As sete virtudes da ENDS

por João Paulo Fonseca [*]

Quem impuser a si próprio a árdua tarefa de ler a Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável (ENDS) , recentemente apresentada pelo gabinete do Primeiro-Ministro, sentirá muita dificuldade em encará-la com a seriedade que ela, em bom rigor, talvez não mereça. Porém, ultrapassado este primeiro obstáculo, o leitor poderá descobrir várias virtudes que ela, indiscutivelmente, possui.

É inegável que a ENDS apresenta uma superficialidade surpreendente para um texto elaborado por cinco prestigiados académicos, com o objectivo de “ Fazer de Portugal, no horizonte de 2015, um dos países mais competitivos da União Europeia”.

De facto, a ENDS consiste numa colagem de lugares comuns relativos à quase totalidade da nossa vida social e política. As suas propostas não são sustentadas por qualquer análise prévia, nunca é estabelecida qualquer relação entre os vários assuntos, nem são hierarquizadas as linhas estratégicas propostas. Mas, se encararmos este documento de um modo menos exigente, deveremos reconhecer que constitui uma notável compilação, certamente muito trabalhosa, de todos os assuntos publicados nos jornais nos últimos 10 anos, abrangendo temas tão vastos como a gravidez juvenil, os acidentes de automóvel, os transportes aéreos para Africa ou o alcoolismo, omitindo-se apenas o processo Casa Pia, a necrologia e os anúncios classificados.

A sua segunda virtude consiste no facto de estar suficientemente recheada de erros técnicos tão óbvios, de erros de escrita tão frequentes e de propostas tão vagas, que, seguramente, nenhum funcionário público mais zeloso, nenhum instituto ou Direcção-Geral cederá à tentação de levar à prática qualquer das suas indicações.

Acresce, como terceiro ponto positivo, que é difícil encontrar qualquer erro de ortografia, o que prova que pelo menos um dos seus autores dispõe de software de revisão ortográfica.

O que os computadores ainda não corrigem é a relação cognitiva entre os parágrafos. Por este motivo, são enunciadas na página 66, duas “ideias-força”, discriminando-se: a primeira, a segunda e a terceira... Outro exemplo. A generalidade das tabelas onde alegadamente se estabelecem “Metas”, que consistem, de facto, no enunciado de intenções vagas, não sendo estabelecidos limites temporais, nem quantitativos a atingir.

De entre os múltiplos erros técnicos, citamos apenas três dos mais surpreendentes: a classificação do aumento dos níveis de fósforo e azoto nos cursos de água [1] , poluentes que provocam graves processos de distrofia, como sendo uma “Tendência Desejável”, ou a definição de um prazo de oito anos (leram bem: oito anos!) para a elaboração dos Planos de Ordenamento dos Parques e Reservas Naturais, sabendo-se que este é o documento fundamental para a sua gestão.

Talvez o mais notável seja um erro de palmatória, salientado pelo Professor Rui Namorado Rosa, num excelente artigo sobre a ENDS, erro que incide sobre os combustíveis fósseis e as energias renováveis, uma matéria que, arrisco-me a dizer, será talvez mais importante do que os “ transportes aéreos para África ”. Rui Rosa cita esta pérola: “ (...) a necessidade de reduzir a intensidade energética do crescimento, pela promoção de eficiência energética e pela diversificação das fontes, nomeadamente pela aposta clara nas energias renováveis. Os autores da ENDS confundiram a eficácia do uso com a substituição das fontes de energia.

Estes e muito outros erros, revelam o profundo descuido colocado na elaboração deste documento, reflexo do total desinteresse do governo sobre o tema. Mas foi precisamente esta desatenção que conferiu à ENDS a sua quarta e maior qualidade.

O PÉ NA POÇA

Certamente por irresponsabilidade política, matéria em que Santana Lopes é pródigo, o governo subscreveu um documento onde reconhece o profundo falhanço das políticas seguidas nos últimos 30 anos, políticas de que o PSD e o PS são os principais responsáveis, no quadro deste sistema político imobilista a que se deu o nome de “alternância democrática”. Vejamos apenas alguns exemplos.

No capítulo relativo à descrição da situação actual [2] , a ENDS descreve, preto no branco, a medíocre evolução da economia portuguesa, patente, entre outros aspectos, no facto de o PIB per capita ter sofrido uma taxa de aproximação à média da União Europeia de apenas 10% em 30 anos. Acresce que esta aproximação decorreu sobretudo nos anos de 1985 a 2004, período em que Portugal beneficiou substancialmente de fundos oriundos da União Europeia, através dos vários Quadros Comunitários de Apoio.

O segundo parágrafo da alínea 2.2.2. é esclarecedor sobre a natureza deste parco crescimento: “ O crescimento económico sem acréscimos significativos de produtividade que caracterizou a década de 90 foi acompanhado por elevadas taxas de actividade e emprego justificadas pela forte participação de mulheres no mercado de trabalho, pela precoce entrada de jovens nesse mercado, e ainda pela permanência em actividade de população em faixas etárias mais avançadas (...)”

Resumindo, a tímida convergência do PIB per capita com os padrões da União Europeia resultou, em larga medida, da entrada de adolescentes no mercado de trabalho (e, como sabemos, de crianças), do aumento da população activa entre as mulheres, alteração sem dúvida positiva, e da manutenção em actividade de idosos, fenómeno a que não será estranha a politica de pensões de miséria mantida pelos governos da “alternância democrática“ PS/PSD/PP. Ficámos assim a saber que a luta contra o trabalho infantil e a actualização digna das pensões de miséria, essa negaça de votos repetida em cada campanha eleitoral, nunca foram concretizadas, não pela insensibilidade social dos governos PS/PSD/PP, mas devido ao superior desígnio de garantir a convergência nominal com a União Europeia.

Um outro exemplo. A ENDS salienta uma “forte redução da capacidade nos sectores infraestruturais da indústria – siderurgia, química, construção naval, mecânica e electromecânica, acompanhada pela transferência geral da propriedade para investidores externos”. O executivo de Santana Lopes reconhece, assim, as gravíssimas consequências económicas das políticas de desmantelamento e privatização do sector industrial do Estado, política que levou ao encerramento ou à deslocalização para o estrangeiro de unidades industriais economicamente viáveis, como é o caso da Lisnave ou, mais recentemente, da Bombardier/Sorefame.

Como último exemplo dos erros políticos reconhecidos pela ENDS, transcrevem-se algumas passagens relativas ao desastre nacional da política educativa:

1- “Um abandono escolar de proporções preocupantes, acompanhado por baixos níveis de competência em áreas chave (...)” [3]
2- “Um grande desperdício de recursos financeiros e humanos decorrente quer da insuficiência de actividades de formação dirigidas para competências com forte procura (...), quer da produção em larga escala de licenciados em áreas sem procura no mercado”
3- Ainda esta outra transcrição: “O nível das habilitações da população em idade activa continua a constituir um dos problemas mais graves para o aumento da produtividade na economia”. [4]

Valerá a pena relembrar que as elevadas taxas de abandono escolar decorrem, regra geral, de situações de pobreza para onde amplas faixas da população portuguesa foram atiradas pelas políticas económicas do PP/PSD/PS. Políticas que, como o provam os dados do INE, mantêm os ricos muito ricos e os pobres muito pobres.

Quanto aos “baixos níveis de competência em áreas chave” conferidos pelos ensinos básico e secundário salienta-se que esta situação seria inevitável, face às sucessivas políticas de branqueamento do insucesso escolar, à diminuição dos níveis de exigência e à progressiva redução dos curricula.

Ainda mais surpreendente é o reconhecimento do “desperdício de recursos humanos e financeiros” em actividades de formação sem saída profissional. Trata-se de uma situação atempadamente denunciada pelo movimento sindical, corolário óbvio de uma politica de desinvestimento no ensino público e de encaminhamento dos fundos comunitários destinados à formação profissional para financiar um lucrativo negócio de pseudo-formação. Este negócio, não nos esqueçamos, teve uma larga participação de empresas cujos proprietários eram militantes do PS e do PSD, algumas das quais expressamente formadas para o efeito.

Quanto às licenciaturas, relembre-se que foram universidades privadas as principais responsáveis pela proliferação de cursos rigorosamente inúteis do ponto de vista das necessidades do país e do mercado de trabalho. Muitas delas são propriedade de líderes da “alternância democrática” e, com apenas duas excepções, foram licenciadas pelos governos destes três (três ?) partidos.

Na primeira linha das políticas de Desenvolvimento Sustentável deveria colocar-se a conservação dos recursos naturais com elevado valor económico. Porém, ao listar e identificar os erros cometidos pelos governos da “alternância democrática”, a ENDS põe em causa muitas das opções defendidas por Santana Lopes, pelo actual governo e pelo governo anterior. Vejamos dois dos múltiplos exemplos que poderíamos citar.

No seu ponto 4.3.1. a ENDS indica como “linha de orientação” a conservação dos solos com elevado potencial agrícola. Em clara contradição com esta indicação, a gestão da chamada Reserva Agrícola Nacional (constituída pelos solos com maior potencial agrícola) efectuada pelo Ministério da Agricultura, tem permitido a sua ocupação por estruturas industriais e urbanas, como aliás é reconhecido em vários outros parágrafos.

Um último exemplo. No seu ponto 4.4.2., como “linha de orientação”, a ENDS salienta a necessidade de “Reduzir os movimentos pendulares das populações nas áreas Metropolitanas, promovendo a redistribuição das funções económicas no seu interior(...)”, orientação repescada do Plano Regional de Ordenamento do Território da Área Metropolitana de Lisboa. Obviamente, esta opção é incompatível com a intenção de Santana Lopes, enquanto presidente da CML, de permitir o crescimento da cidade em altura, o que significaria a substituição de áreas habitacionais por edifícios destinados ao sector de serviços.

QUE FAZER?

Obrigado a elaborar uma Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável, devido a compromissos assumidos junto da União Europeia e das Nações Unidas, Santana Lopes ter-se-á interrogado, eventualmente no Kremlin [**] onde era cliente habitual, “Que Fazer?”. A resposta pareceu óbvia: precisaria de um documento inócuo do ponto de vista do comprometimento político, mas que pudesse conferir um “Carimbo Verde” às políticas mais reaccionárias e mais lesivas dos interesses das populações.

É neste contexto que a ENDS defende o pacote laboral como uma vertente integrante, e já executada, do “Desenvolvimento Sustentável”, que prepara o terreno político para a destruição do serviço nacional de saúde e para a privatização da água, que propõe a destruição, a prazo, dos mecanismos de segurança social. Vejamos algumas passagens:

1- “A orientação para a criação de um efectivo mercado da água (...) deve ser guiada por um quadro institucional e legislativo em harmonia com a política europeia”, afirmação que aponta, embora de forma encapotada, para o prosseguimento da política de privatização da gestão da água, seguida pelos governos PS/PSD/PP e por muitos governos europeus. Os autores da ENDS preparam, deste modo, o terreno político para colocar nas mãos das oligarquias económicas um dos recursos naturais que se perspectivam mais críticos para o século XXI;

2- “Proceder à reforma dos sistemas de pensões(...)”. E mais à frente: “caminhar no sentido da introdução de um seguro de saúde universal e obrigatório comparticipado pelo estado, nos casos de doenças crónicas e catastróficas e que integre os pagamentos em casos de interrupção do trabalho por doença”. A governo assume assim, claramente, a intenção de destruir o papel social do Estado, aniquilando o sistema de segurança social e colocando-o nas mãos de empresas seguradoras privadas, intenção que aliás é reafirmada em várias outras passagens. Os seus autores assumem ainda que o estado deverá transferir para estas empresas verbas oriundas de descontos efectuados pelos trabalhadores;

3- A defesa do Pacote Laboral, eufemisticamente chamada Lei de Código do Trabalho mereceu uma defesa acérrima por parte dos autores da ENDS, ocupando uma página completa, integrada no capítulo referente à “Dimensão Social” [5]

A ENDS dá-nos assim, de uma assentada, mais duas importantes lições. Reconhece as mais negras intenções da direita e mostra a preocupação em rotular de “ecológica” a sua politica, o que vem lembrar, a esta esquerda frequentemente distraída destas matérias, o valor que a opinião pública atribui às questões do ambiente.

DÉJÀ VU

A sétima e última, mas não a menor, das qualidades da ENDS reside no facto de trazer a assinatura de Viriato Soromenho Marques, não pelo relevo social ou politico deste professor de filosofia, mas devido à lição de vida que nos traz.

Ex-presidente da Quercus, participante nos Estados Gerais de António Guterres, nome prestigiado do movimento ambientalista, Soromenho Marques prestou inegáveis serviços à causa do ambiente, nas décadas 80 e 90. Ao elaborar e assinar um documento que nem sequer tem o alibí de trazer algo de novo às políticas de conservação e de utilização sustentável dos recursos naturais, veio ajudar a conferir um “Carimbo Verde” às mais injustas e radicais políticas de direita. Inaugura, assim, uma forma particularmente eficaz de destruir a ainda frágil imagem do movimento ecologista em Portugal.

Obviamente, não imaginamos qualquer relação entre a assinatura de Soromenho Marques e a sua hipotética participação na “Comissão Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável”, preconizada no ponto 5.4., participação que, certamente, seria reconfortante do ponto de vista financeiro. Mesmo sem esta participação, que sem dúvida recusará, este episódio bem poderia constituir uma lição importante para esta esquerda, onde até há pouco se dizia que o passado de alguns garantia a sinceridade das suas acções no presente.

Talvez nos dê alguma satisfação, porventura mesquinha, ver, mais uma vez, Santana Lopes a enfiar o pé na poça até aos artelhos. Porém, nesta época em que se assiste ao esgotamento dos recursos naturais, Portugal precisava, e precisa, de um documento orientador que perspective o seu desenvolvimento económico a longo prazo. Mas poderia um governo obcecado pelos interesses privados ter algum interesse no “Desenvolvimento Sustentável”? Poderá o capitalismo planear o desenvolvimento a longo prazo garantindo a conservação dos recursos naturais? Certamente que não. À organização capitalista da economia interessam as mais-valias a curto prazo. Como alguém já escreveu: o capitalismo venderá as últimas árvores aos preços inflacionados do mercado.

[*] Biólogo

Notas
1- Objectivo III
2- alínea 2.2. As três dimensões da sustentabilidade. Um Ponto da Situação.
3- Pontos Fracos, capítulo 3. Pilares de Sustentabilidade, alínea 3.2.
4- alínea 2.2.2., 14.º paragrafo.
5- Ponto 2.2.2. - integrado no “diagnóstico da dimensão social do Desenvolvimento Sustentável”
[**] Discoteca em Lisboa.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

11/Out/04