O negócio da saúde em Portugal
Em trabalho anterior, através da análise
da leis publicadas pelo actual governo, procuramos dar uma ideia do que estava
a suceder neste sector vital para a saúde e para o bem estar de
milhões de portugueses, e quais as consequências de toda essa
legislação no campo da saúde e, consequentemente,
também na via dos portugueses. Pela sua importância e pelos
conflitos que está a gerar, de que é exemplo a recente greve de 3
dias que afectou maciçamente a quase totalidade dos centros de
saúde de todo o País, esta importante questão exige que
aprofundemos a análise feita incidindo agora sobre aquilo a que se pode
chamar o negócio da saúde em Portugal. E isto porque
para se poder compreender o que se está a passar na saúde em
Portugal, e o que está em jogo, é necessário também
conhecer o volume de dinheiro que este sector movimenta, quem o paga, como
é aplicado, e que forças se estão a movimentar e de que
forma para obter o controlo de uma parte mais significativa dos dinheiros da
saúde.. É isso o que se procurará fazer neste pequeno
trabalho, embora de uma forma muito resumida.
PORQUE RAZÃO A SAÚDE GERA TANTOS APETITES?
De acordo com o Departamento de Estudos e Planeamento da Saúde, entre
1985 e 1994, portanto em 10 anos, as despesas com o Serviço Nacional de
Saúde somaram, a preços correntes, 3.266 milhões de
contos, enquanto entre 1998 e 2002, portanto nos cinco anos mais recentes,
atingiram cerca de 6000 milhões de contos também a preços
correntes. Portanto, nos últimos 5 anos (1998/2002) as despesas foram
quase o dobro das verificadas nos anteriores 10 anos (1985/1994). Portanto, o
crescimento das despesas com a saúde em Portugal tem sido extremamente
rápido.
A quase totalidade das despesas públicas com a saúde são
financiadas através de transferências do Orçamento de
Estado para o Serviço Nacional de Saúde, ou seja, as despesas do
Serviço Nacional da Saúde são pagas com os impostos pagos
pelos portugueses. Contrariamente ao que muitas vezes se pensa ou se diz a
saúde não é financiada pela Segurança Social, mas
sim pelo Orçamento Geral do Estado. Os portugueses têm direito
à saúde não porque descontaram para a Segurança
Social (muitas vezes ouve-se dizer desconto para a segurança
social e não consigo uma marcação para uma consulta,
o que é errado), mas sim porque pagam impostos. De acordo com a
Constituição da República todos os portugueses têm
direito à saúde, que deve ser tendencialmente gratuita, incluindo
aqueles que nunca descontaram para a Segurança Social, a qual é
paga com transferências do Orçamento do Estado, e não do
Orçamento da Segurança Social, para o Serviço Nacional de
Saúde.
De acordo com o Relatório que acompanha a Proposta de lei do
Orçamento de Estado para 2003, as transferências do
Orçamento de Estado, ou seja, de receitas obtidas através de
impostos, para o Serviço Nacional de Saúde nos três
últimos anos (2001, 2002 e 2003 ) somarão 15.600,7 milhões
de euros, ou seja, 3.127,6 milhões de contos. Só no ano 2003, o
Orçamento Geral do Estado prevê a transferência de 5.500
milhões de euros (1.100 milhões de contos) para o Serviço
Nacional de Saúde. E isto para fazer face às despesas correntes,
pois estes valores não incluem ainda os investimentos. São
valores muito grandes que naturalmente aguçam os apetites de muitos
interesses.
Não é por acaso que os Mellos, para quem trabalhava o actual
ministro da Saúde antes de ir para o governo, que controla o maior grupo
privado de saúde existente em Portugal (este grupo controla os hospitais
CUF, CUF Descobertas, Amadora Sintra, Clínica Santa Maria de
Belém, José de Mello Saúde/Brasil, SAGIES, etc.),
considere como negócios de futuro precisamente os
sectores como a saúde, a terceira idade, etc..
COMO SÃO GASTOS OS DINHEIROS DA SAÚDE?
Em três anos apenas 2001, 2002 e 2003 as
transferências do Orçamento do Estado, ou seja, de dinheiro
proveniente de impostos pagos por todos os portugueses, para o Serviço
Nacional de Saúde deverão atingir os 3.127,6 milhões de
contos a preços correntes, como se referiu anteriormente (Em 2003,
serão 5.500 milhões de euros, o que corresponde a cerca de 1.100
milhões de contos). No entanto, as despesas do Serviço Nacional
de Saúde ainda são superiores, pois além das
transferências do Orçamento de Estado, ele também têm
receitas próprias provenientes de taxas moderadoras e serviços
prestados a outras entidades como a companhias de seguros.
Cerca de 1104 milhões de contos, ou seja, mais de um terço do
valor transferido pelo Orçamento de Estado, são gastos com meios
complementares de diagnósticos, meios complementares terapêuticos
e produtos vendidos pelas farmácias, portanto valores pagos a entidades
privadas pela realização de análises, de radiografias, de
tratamentos, etc..
Por outro lado, as despesas do Serviço Nacional de Saúde com
medicamentos atingem também valores extremamente elevados. De acordo com
declarações feitas pelo secretário adjunto do ministro da
Saúde num debate realizado em 22 de Janeiro de 2003 na Gulbenkian no
âmbito do Fórum Gulbenkian de Saúde, em 2002 as despesas do
Estado com comparticipações em medicamentos atingiram cerca de
1.900 milhões de euros (380 milhões de contos), o que representou
mais de 68% do valor de todos os medicamentos consumidos em Portugal nesse
mesmo ano. A serem verdadeiros os valores divulgados pelo secretário
adjunto do ministro da Saúde, se somarmos o gasto em 2001, em 2002 e o
que se prevê gastar em 2003 obtém-se um valor que deverá
rondar os 5.000 milhões de euros (1000 milhões de contos), ou
seja, quase um terço do transferido do orçamento do Estado para o
Serviço Nacional de Saúde nesses 3 anos.
De acordo com o presidente da APIFARMA, que é a entidade oficial que
controla a venda de medicamentos em Portugal, o preço de
medicamentos é estipulado pela Direcção Geral do
Comércio e Concorrência, corresponde 68,5% à margem da
indústria farmacêutica, sendo 31,5% para a
distribuição. E destes 31,5% , cerca de 20% vão para
as farmácias. Aplicando esta chave de repartição aos
valores pagos ou a pagar pelo Estado como comparticipação nos
preços de medicamentos dos três anos referidos 2001, 2002 e
2003- obtêm-se os seguintes valores:- Aos laboratórios, o Estado
pagou 685 milhões de contos; às Farmácias, 200
milhões de contos; e a Outros distribuidores: 115
milhões de contos.
Para se poder ficar com uma ideia dos lucros que gera o sector de medicamentos
interessa conhecer também o seguinte:- Como se sabe os
laboratórios fornecem também aos Hospitais os mesmos medicamentos
que vendem através das farmácias. A diferença é que
fornecem aos hospitais nas chamadas embalagens hospitalares, com grandes
quantidades, e a preços muito mais baixos do que vendem às
farmácias, arrecadando mesmo assim elevados lucros. Cálculos
feitos por diversas entidades concluíram que se o Estado adquirisse os
medicamentos comparticipados que a população portuguesa consome
ao mesmo preço que os laboratórios os vendem aos hospitais e se
depois os distribuísse gratuitamente pela população, mesmo
assim ainda poupava muito dinheiro pois o custo que teria seria bastante
inferior ao que tem de pagar com o actual sistema de
comparticipações. E isto deve-se ao facto de que a
comparticipação actual do Estado no preço de cada
medicamento consumido pela população é superior ao
preço que esse mesmo medicamento é vendido pelos
laboratórios aos hospitais. Basta analisar as contas anuais dos
vários laboratórios para concluir o mesmo:- cerca de 30% ou mais
dos seus custos são em acções de publicidade e
promoção, incluindo ofertas aos médicos para que receitem
os medicamentos que produzem.
É evidente que os interesses privados em jogo, orientados
fundamentalmente pela lógica do lucro, são extremamente poderosos
neste sector, não olhando a meios (até à
utilização da corrupção) para alcançar os
seus objectivos. O grave é que sejam à custa do direito à
saúde dos portugueses.
Mas estes interesses privados ainda não estão satisfeitos pois,
como vimos, consideram a saúde um dos negócios
estratégicos do séc. XXI, e estão a procurar impor uma
diferente repartição dos dinheiros da saúde ainda mais
prejudicial quer para os interesses do sector público da saúde em
Portugal quer fundamentalmente para os próprios portugueses que utilizam
esses serviços de saúde. Efectivamente a política que
está
a ser seguida pelo actual ministro da Saúde, um homem que sempre esteve
ao serviço dos Mellos, tem esse claro objectivo como procuraremos
seguidamente provar.
UM MERCADO PRIVADO DE SAÚDE FINANCIADO COM FUNDOS PÚBLICOS
A saúde é um sector onde os investimentos são caros e onde
se desactualizam também muito rapidamente. Então como é
que o ministro da Saúde e o governo estão a procurar resolver
este obstáculo ao desenvolvimento do sector privado da saúde em
Portugal? Através da entrega quer de serviços existentes
nos hospitais públicos e nos centros de centros de saúde
construídos e equipados com dinheiros públicos quer de todos os
novos hospitais a serem construídos a entidades privadas
E como? - A nova Lei de Gestão Hospitalar (Anexo à lei nº
27/2002, de 8 de Novembro de 2002 ), no seu artº 10, nº1,
alínea f) permite entregar a gestão e a exploração
de um centro de responsabilidade, ou de um serviço de
acção médica , a grupos de profissionais de saúde
ou entidades públicas ou privadas que demonstrem capacidade
técnica, sendo para isso necessário um simples despacho do
ministro da Saúde que até pode delegar essa competência na
Administração Regional de Saúde (artº 12, nº1,
alínea f). Portanto, os hospitais serão organizados em
centros responsabilidade e de custos ( artº 11 , nº 3 da mesma
lei), ou seja, em serviços rentáveis e serviços não
rentáveis, e os rentáveis poderão ser entregues à
gestão e exploração privada incluindo os respectivos
equipamentos pagos com dinheiros públicos. Os Estatutos dos 34 hospitais
que foram empresarializados no seu artº 9 , nº1 alíneaq d)
permite à administração desses hospitais celebrar
contratos ou acordos que tenham como objecto a gestão de partes
funcionalmente autónomas do hospital Isto em
relação aos hospitais existentes que estão em
funcionamento.
Em relação aos Centros de Saúde , o decreto lei que
já foi aprovado pelo governo, mas que ainda não foi publicado, no
seu artº23 (da versão conhecida) estabelece que pode o
ministro da Saúde autorizar a gestão de um centro de
saúde, de uma extensão, ou de parte funcionalmente
autónoma, por entidades públicas ou privadas com ou sem fins
lucrativos, que demonstrem competência técnica
Em relação aos novos 10 hospitais a construir Loures,
Cascais, Vila Franca de Xira, etc., . a lei que regula a sua entrega a
entidades privadas é o Decreto-lei 185/2002, publicado em 20 de Agosto
de 2002, portanto em pleno período de férias , talvez para passar
despercebido.
Assim, o artº 3 deste decreto-lei permite o desenvolvimento de
parcerias em saúde em regime de gestão e financiamento
privados. E segundo o nº2 do artº 8 do mesmo decreto-lei
o contrato de gestão pode ter por objecto a concepção,
construção, financiamento, conservação e
exploração de estabelecimentos ou de parte funcionalmente
autónoma.
Em suma, foram assim criadas pelo actual governo as condições
legais que permitem a transferência para a gestão privada de todos
os serviços existentes nos hospitais públicos e nos centros de
saúde construídos e equipados com dinheiros públicos que
os privados estejam interessados, por serem naturalmente lucrativos (é
natural e previsível que o que não dê lucro os privados
não estejam interessados) assim como os novos estabelecimentos de
saúde, nomeadamente os novos hospitais.
Mas para além da transferência ou da construção de
serviços e equipamentos executados com dinheiros públicos para os
privados era também necessário garantir um mercado, ou seja,
clientes, pois sem mercado eles não conseguiriam
rentabilizar os serviços e equipamentos assim obtidos.
E como é que o ministro da Saúde, e o governo PSD/PP, pretendem
garantir esse mercado seguro aos privados ? Através do seu financiamento
com base no Orçamento Geral do Estado, ou seja, à custa de
dinheiros públicos. Assim , A Base XXXIII da Lei 48/90, que é a
chamada Lei de Bases da Saúde , que foi alterada pela Lei nº
27/2002, de 8 de Novembro de 2002, portanto uma lei publicada pelo actual
governo, em relação ao financiamento passou a estabelecer o
seguinte:- O Serviço Nacional de Saúde é financiado
pelo Orçamento do Estado, através do pagamento dos actos e
actividades efectivamente realizados segundo uma tabela de preços que
consagra uma classificação dos mesmos actos, técnicas e
serviços de saúde. E como os serviços e os hospitais
embora de gestão e exploração privada ficam inseridos no
Serviço Nacional de Saúde, ou por já pertencerem (Centros
de Saúde e serviços pertencentes a hospitais públicos em
funcionamento) ou porque de acordo com a lei passarem a pertencer (artº 1,
do Decreto-Lei nº 185/2002, relativamente aos novos hospitais) fica assim
garantido um mercado certo para os privados pago com dinheiros públicos.
E isto porque os utentes dos serviços de saúde passarão a
poder recorrer tanto aos centros de saúde e hospitais públicos,
ou pelo menos ao que restar deles) assim como aos serviços e hospitais
dados à gestão e exploração privada, ficando o
Estado com a obrigação de pagar igualmente a uns e outros de
acordo com uma tabela de preços aprovada. Desta forma, ficaria
assegurado aos privados um mercado de saúde pago pelo Orçamento
do Estado.
Em suma, é desta forma que o actual governo pretende criar as
condições, à custa de dinheiros públicos, para o
rápido desenvolvimento do sector privado da saúde em Portugal,
que até agora tem estado bloqueado devido, por um lado, à falta
de mercado e, por outro lado, porque os equipamentos de saúde são
de custo muito elevado.
A grande questão que imediatamente se coloca é que o Estado
não tem meios financeiros, ainda mais numa época de grave crise
financeira, para garantir simultaneamente um serviço público de
saúde de qualidade e pagar aos privados que estão mais
interessados na quantidade do que na qualidade do serviço prestado.
A ir para a frente esta política de apoio aos privados com dinheiros
públicos, como pretende o actual governo, rapidamente se assistiria
à destruição do Serviço Nacional de Saúde,
passando a população a ficar totalmente nas mãos dos
privados, em termos da sua saúde, o que levará ao aumento
rápido dos custos dos serviços de saúde, e a que passasse
a vigorar o princípio de quem quiser saúde terá de
pagar, levando milhares e milhares de portugueses à
exclusão do acesso à saúde por falta de meios para a pagar.
A recente informação já veiculada pelos
órgãos de comunicação social de que o governo
tenciona agravar significativamente as taxas moderadoras pagas pelos utentes
dos serviços de saúde apenas confirma o que se acabou de dizer.
SERÁ A SAÚDE O NEGÓCIO DO FUTURO ?
Em 22 de Janeiro de 2003, realizou-se na Gulbenkian o primeiro debate do
Fórum de Saúde 2003, tendo sido orador principal Bernard
Koucchner , ex-ministro de Saúde de França, e fundador da
Associação Médicos sem Fronteira, e moderadora a
ex-ministra Maria de Belém.
Três ideias importantes surgiram nesse debate para quais desejamos chamar
a atenção, que são as seguintes:-(1) A saúde
não é um bem de consumo como os outros; (2) As despesas de
saúde não pararão de crescer; (3) É preciso ter
muito cuidado com a privatização da saúde.
A saúde não é um bem de consumo como outro qualquer, pois
está associado á vida humana e a qualidade dessa vida depende do
acesso e da qualidade dos serviços de saúde. Para além
disso, a sua necessidade é tanto maior quanto maiores foram as
privações sofridas e quanto menor for o acesso a cuidados de
saúde ao longo da vida. Pode-se mesmo dizer que em média a
necessidade deste bem essencial que são os cuidados de saúde
é inversamente proporcional à capacidade financeira para o pagar.
Quanto mais se precisa devido à vida de privações que se
teve de suportar menos dinheiro se tem para pagar os cuidados de saúde
que naturalmente se necessita. É por tudo isto que o principio de
quem quiser saúde que a pague é não só
contrário ao que se encontra estabelecido na Constituição
da República que dispõe que todos têm direito
à protecção da saúde (artº 64,
nº1), e não apenas aqueles que têm dinheiro para a pagar,
sendo este direito garantido através do serviço nacional de
saúde universal e geral
tendencialmente gratuito (artº
64, nº2, alínea a da Constituição da
república); repetindo, o principio de quem quiser saúde que
a pague que alguns defendem é não só
contrário ao que estabelece a nossa Constituição mas
também ao respeito que deverá merecer o ser humano.
As despesas com saúde estão a aumentar e continuarão a
aumentar por duas razões fundamentais.
Em primeiro lugar, porque a população com mais de 65 anos, ou
seja, aquela que necessita de mais cuidados de saúde não para de
crescer. Em 1995, a população com mais de 65 anos representava
14,7% da população total, enquanto actualmente, de acordo com o
último censo, já ultrapassa os 16,5% sendo pela primeira superior
à população com menos de 14 anos.
Em segundo lugar, porque a esperança de vida está também a
aumentar em Portugal e de uma forma rápida. Por exemplo, em 1995, as
crianças que nasceram neste ano, se fossem do sexo masculino a sua
esperança de vida era de 71,35 anos e se fossem do sexo feminino a sua
esperança de vida era já de 78,57 anos, portanto, era
provável que vivam 71,35 anos ou 78,57 anos conforme o sexo. No entanto,
as crianças que nasceram em 2001, de acordo com o último censo, a
esperança de vida já era mais elevada, a saber:- se fossem do
sexo masculino: 73,47 anos, portanto mais 2,12 anos de que em 1995; e se fossem
do sexo feminino a sua esperança de vida já seria de 80,3 anos,
ou seja, mais 1,73 anos do que em 1995.
Em resumo, o peso da população com mais de 65 anos está a
aumentar assim como está a aumentar a esperança de vida dos
portugueses, o que é também um resultado da existência do
Serviço Nacional de Saúde. No entanto, esses factos que
são muito positivos para os portugueses, tem inevitavelmente um
preço que é precisamente o aumento contínuo das despesas
com a saúde. É isso o que está a suceder em todos os
países do mundo, e nomeadamente em toda a União Europeia, facto
esse sublinhado por Bernard Koucchner.
Outro aspecto salientado por Bernard Koucchner é a ilusão da
privatização da saúde, porque ela nunca trouxe nem
melhores serviços de saúde nem custos de saúde mais baixos
para a população, muito pelo contrário.
EMPRESARIALIZAÇÃO DA SAÚDE SIGNIFICARÁ
DEGRADAÇÃO NA QUALIDADE DOS SERVIÇOS DE SAÚDE
PRESTADOS À POPULAÇÃO?
Uma das teclas mais matraqueadas pelo actual ministro da Saúde e por
todo o governo é que é necessária melhorar a forma como
são utilizados os recursos disponibilizados pelo Estado para a
saúde dos portugueses, e que isso só se consegue através
da empresarialização dos hospitais e dos centros de saúde,
ou seja, da aplicação dos princípios da gestão
privada à gestão das unidades de saúde. Mas nunca se deu
ao trabalho de provar isso, com exemplos nacionais (ex. Hospital Amadora
Sintra, gerido pelo grupo Mellos, em que os resultados têm sido
desastrosos existindo uma situação de conflito entre os Mellos e
o Estado ) ou exemplos estrangeiros, talvez pensando que mesmo que seja uma
mentira, desde que repetida muitas vezes, quem a ouve acabará por
acreditar nela.
A verdade é que a empresarialização das unidades de
saúde não representa necessariamente uma boa gestão. Muito
pelo contrário, até poderá representar um gestão
contrária aos princípios a que se deve submeter uma unidade de
saúde como provaremos.
Para se compreender as consequências prováveis da chamada
empresarialização das unidades de saúde, é preciso
ter presente quais são os princípios que normalmente orientam
aquilo que se chama uma boa gestão privada. E esses princípios
são os seguintes:- alcançar resultados, que são
normalmente o lucro ou o domínio de um determinado mercado ou parcela de
mercado, com o menor custos possíveis. A qualidade do serviço
só interessa e na medida em que isso for necessário para captar
ou fidelizar o cliente.
As novas leis de saúde aprovadas e publicadas pelo governo actual
põem o acento tónico na quantidade e concorrência,
descurando qualidade, dos actos de saúde realizados. Assim, os
hospitais, os centros de saúde, os serviços de saúde, etc,
tenham gestão privada ou pública serão pagas com base na
quantidade dos actos de saúde realizados, portanto receberão uma
importância em euros por cada acto de saúde que realizem.
Não existe qualquer referência ou ponderação
à qualidade. Por exemplo, o decreto-lei que o governo aprovou para os
centros de saúde estabelece no nº9 do artº 12 que cabe
ao coordenador da unidade de cuidados de médicos adoptar e fazer cumprir
as orientações clínicas relativas à
prescrição de medicamentos e de meios complementares de
diagnóstico e terapêutica, bem como os protocolos adequados
às patologias mais frequentes, efectuando regularmente a
avaliação em termos de qualidade e de custo-beneficio.
Portanto, os médicos deixarão de ter poder para prescrever os
meios complementares de diagnósticos (analises, radiografias, etc.) e os
medicamentos que considerem mais adequados para o doentes, limitando-se apenas
a seleccionar de uma lista aprovada superiormente o que está fixado para
cada patologia (doença). Portanto, a decisão do médico
não se baseará nas necessidades do doente, mas terá de se
sujeitar ao estabelecido superiormente com base em critérios
economicistas que caracterizam uma boa gestão privada ( a dita
empresarialização de que fala tanto o governo). E isto
válido tanto para os centros de saúde como para os hospitais.
E tudo isto ainda se torna mais grave se se tiver presente que as unidades de
saúde, sejam de gestão pública ou privada, serão
pagas com base na quantidade de actos de saúde que realizaremos (um
preço por cada acto), passando para segundo plano a qualidade. Isto
levará os privados a reduzirem ao máximo nos custos, reduzindo o
tempo de atendimento de cada doente pelo médico (por exemplo, passando o
tempo médio que dura um consulta de 15 minutos para metade), reduzindo o
número de análise e de radiografias que normalmente pedem assim
como os medicamentos que prescrevem, para assim reduzir custos e,
consequentemente, maximizar os lucros. E muitos serviços
públicos, face à concorrência dos privados, para
sobreviverem poderão ser arrastados a entrar no mesmo esquema de
funcionamento, afectando gravemente a qualidade do serviço de
saúde prestado às populações. Em resumo, é
esta a lógica inevitável da chamada
empresarialização de que tanto fala o governo.
Ninguém que conheça minimamente os problemas do Serviço
Nacional de Saúde poderá dizer que não seja
necessário implementar uma melhor e mais responsável
gestão nas unidades de saúde, quer sejam hospitais ou centros de
saúde. Mas o caminho que deve ser seguido para alcançar esse
objectivo importante não é nem a chamada
empresarialização nem o caminho que o governo está a
seguir.
Como provamos no estudo que realizamos Perguntas e Respostas sobre a
Saúde um, para não dizer mesmo, o maior problema que
enfrenta o Serviço Nacional de Saúde é precisamente a
promiscuidade público privado, que determina que profissionais de
saúde, trabalhando simultaneamente no público e no privado a
fazer o mesmo, concorram entre si, levando à subutilização
dos recursos pagos com dinheiros públicos ( são milhares de
profissionais de saúde que não cumprem horários,
são equipamentos extremamente caros que não utilizados ou que
são subutilizados por falta de profissionais qualificados, são
profissionais de saúde que encaminham os seus doentes para os seus
consultórios ou para as empresas para quem trabalham também, ou
então que fazem o inverso encaminhando os seus doentes privados para os
hospitais onde também trabalham e passando à frente de todos os
que estão inscritos, etc., etc.). Chegou se ao ponto da
própria lei permitir o exercício da clínica privada nos
próprios hospitais públicos: efectivamente o artº 32, do
Decreto-Lei 73/90 estabelece o seguinte:- Exercício de actividade
privada no hospital
.(1) Os chefes de serviço e os directores de
departamento e de serviço em regime de dedicação exclusiva
poderão ser autorizados a atender doentes privados em
instalações do respectivo estabelecimento e fora do
horário de serviço; (2) A mesma possibilidade é concedida,
independentemente da categoria, a médicos de dedicação
exclusiva que integrem centros de responsabilidade.. É a
legalização da promiscuidade que domina actualmente o
Serviço Nacional de Saúde e que determina em grande parte a
má e deficiente utilização dos seus recursos com
consequências extremamente para população, de que
são exemplos comprovativos as listas de espera,, as dificuldades em
marcar uma consulta, falta de médicos de família, etc..
Mas neste campo o ministro da Saúde e o governo não tem feito
nada nem mostram interesse em fazer; muito pelo contrario até tem criado
condições para agravar essa promiscuidade. Efectivamente, as leis
publicadas que permitem a entrega de serviços dos hospitais e dos
centros de saúde à exploração e gestão
privada determinará inevitavelmente um aumento da já elevada
promiscuidade existente com consequências graves para a
população.
Igualmente os órgãos de comunicação social
têm noticiado factos que mostram que a melhor utilização
dos recursos existentes não constitui a principal
preocupação do ministro da Saúde. Assim, na revista
Visão de 5 de Fevereiro de 2003 podia ler o seguinte:-
A saúde é a área mais permeável ao
clientelismo.
centros de saúde como os de Silves, Rio de
Mouro, ou da Luz Soriano em Lisboa- foram mudando de mãos. Hospitais
idem: Torres Vedras, Coimbra, Évora, Portalegre, Cascais,
Santarém, Porto, Lisboa
a lista continua. Quando ficar
concluída, esta revolução custará ao Estado
70 milhões de euros (14 milhões de contos) , por ano, em
salários
Os administradores dos 34 hospitais que foram empresarializados passaram a
ganhar mensalmente entre 6415 e os 5021 euros (entre 1290 contos e 1042
contos), acrescidos ainda de 30% para despesas de representação,
ou seja, ganharão duas ou três vezes o que ganham os actuais
gestores públicos e o que continuarão a ganhar os gestores do
Hospital Santa Maria (Público, 30 de Janeiro de 2003).
Os comentários são desnecessários pois os dados
apresentados mostram que existe uma distância muito grande entre aquilo
que o ministro e o governo dizem e aquilo que efectivamente fazem, para mal da
saúde dos portugueses.
Loures, 02/Fev/2003
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Economista.
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