Sobre a Revolução de Abril e a situação actual
por Gen. Vasco Gonçalves
[*]
No dia 25 de Abril de 1974 o Movimento das Forças Armadas, derrubou o
governo fascista-colonialista.
Nesse mesmo dia, apoiando o golpe militar desencadeou-se um espontâneo e
vigoroso levantamento popular e nacional.
O impulso das massas populares e dos trabalhadores exigindo um empenhamento
social e político mais alargado e profundo do que o inicialmente
previsto pelo Movimento das Forças Armadas, fez que a
relação de forças dentro do Movimento fosse
favorável aos militares que mais se identificavam com as
aspirações, as reivindicações, os interesses
populares, e imprimiu uma dimensão revolucionária ao golpe
militar.
Foi nestas condições que surgiu a aliança Povo-MFA, que
foi o motor da Revolução.
A Revolução de Abril foi a mais profunda e a mais popular das
revoluções portuguesas.
Trouxe ao nosso povo, às suas classes mais desfavorecidas as maiores
conquistas da sua história de oito séculos.
Pôs fim à guerra colonial e deu um impulso decisivo na
criação de condições para a independência
não neocolonialista de Moçambique, Cabo Verde, São
Tomé e Príncipe, Angola e Guiné-Bissau (embora este
país já tivesse proclamado a sua independência numa parte
do seu território).
Portugal deixou de ser um país isolado cujo governo se submetia aos
interesses do imperialismo e passou a praticar uma política de abertura
e diversificação das relações internacionais,
assumindo uma política de independência nacional, como o atestam o
processo de descolonização e as profundas
transformações económicas e sociais realizadas no curto
período de Abril de 1974 até ao último trimestre de 1975.
É de salientar que o processo da Revolução de Abril
mostrou que a liquidação do poder económico dos grupos
monopolistas e do latifúndio era uma condição
necessária para a instauração de uma autêntica
democracia política.
A Revolução de Abril:
-
Instaurou um regime de amplas liberdades, garantias e direitos
políticos, cívicos, culturais, sindicais e laborais.
-
Destruiu as bases do capitalismo monopolista de estado e dos grupos
económicos monopolistas.
-
Nacionalizou a banca e as companhias de seguros, os sectores básicos da
produção, as principais empresas de transportes e
comunicações, criando um sector público de peso
determinante na nossa economia, na regulação do mercado e no
comércio externo.
-
Realizou a Reforma Agrária com a expropriação do
latifúndio, dando origem à constituição de unidades
colectivas de produção constituídas e dirigidas por
trabalhadores assalariados rurais, trabalhadores sem terra, pequenos e
médios proprietários rurais.
-
Aprovou uma nova lei do arrendamento rural, e devolveu aos povos os terrenos
baldios.
-
Melhorou e dignificou substancialmente as condições de vida dos
trabalhadores em geral e das mais vastas camadas da população.
-
Promoveu transformações progressistas no ensino, e um
extraordinário aumento da frequência escolar.
-
Aprovou a criação do Serviço Nacional de Saúde, e
desenvolveu a cultura e o desporto populares.
A Revolução de Abril terá sido, na Europa Ocidental e
depois da Comuna de Paris, a maior ofensiva feita contra o sistema capitalista.
Ao longo do processo histórico da Revolução de Abril foi
surgindo, nas suas linhas gerais, um modelo de transição
pacífica, democrática e pluralista para o socialismo.
Este modelo foi sendo elaborado na prática, nas condições
políticas, sociais e culturais do nosso país, fortemente
determinadas pela participação e intervenção
populares, pela existência do Movimento das Forças Armadas, pela
aliança Povo-MFA, na dinâmica de uma acesa luta de classes, no
contexto da crise da economia capitalista de 1973-75 e das
relações internacionais caracterizadas pela guerra fria.
Às Forças Armadas foi atribuída em lei , antes da
aprovação da Constituição da República e,
depois, no próprio texto constitucional a missão
«histórica de garantir as condições que permitam a
transição pacífica e pluralista da sociedade portuguesa
para a democracia e o socialismo».
O modelo correspondia à acção, transformadora, directa,
revolucionária exercida pelo movimento popular, pelo MFA, e pelos
Governos Provisórios.
Constituía uma promessa fundamental e um ponto de honra para o MFA, a
realização de eleições livres para a Assembleia
Constituinte, no prazo prometido.
Os sectores da sociedade portuguesa que temiam a dinâmica
revolucionária, opuseram-se a ela, procurando subordinar o movimento
social e quaisquer profundas transformações a uma anterior
legalidade constitucional, legitimada pelo sufrágio universal opondo,
portanto, grandes reservas à intervenção dos militares na
vida política e à crescente influência das massas
trabalhadoras e do movimento sindical e popular.
Até um certo momento os dois processos, o revolucionário e o
eleitoralista, não divergiram de modo substancial.
Os governos provisórios de coligação do MFA com os
principais partidos políticos participaram em ambos.
Mas, o agravamento das divergências de interesses de classes, a
contra-revolução, a luta política, social,
económica para defender e consolidar e situação
democrática, a persistência dos choques ideológicos e
políticos, a satisfação de reivindicações e
aspirações populares básicas, a progressiva
organização e importância da actuação das
massas laboriosas e seus partidos políticos (nomeadamente o Partido
Comunista Português) fizeram que os dois processos fossem entrando numa
confrontação que se agudizava à medida que se aprofundavam
as conquistas da Revolução.
Subjacentes a este confronto estavam, na verdade, sob diversas formas, a
ideologia da propriedade privada, a luta de classes, o medo da ascensão
das classes trabalhadoras ao poder.
A aprovação e promulgação da
Constituição Portuguesa em 1976, a qual institucionalizou todas
as conquistas democráticas e revolucionárias alcançadas
antes (e, portanto, o modelo de transição pacífica e
pluralista para a democracia e o socialismo) ainda foi possível devido
ao impulso do processo revolucionário que se desenvolvera antes,
à vontade da maioria dos deputados constituintes, , aos esforços
dos militares do MFA que se haviam afastado da esquerda militar mas que eram
democratas, e à posição tomada pelo Presidente da
República que também era o Chefe do Estado Maior General das
Forças Armadas e havia promulgado até à data da
aprovação da Constituição todas as conquistas
revolucionárias que haviam surgido ao longo do processo.
Quando a Constituição foi promulgada já estava muito
avançado o processo da mudança da correlação de
forças e não havia uma base social de apoio suficiente para a
consolidação e a execução de uma política de
acordo com o ordenamento económico-social constitucional.
Para além das contradições já, atrás,
enunciadas julgo dever salientar como causas da mudança da
correlação de forças políticas, sociais, civis e
militares:
-
as divergências e oposição de interesses entre democratas
que haviam estado unidos, embora com muitas dificuldades, contra a
política do regime fascista-colonialista e posteriormente unidos no
apoio ao MFA e à Revolução.
-
uma ofensiva psicológica e ideológica bem sucedida contra os
sectores revolucionários do MFA, identificando-os com o Partido
Comunista.
-
divisões profundas dentro da esquerda do MFA.
-
a persistente influência da ideologia burguesa e pequeno-burguesa entre
os militares do MFA, bem como a influência dos resultados eleitorais para
a Constituinte, fortemente favoráveis às correntes social-
democratas (Partido Socialista e Partido Popular Democrático) .
-
o propósito dos partidos vencedores das eleições de
impedirem a consolidação das conquistas alcançadas
aliás, com a sua participação no governo, em
contradição com seus próprios programas socialista e
socializante.
-
a permanência da ideologia pequeno-burguesa e burguesa entre a maioria
dos trabalhadores e da população,
-
a permanência da larga influência, entre a população,
dos sectores mais conservadores e retrógrados e até caciqueiros
do clero,
-
o apoio dado à contra-revolução pela social-democracia
internacional e pela democracia-cristã internacional e pelo imperialismo.
Em contraste com o ordenamento económico-social da
Constituição de 1976, a política que tem vindo a ser
levada à prática, e coberta por sucessivas revisões
constitucionais que introduziram profundas alterações
estruturais, tem sido a da globalização neoliberal nos diversos
domínios da actividade política, económica, social, das
relações exteriores, da comunicação social e das
Forças Armadas.
O neoliberalismo tem provocado o agravamento das desigualdades, o que é
uma das suas características estruturais.
Provoca o aumento do desemprego, a desindustrialização, a
ruína da agricultura e das pescas, a degradação do
ambiente, a mercantilização de todas as actividades da sociedade,
a tomada de sectores estratégicos da nossa economia por grandes
corporações transnacionais, em consórcios
maioritários com grupos económicos nacionais, a
degradação e a restrição das funções
económicas e sociais do Estado.
A política neoliberal provocou a destruição da reforma
agrária, o desmantelamento do aparelho produtivo, a
redução radical do sector público da economia, a
limitação dos direitos sindicais e laborais, a
integração subordinada na economia europeia e mundial.
A política neoliberal tem desenvolvido uma tenaz e continuada ofensiva
contra os princípios da justiça social, da equidade social, da
democratização da cultura.
A política de coligação da direita com a extrema-direita
é a mais poderosa tentativa de liquidação do 25 de Abril,
no contexto de uma perigosa situação internacional. A não
ser ultrapassada rapidamente corremos o risco de uma irreversível crise
no presente quadro constitucional.
O facto de pertencermos à União Europeia, na qual são
relativamente estáveis as instituições que caracterizam a
democracia burguesa, tende a criar em muitas pessoas a convicção
de que a democracia entre nós é irreversível.
Esta atitude, por um lado, não tem em conta a grave ameaça para a
democracia que representa um governo como o actual, na presente
situação internacional, caracterizada pela
globalização neoliberal, comandada pelo EUA e os seus poderosos
aliados, e, sobretudo caracterizada pela «guerra preventiva e sem
fim» contra o terrorismo, de que são exemplo as guerras do Iraque,
do Afeganistão e Palestina.
Por outro lado, é uma atitude desmobilizadora porque o futuro de
Portugal depende dos portugueses.
Trata-se de um problema político, mas também, de um problema
cultural, em sentido amplo: encontrar as formas de
consciencialização e mobilização para a
acção colectiva, para a compreensão do que é o
regime democrático, e o quadro em que essa acção colectiva
pode livremente exercer-se.
O modo de produção capitalista, em consequência da sua
própria essência, das leis do seu desenvolvimento, das
condições necessárias à sua
reprodução e perpetuação, conduziu à
globalização neoliberal.
Esta política, comandada pelos Estados Unidos da América,
sustentada pela sua força militar e dos seus poderosos aliados da NATO,
embora com contradições internas e externas, procura impor-se a
todo o mundo.
É uma política de decidida penetração generalizada
e cada vez mais expandida da ideologia e da prática do consumismo nos
hábitos de comportamento das pessoas e na formação da sua
consciência social e política.
O 11 de Setembro permitiu que os interesses económicos da
globalização neoliberal, pudessem ser acelerados sob o manto
ideológico da luta contra o terrorismo.
Passámos a assistir à banalização da
intervenção militar externa deliberada, à margem do
Direito Internacional, a pretexto de levar a democracia «aos povos
não democráticos», cujos países, curiosamente,
dispõem de recursos naturais estratégicos.
E a guerra contra o terrorismo é estabelecida em duas vertentes.
Como uma guerra preventiva, a pretexto da defesa dos interesses
próprios, onde e quando esses interesses se sentirem ameaçados, e
como uma «guerra sem fim».
Tudo isto justificando a corrida aos armamentos nucleares, químicos,
radiológicos e biológicos.
Estamos perante uma política de dominação unipolar
planetária por parte da mais forte potência militar que jamais
existiu sobre a terra e com ela a uma ofensiva global do capitalismo que
procura impor-se a todo o mundo como sistema único de
organização da sociedade.
Será possível que a acção consciente, organizada e
determinada dos trabalhadores e dos povos, seja capaz de criar
condições para pôr fim a esta ofensiva global do capital e
substituir a sociedade capitalista por uma sociedade mais justa, a socialista?
Será possível, neste quadro pôr fim à
política de direita que vem sendo feita em Portugal, há cerca de
30 anos?
Ao contrário do que pode parecer o capitalismo está em crise. E
a crise que o capitalismo, hoje, vive não é conjuntural mas
estrutural. Por isso o sistema procura impor, a todo o mundo, esta
globalização, como fase final, ou definitiva, da sua
evolução histórica.
Contudo, o capitalismo não é reformável, porque as
relações sociais em que se baseia e sem as quais não pode
sobreviver são intrinsecamente contraditórias, injustas e de
exploração do homem.
Assim, a cada momento, se agrava o processo de globalização, cuja
«regulação pseudo equilibradora» não é,
hoje, «a mão invisível do mercado» de Adam Smith, mas a
força militar liderada pelos EUA. É o próprio Kissinger
que o afirma.
O novo imperialismo planetário necessita do controlo dos recursos
naturais e das guerras «preventivas», e de
«intervenção humanitária» para garantir a sua
dominação e superar a sua fraqueza económica
intrínseca.
Com efeito o imperialismo americano vive hoje uma crise económica
estrutural com tremendos défices na balança de pagamentos, no
orçamento federal, no endividamento interno, e na balança
comercial e energética.
Espelho desta situação é a queda do dólar em
relação ao euro.
O capitalismo necessita da guerra e da fome e da miséria de milhares de
milhões de pessoas.
O seu domínio sobre a ciência e a tecnologia, utilizadas,
permanentemente, como meios para a superação da crise estrutural
do sistema, tem levado a consequências dramáticas no meio
ambiente, colocando em risco a continuidade da vida humana sobre o planeta, tal
como a conhecemos hoje.
Por isso se coloca, hoje, no horizonte histórico do homem, a necessidade
de travar a actual ofensiva do capitalismo neoliberal e de o substituir por uma
sociedade orientada para a construção do socialismo.
Mas não haverá uma terceira via, a qual tem sido defendida por
partidos socialistas e sociais-democratas?
Penso que não.
Os seus defensores ao pretenderem colocar-se entre capitalismo e socialismo
têm na prática adoptado políticas neoliberais
contrárias aos interesses dos trabalhadores e dos povos dos seus
países, como se tem por exemplo verificado com a experiência
recente e actual dos governos socialistas e sociais-democratas na Europa, os
governos de Jospin em França, Shroeder na Alemanha, Blair na
Grã-Bretanha.
É que não é possível, dada a essência do
sistema capitalista, uma via intermédia entre o capitalismo e o
socialismo.
A gravidade da situação é a de que a
globalização neoliberal corresponde a um grau de
concentração transnacional da propriedade, da
produção, do poder político comandado pelos
monopólios transnacionais, fundidos com os Estados das principais
potências imperialistas.
Por outro lado a revolução científico-técnica
não pode adiar indefinidamente a explosão das
contradições antagónicas e insolúveis do sistema, a
sua incontrolabilidade intrínseca, essencial.
Não estamos em condições de prever o futuro próximo.
Mas conhecemos já ao que pode conduzir a política actual.
Impõe-se, portanto, a luta contra o neoliberalismo e contra as guerras
que o sistema desencadeia, luta que tenha sempre presente, como objectivo
final, a superação do capitalismo.
As lutas nacionais não devem ser desligadas das acções
internacionais.
Só a luta, sobre a base de problemas concretos, procurando mobilizar as
consciências e os corações, estimular a disponibilidade
para a acção ao longo da qual se promoverá a
participação e a intervenção populares, em todos os
domínios da vida da sociedade, conduzirá o homem a ser sujeito do
seu próprio destino.
Será a soma de todas as lutas, a sua articulação a
nível internacional, a sua organização, que poderão
levar à mudança da correlação de forças, a
nível mundial.
É necessário apoiar, estimular, articular os movimentos contra a
guerra e de resistência anti-imperialista que, hoje, vão surgindo
e se desenvolvem em todo o mundo.
Nestas condições tão difíceis e tão
exigentes para cada um de nós, a missão das forças
democráticas e progressistas, no nosso país, é a luta
quotidiana, continuada, persistente, tenaz, inteligente, firme, pela
consciencialização política e social da nossa
população, para a efectiva participação e
intervenção profunda na construção do seu
próprio futuro.
Luta que deve ter por base os problemas mais concretos, mais diversos, em todos
os domínios da vida da nossa sociedade.
Luta contra a guerra, contra o armamentismo.
Luta que deve ser pluriclassista porque a ameaça ultrapassa os limites
das classes trabalhadoras.
Luta, ela própria, formadora da consciência política e
social, mobilizadora de vontades e corações, da disponibilidade
pessoal e colectiva para enfrentar e combater, de modo vitorioso, as
consequências da política neoliberal globalizante.
Luta que tem por objectivo inverter a presente correlação de
forças políticas e sociais, civis e militares, para pôr fim
à política de direita e criar condições para a
política alternativa de que Portugal precisa.
Uma política que procure satisfazer os mais legítimos anseios e
interesses da grande maioria da nossa população, de defesa e
consolidação do regime democrático, de desenvolvimento e
de progresso, de independência nacional e de paz, apoiada nos
princípios programáticos da Constituição da
República.
Luta na qual têm um papel decisivo a existência dos sindicatos, dos
partidos políticos, dos movimentos sociais e associações
democráticas e progressistas, nos mais diversos domínios da
actividade social, que lutem por uma transformação radical da
sociedade.
Luta através da qual se irá ganhando espaço decisivo nas
instituições no poder legislativo, no governo, no poder local e
regional.
Luta ao longo da qual será acumulada a força social e
política necessária para a mudança e para a
instauração de um governo que faça uma política que
cumpra o princípio constitucional fundamental do preâmbulo da
Constituição da República:
"abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do
povo português, tendo em vista a construção de um país
mais livre, mais justo e mais fraterno".
[*]
Intervenção apresentada no Encontro Internacional
Civilização ou Barbárie, Serpa, Setembro/2004.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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