estavam ali numa missão
patriótica e de que era preciso opormo-nos à
contra-revolução, consolidar as conquistas, ganhar tempo.
Esse Governo é o mais revolucionário porquê? Porque os
ministros que conseguiu juntar nesse elenco governamental foram os mais
revolucionários que houve em Portugal desde o 25 de Abril, ou porque
tomou as medidas mais revolucionárias?
No seu conjunto terão sido, não tenho qualquer dúvida a
esse respeito. Era um Governo homogéneo, todo voltado para as conquistas
de Abril. Apresentou um programa muito bem elaborado e em tempo recorde, com um
esforço enorme de todos os seus membros. Era gente muito competente.
Digo que foi o Governo mais revolucionário, porque, quanto a mim, foi o
que mais identificado esteve com os interesses populares. Pela primeira vez, na
história da República, integrava um operário, Teixeira da
Silva, operário gráfico, que era presidente da assembleia geral
do seu sindicato e veio a ser mais tarde coordenador da Intersindical. Foi
secretário de Estado da Segurança Social. No entanto, quero
chamar à atenção do seguinte: todos os ministros eram de
origem pequeno-burguesa, o que não impediu de sermos acusados de
formarmos um Governo de comunistas. O próprio Pezarat Correia, em 1984,
num colóquio em Coimbra, me disse: «Eu, naquele tempo, julgava que
todos os ministros do Quinto Governo Provisório eram comunistas, e hoje
estou convencido de que nenhum era». De resto, basta olhar o percurso
político posterior dessas pessoas para ver se era verdadeira ou falsa
essa acusação. Simplesmente, era um Governo com uma homogeneidade
que os governos de coligação não tinham. Nós
conseguíamos dividir o nosso trabalho de maneira a que, nas
reuniões de Conselho de Ministros, uns iam para um local trabalhar nuns
assuntos, outros para outro, e depois fazíamos reuniões
plenárias. Foi um Governo que produziu imenso. Quando saímos
deixámos dezenas de diplomas (cerca de quarenta), promulgados depois
pelo Presidente da República. Alguns de grande importância como a
nacionalização da CUF, Setenave, Covina, Pirites Alentejanas,
Petroquímica, Amoníaco Português, Nitratos de Portugal e
dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Além da criação
do serviço médico à periferia, do crédito
agrícola de emergência às unidades colectivas de
produção, reforma agrária, evidentemente, etc., etc.
Portanto, Senhor General, não foi avisado nem teve o mínimo
indício de que era um Governo de passagem?
Não. Contudo, tinha clara consciência de que a
situação era instável. Era um momento de acesa luta
política, económica e social. E os ministros aceitaram integrar o
Governo, como lhe disse, porque eram revolucionários. Se tivessem outra
mentalidade, tinham-se vindo embora.
Vasco Lourenço, por exemplo, diz que Costa Gomes lhe declarou que era
para dois meses.
Não sei, a isso só o general Costa Gomes poderia responder.
E o próprio Costa Gomes afirmou que alguns dos ministros que
constituíram o Quinto Governo sabiam que ia ser um Executivo com vida
curta e, mais, aceitaram integrá-lo na condição
precisamente de ser de passagem, transitório, até à
formação do Sexto Governo. Nomeadamente, ele refere os nomes de
Mário Ruivo, Mário Murteira e Joaquim Fragoso, que só
aceitaram nessa condição. O Senhor General confirma essas
afirmações?
Bem, acredito que assim foi porque Costa Gomes o afirmou. No entanto, essa
situação é do meu total desconhecimento. Eu só tive
conhecimento de o Quinto Governo ser de passagem no dia da tomada de posse.
É claro que havia, como disse, a incerteza de qual seria o futuro desse
Governo, dada a situação que estávamos a viver.
Nem puseram isso como condição para integrar a equipa do governo?
De maneira alguma. Nada disso, nunca me puseram essa questão. Devo
dizer-lhe que os ministros que referiu se empenharam francamente no trabalho do
Governo.