Defesa e afirmação do marxismo-leninismo
O presente texto encerra a série de reflexões que O Militante tem
vindo a publicar a propósito do 120.o aniversário da morte de
Karl Marx. Coincidindo a sua publicação com a passagem de mais um
ano sobre a Revolução Russa de 1917, o seu espírito e a
sua letra não podiam deixar de evocar a defesa teórica e a
afirmação prática do marxismo por Lénine, o mais
destacado obreiro de uma revolução cujos êxitos e
conquistas para os trabalhadores e os povos de todo o mundo não
apagando erros e derrotas ao longo do seu processo de desenvolvimento se
inscreveram indelevelmente na história do século XX.
Em 1835, um jovem de 17 anos escrevia num trabalho para um exame de fim de
estudos liceais: «Se escolhermos uma profissão em que possamos
trabalhar ao máximo pela humanidade, não haverá
dificuldades que nos possam vergar, porque são apenas sacrifícios
para [o bem] de todos; não fruiremos, então, uma alegria pobre,
limitada, egoísta, mas a nossa felicidade pertencerá a
milhões de [pessoas].»
[1]
Esse jovem, como todos já adivinharam, chamava-se Karl Marx. Será
esta filosofia de vida que orientará, tanto a sua actividade
prática como a sua criação teórica.
Impedido de seguir uma carreira universitária, irá abraçar
o jornalismo, sendo sua concepção que quem escreve deve
«ganhar dinheiro para poder existir e escrever» mas não
«existir e escrever para ganhar dinheiro»
[2]
. Será essa actividade que lhe dará «os primeiros motivos
para que me ocupasse com questões económicas»
[3]
e lhe permitirá aperceber-se de que existem
«relações que determinam tanto as acções das
pessoas privadas como das autoridades singulares e que são tão
independentes delas quanto o método da respiração»
[4]
. Posto assim no caminho do materialismo entendido como o primado da
realidade (natural e social) em relação à
consciência, às ideias , depressa tirará a
conclusão de que as «Ideias, em geral, nada podem levar a cabo.
Para o levar a cabo das ideias são precisos os homens, que empregam um
poder prático»
[5]
. Ao mesmo tempo, identificará esses homens e qual a sua tarefa
histórica, articulando materialismo e posição de classe:
«O proletariado executa a sentença que a propriedade privada
pronuncia contra si própria pelo engendramento do proletariado
[...].»
[6]
A sua estada em Paris tinha consolidado a sua opção
política ao revelar-lhe que para os operários «a
fraternidade dos homens não é [...] nenhuma frase, mas a
verdade» e que «a nobreza da humanidade ilumina-nos a partir dessas
figuras endurecidas pelo trabalho»
[7]
.
Entretanto, Marx demarcara-se já do que designava por «comunismo
realmente existente», dogmático e doutrinário, assinalando
que «o mérito da nova orientação» consistia em
que «nós não queremos antecipar dogmaticamente o mundo, mas
encontrar, a partir da crítica do mundo velho, o mundo novo».
Acrescentava que a tarefa que se impunha não era «a
construção [artificial] do futuro e o aprontar [de planos] para
todos os tempos», mas «a crítica sem
contemplações de todo o existente, sem
contemplações no sentido de que a crítica não pode
ter medo dos seus resultados, nem do conflito com os poderes
estabelecidos». E prosseguia: «Nada nos impede pois de começar
a nossa crítica pela crítica da política, pela tomada de
partido em política, portanto, pelas lutas reais, de nos identificarmos
com elas. Nós não enfrentamos então o mundo, de modo
doutrinário, com um princípio novo: eis a verdade, ajoelhai-vos!
Nós desenvolvemos para o mundo, a partir dos princípios do
mundo, novos princípios.»
[8]
«Comunismo crítico»
[9]
chamará Marx a esta «nova orientação» que
radica na análise das contradições materiais de um mundo
em devir e apela a agir sobre elas, tomando partido pelo proletariado na sua
luta de classe contra a burguesia exploradora. Nele se unem materialismo e
dialéctica, teoria e prática, ciência e
revolução. Marx tem plena consciência das
condições objectivas que permitiram essa união, da sua
génese histórica. Num texto de meados de 1847, Miséria da
Filosofia, escreve: «Enquanto o proletariado não está ainda
suficientemente desenvolvido para se constituir em classe, enquanto, por
conseguinte, a própria luta do proletariado com a burguesia não
tem ainda um carácter político, e enquanto as forças
produtivas não estão ainda suficientemente desenvolvidas no seio
da própria burguesia para deixar entrever as condições
materiais necessárias à libertação do proletariado
e à formação de uma classe nova», enquanto tal
sucede, os «teóricos são apenas utopistas que, para obviarem
às necessidades das classes oprimidas, improvisam sistemas e correm
atrás de uma ciência regeneradora. Mas à medida que a
história avança e que com ela a luta do proletariado se desenha
mais nitidamente, eles deixam de ter necessidade de procurar a ciência no
seu espírito, basta que se dêem conta do que se passa diante dos
seus olhos e se façam o seu porta-voz. Enquanto procuram a
ciência e apenas fazem sistemas, enquanto estão no início
da luta, não vêem na miséria senão a miséria,
não vêem nela o lado revolucionário, subversivo, que
derrubará a sociedade antiga. A partir desse momento, a ciência,
produzida pelo movimento histórico e associando-se a ele com pleno
conhecimento de causa, deixou de ser doutrinária, tornou-se
revolucionária.»
[10]
Isso representava um passo decisivo na história da humanidade, como
Lénine salientará mais tarde: «A humanidade sonha há
muitos séculos, inclusive muitos milénios, em destruir de
vez toda a exploração. Mas esses sonhos continuaram a ser
sonhos até que milhões de explorados começaram a unir-se
em todo o mundo a fim de travar uma luta consequente, firme e multiforme para
transformar a sociedade capitalista na direcção do próprio
desenvolvimento desta sociedade. Os sonhos socialistas transformaram-se numa
luta socialista de milhões de seres unicamente quando o socialismo
científico de Marx ligou as aspirações transformadoras
à luta de uma classe determinada. Fora da luta de classes, o socialismo
é uma frase vazia ou um sonho ingénuo.»
[11]
Fariam bem em meditar nestas palavras aqueles congeminadores intelectuais que
apenas vêem as manifestações miseráveis do
capitalismo, limitando-se à sua denúncia teórica ou a
avançar com alternativas que não passam de paliativos dentro do
próprio sistema ou mesmo a procurar atribuir aos comunistas o papel de
conter as reivindicações dos movimentos sociais para as depor nas
mãos dos governos
[12]
; fariam bem em meditar naquelas palavras os que são incapazes de
descortinar no pólo da miséria das massas exploradas o
pólo oposto, revolucionário, porque abandonaram o marxismo ou
«não compreenderam de modo nenhum aquilo que é
decisivo» nele, «a sua dialéctica revolucionária»
[13]
, como assinalava Lénine, acentuando que «a dialéctica exige
que um fenómeno social seja estudado sob todos os seus aspectos,
através do seu desenvolvimento, e que a aparência, o aspecto
exterior seja reconduzido às forças motrizes essenciais, ao
desenvolvimento das forças produtivas e à luta das classes»
[14]
.
Na verdade, a unidade do aparente, do fenómeno (o que se nos manifesta)
e da essência (a estrutura que o determina na unidade do seu devir)
não é imediata: «se a forma de aparecimento e a
essência das coisas imediatamente coincidissem», dizia Marx em O
Capital, «toda a ciência seria supérflua»
[15]
. A unidade de fenómeno e essência é, como acentua
Barata-Moura, «um processo, que se funda materialmente na própria
unidade dialéctica do real»
[16]
, e que cabe à ciência revelar. Mas, como Marx advertira
já num relatório lido perante o Conselho Geral da
Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1865, «A
verdade científica é sempre paradoxal, se julgada pela
experiência de todos os dias, que apenas apanha a aparência
enganadora das coisas.».
[17]
Por isso, ficar-se pelas «aparências» se traduz
necessariamente em passividade face à exploração
capitalista, na sua aceitação. Um exemplo disso é a,
infelizmente vulgar, resignação, acompanhada de um encolher de
ombros, de que «sempre haverá ricos e pobres». Ficar-se pelas
«aparências» é tomar por verdade evidente o que
não o é. Exemplo disso é a desde sempre propalada
mentirosa afirmação dos economistas e ideólogos burgueses
para desarmar as reivindicações económicas dos
trabalhadores e o movimento sindical de classe , segundo a qual «o
aumento de salários acarreta o aumento dos preços». Por
isso, para não se ficar pelas «aparências» é
preciso ultrapassar uma consideração estática das coisas,
é preciso um método dialéctico de conhecimento que
apreenda a conexão real dos processos e das coisas no seu devir
contraditório, suscitando e orientando a intervenção
socialmente transformadora das massas trabalhadoras. Desta dialéctica
materialista dirá Marx, no posfácio à 2.ª
edição alemã de O Capital, ser ela «um
escândalo e uma abominação para a burguesia e para os seus
porta-vozes doutrinários, porque, na compreensão positiva do
existente, ela encerra também ao mesmo tempo a compreensão da sua
negação, da sua decadência necessária; porque ela
apreende cada forma devinda no fluir do seu movimento, portanto, também
pelo seu lado transitório; porque não deixa que nada se lhe
imponha; porque, pela sua essência, é crítica e
revolucionária»
[18]
.
Ao elaborarem uma teoria fundamentada na dialéctica material do
movimento histórico e com ele interagindo revelando a
contradição inerente ao modo de produção
capitalista entre o carácter social da produção e a
apropriação privada da riqueza criada; revelando o segredo da
exploração capitalista: a apropriação de trabalho
não pago, a mais-valia; revelando que a conquista do poder
político pela classe operária e a abolição das
classes decorriam das próprias características das classes e da
sua luta no capitalismo; etc. , ao elaborarem uma teoria assim, Marx e
Engels tornar-se-iam necessariamente alvo dos ataques de pretensos renovadores
que ocultam mal e ornamentam pior o seu oportunismo político, a sua
abdicação da luta política de classe proletária ou,
para sermos magnânimos, a sua cegueira política.
Na verdade, se há quem pense ser nova e poder trazer algo de novo a
actual moda renovadora de deixar para trás Marx e Engels (na verdade,
ficando para trás deles), considerando irremediavelmente caduca a sua
teoria revolucionária, atente no que escrevia Lénine no dobrar do
século xix: «Até ao presente, as doutrinas de Marx e Engels
eram consideradas como o fundamento sólido da teoria
revolucionária; agora [repito: nos finais do século xix],
levantam-se vozes por toda a parte para proclamar essas doutrinas insuficientes
e caducas.» E perguntava: «que trouxeram pois de novo a esta teoria
esses tonitruantes renovadores que tanto barulho fazem na hora
actual [...]? Absolutamente nada: não fizeram avançar um passo a
ciência que Marx e Engels nos recomendaram desenvolver; não
ensinaram ao proletariado nenhum novo processo de luta; não fizeram
senão recuar recolhendo fragmentos de teorias atrasadas e pregando ao
proletariado, não a teoria da luta, mas a das concessões
das concessões aos piores inimigos do proletariado, aos governos e aos
partidos burgueses [...]». E logo Lénine alertava: «Sabemos
que estas palavras nos valerão uma avalancha de acusações:
gritar-se-á que queremos fazer do partido socialista uma ordem de
ortodoxos, perseguindo os heréticos que se
afastam do dogma, que têm uma opinião independente,
etc. Conhecemo-las, a todas estas frases contundentes na moda.»
[19]
Também nós conhecemos estas velharias repostas em moda!
Quando hoje ouvimos oportunistas de todos os matizes latindo [para
utilizar uma expressão de Marx
[20]
] por vezes prazenteiramente em uníssono com toda a
reacção utilizar as derrotas do socialismo na URSS e
outros países do Leste europeu na pretensão de deitarem
definitivamente pela borda fora o marxismo-leninismo, é bom reflectirmos
nas palavras de Marx, a propósito de uma outra derrota do movimento
operário, a da Comuna de Paris, pois delas resultam bem nítidas
as diferenças entre o estofo de um revolucionário e o de
renegados. Diz-nos Marx em A Guerra Civil em França: «Ela [a
classe operária] não tem utopias prontas a introduzir par
décret du peuple [por decreto do povo]. Sabe que para realizar a sua
própria emancipação e com ela essa forma superior
para a qual tende irresistivelmente a sociedade presente pela sua
própria actividade económica terá de passar por
longas lutas, por uma série de processos históricos que
transformam circunstâncias e homens. Não tem de realizar ideais
mas libertar os elementos da sociedade nova de que está grávida a
própria velha sociedade burguesa em colapso. Na plena consciência
da sua missão histórica e com a resolução
heróica de agir à altura dela, a classe operária pode
permitir-se sorrir à invectiva grosseira dos lacaios de pluma e tinteiro
e ao patrocínio didáctico dos doutrinadores burgueses de boas
intenções, que derramam as suas trivialidades ignorantes e as
suas manias sectárias no tom oracular da infalibilidade
científica.».
[21]
O mesmo estofo revolucionário transparece na crítica de
Lénine aos «reformistas cobardes», os quais argumentavam da
forma mais «estereotipada» «que nós [a Rússia]
não estamos maduros para o socialismo, de que não existem no
nosso país, segundo a expressão de vários
doutos senhores dentre eles, as premissas económicas
objectivas para o socialismo». Interrogava Lénine: «não
passa pela cabeça de nenhum deles perguntar: não podia um povo
que se encontrou numa situação revolucionária como a que
se criou durante a primeira guerra imperialista, não podia ele, sob a
influência da sua situação sem saída,
lançar-se numa luta que lhe abrisse pelo menos algumas possibilidades de
conquistar para si condições que não são de todo
habituais para o crescimento ulterior da civilização?».
[22]
Na prossecução da missão histórica da classe
operária, acima referida por Marx, qual o papel dos comunistas, quer no
plano prático quer no plano teórico?
Lê-se no Manifesto: os comunistas «não têm nenhuns
interesses separados dos interesses do proletariado todo», mas são
«na prática, o sector mais decidido, sempre impulsionador, dos
partidos operários de todos os países; na teoria, eles têm,
sobre a restante massa do proletariado, a vantagem da inteligência das
condições, do curso e dos resultados gerais do movimento
proletário».
Porque assim são, segue-se que «por toda a parte os comunistas
apoiam todo o movimento revolucionário contra as situações
sociais e políticas existentes» e lutando «para
alcançar os fins e interesses imediatos da classe operária»,
no entanto, os comunistas «no movimento presente representam
simultaneamente o futuro do movimento»
[23]
.
O papel de vanguarda dos comunistas e o sistema de alianças aqui
traçado nunca será abandonado por Marx e Engels, ganhando
contornos cada vez mais precisos. Assim, no Congresso da Haia da
Associação Internacional de Trabalhadores (Setembro de 1872),
Marx e Engels fazem aprovar uma Resolução sobre os Estatutos onde
expressam com toda a clareza: «Na sua luta contra o poder colectivo das
classes possidentes, o proletariado só pode agir como classe
constituindo-se a si próprio em partido político distinto, oposto
a todos os antigos partidos formados pelas classes possidentes.
«Esta constituição do proletariado em partido
político é indispensável para assegurar o triunfo da
Revolução social e do seu objectivo supremo: a
abolição das classes.
«A coalizão das forças operárias, já obtida
pela luta económica, deve servir também de alavanca nas
mãos desta classe na sua luta contra o poder político dos seus
exploradores.
«Servindo-se sempre os senhores da terra e do capital dos seus
privilégios políticos para defender e perpetuar os seus
monopólios económicos e subjugar o trabalho, a conquista do poder
político torna-se o grande dever do proletariado.».
[24]
Com razão dizia o jovem Lénine, em perfeita coerência com a
teoria revolucionária de Marx e Engels, que esta «pôs a claro
a verdadeira tarefa de um partido socialista revolucionário, que
não é inventar planos de reorganização da
sociedade, ou de pregar aos capitalistas e seus lacaios a melhoria da sorte dos
operários [...], mas organizar a luta de classe do proletariado e de
dirigir essa luta cujo objectivo final é a conquista do poder
político pelo proletariado e a organização da sociedade
socialista.»
[25]
A essa tarefa irá Lénine dedicar, abnegada e criadoramente, toda
a sua vida, que culminará com a revolução russa de 1917 e
o início da construção do socialismo como primeira etapa
da superação revolucionária do capitalismo pelo comunismo.
E com plena justiça histórica o seu nome ficará
indissoluvelmente ligado ao nome do legado dos seus mestres, passando a
concepção do mundo em que os partidos comunistas e
revolucionários baseiam a sua actividade a designar-se por
marxismo- leninismo.
Defendemos hoje o marxismo-leninismo com o mesmo espírito com que no seu
tempo Lénine defendia o marxismo. «Defender uma tal teoria»,
dizia ele, «contra os ataques injustificados e as tentativas de a alterar
não significa de modo nenhum que se seja inimigo de toda a
crítica. Nós não [a] consideramos de modo nenhum [...]
como qualquer coisa de acabado e intangível; pelo contrário,
estamos persuadidos de que ela somente colocou as pedras angulares da
ciência que os socialistas devem fazer progredir em todas as
direcções se não querem ficar atrasados em
relação à vida»
[26]
.
Mas não nos farão progredir um passo propostas proclamando que
«o problema já não é, na nossa época,
privilegiar o combate contra a exploração do trabalho [...].
Já não é preparar a substituição de uma
classe por uma outra, a tomada do poder por um grupo social no lugar de um
outro»
[27]
e nos propõem o que eufemisticamente chamam «uma
revolução da idade adulta»
[28]
. Segundo esta, a «sociedade [...] decide acabar com as
sujeições nas relações que os indivíduos
estabelecem entre eles»; ou o «mundo [...] decide que há lugar
no seu seio, justamente, para todo o mundo, para todos os povos e
cujo desenvolvimento se torna um co-desenvolvimento»
[29]
; ou ainda a «sociedade», a «civilização»
podem «decidir se revolucionar sem que alguém possa
sonhar em lho im- por»
[30]
!! Pondo de lado a luta contra o capital e a necessidade da conquista do poder
político pelas classes exploradas, rejeitando Marx porque «seria um
erro reproduzir análises e receitas passadas»
[31]
, só restava a Robert Hue (são suas as palavras que vimos a
citar) hipostasiar a «sociedade», o «mundo», a
«civilização» como entidades autodecisórias,
caindo assim no mais puro idealismo e na utopia pré-marxistas.
Nós não queremos ficar para trás em relação
à vida, mas há análises e afirmações do
passado cuja validade, permanência e pertinência, é afirmada
pelas realidades actuais, porque dizem respeito ao que é inerente ao
modo de produção capitalista. Citaremos a seguir duas delas:
Na Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos
Trabalhadores (1864), Marx constatava: «[...] tornou-se agora uma verdade
demonstrável a todo o espírito sem preconceitos e apenas negada
por aqueles cujo interesse está em confinar os outros a um
paraíso de tolos que nenhum melhoramento da maquinaria, nenhuma
aplicação da ciência à produção,
nenhuns inventos de comunicação, nenhumas novas colónias,
nenhuma emigração, nenhuma abertura de mercados, nenhum
comércio livre, nem todas estas coisas juntas, farão desaparecer
as misérias das massas industriosas; mas que, na presente base falsa,
qualquer novo desenvolvimento das forças produtivas do trabalho
terá de tender a aprofundar os contrastes sociais e a agudizar os
antagonismos sociais». E concluía: «Conquistar o poder
político tornou-se [...] o grande dever das classes
operárias.».
[32]
E em O Capital escrevia, referindo-se a transformações como a
crescente socialização do trabalho, a
«aplicação técnica consciente da ciência»,
o «entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado
mundial», etc.: «Com o número continuamente decrescente de
magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste
processo de transformação, cresce a massa da miséria, da
opressão, da servidão, da degeneração, da
exploração, mas também a revolta da classe operária
[...].» E concluía: «Soa a hora da propriedade privada
capitalista.».
[33]
Ainda em vida de Marx e Engels, já eram, porém, outros os
caminhos que alguns pretendiam fazer o movimento operário e os seus
partidos trilhar. Duas cartas de Engels são elucidativas de como, ele e
Marx, encaravam o reformismo e o oportunismo.
Em carta a Bebel, destacado dirigente do movimento operário
alemão, em Outubro de 1882, Engels considerava inadmissível
«deixar cair, à boa maneira oportunista (ou como em
tradução socialista se diz: possibilista) o carácter de
classe do movimento e o programa, sempre que isso permitisse obter mais votos,
mais partidários». Os que o fizeram, contra os que
consideravam que «a luta deve ser travada como uma luta de classe do
proletariado contra a burguesia» tornaram, concluía Engels, «a
ruptura inevitável»
[34]
.
E a carta, escrita em Dezembro de 1889 a Trier, seu tradutor dinamarquês
e lutador contra o oportunismo, não deixa também lugar para
dúvidas: «Para que, no dia da decisão, o proletariado seja
suficientemente forte para vencer, é preciso Marx e eu
próprio temos defendido esta posição desde 1847 ,
que ele constitua um partido particular, separado de todos os outros e a eles
contraposto, um partido de classe autoconsciente. «Mas isso não
quer dizer [...] que ele não possa [...] apoiar outros partidos em
medidas que ou são imediatamente vantajosas para o proletariado ou
são o progresso no sentido do desenvolvimento económico ou da
liberdade política». Essa postura política, tem,
porém, um pressuposto, acentua Engels, «o de que o carácter
proletário de classe do partido não seja por isso posto em
questão. Para mim essa é a fronteira absoluta»
[35]
.
Os comunistas lutam pelo comunismo não como este sendo um dever-ser
ideal
[38]
, mas como um revolucionar, teoricamente fundamentado e conduzido sob um ponto
de vista de classe, do desenvolvimento contraditório do modo de
produção capitalista; um revolucionar, pois, não a partir
de uma exigência axiológica, mas na base das possibilidades reais
que esse desenvolvimento contraditório, por o ser, abre.
Para terminar, dois ensinamentos de Marx:
«Os homens fazem a sua própria história, mas
não a fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias
escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente
encontradas, dadas e transmitidas.».
[37]
a sociedade comunista tem de ser configurada «não como ela
se desenvolveu a partir da sua própria base, mas, inversamente, tal como
precisamente ela sai da sociedade capitalista; [uma sociedade comunista]
portanto, que, sob todos os aspectos económicos, de costumes,
espirituais , ainda está carregada das marcas da velha sociedade,
de cujo seio proveio».
[38]
Dois ensinamentos, para hoje e para amanhã, e que talvez expliquem muito
do ontem.
NOTAS
(1)
K. Marx, Reflexões de Um Jovem Perante a Escolha de Uma
Profissão, in Marx-Engels Werke (doravante MEW), Ergänzungsband, 1.
T., p. 594.
(2) K. Marx, «Debates sobre a liberdade de imprensa», Gazeta Renana,
n.º 139, 19 de Maio de 1842, in MEW, vol. 1, p. 70.
(3) K. Marx, Para a Crítica da Economia Política, in K. Marx-F.
Engels, Obras Escolhidas em três tomos (doravante: OEME),
Edições «Avante!»-Edições Progresso,
Lisboa-Mosco-vo, t. 1, 1982, p. 530.
(4) «Justificação do Correspondente do Mosela»,
Gazeta Renana, n.º 17, Janeiro de 1843, in MEW, vol. 1, p. 177.
(5) F. Engels-K. Marx, A Sagrada Família, in MEW, vol. 2, p. 126.
(6) Id., Ibid., p. 37.
(7) K. Marx, Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844,
Edições «Avante!», Lisboa, 1994, p. 137.
(8) K. Marx, Carta a A. Ruge, Setembro de 1843, in Marx-Engels Gesamtausgabe
(MEGA2), vol. III/I, pp. 55 e 56.
(9) K. Marx, A Crítica
Moralizante e a Moral Criticante, in MEW, vol. 4, p. 358.
(10) K. Marx, Miséria da Filosofia, Edições
«Avante!», Lisboa, 1991, pp. 111-112.
(11)
V. I. Lénine, Socialismo Pequeno-Burguês e Socialismo
Proletário, in Oeuvres, Éditions Sociales- Éditions du
Progrès, 1966, t. 9, p. 460.
(12) «[...] penso que a tarefa dos comunistas [...] é fazer com que
os movimentos sociais sejam portadores não somente de descontentamento
ou de impaciência [...], mas sobretudo de soluções que o
governo toma à sua conta», Robert Hue, Communisme. Un nouveau
projet, Éditions Stock, 1999, p. 37.
(13) V. I. Lénine, Sobre a Nossa Revolução (A
Propósito das Memórias de N. Sukhánov), in Obras
Escolhidas em seis tomos, Edições
«Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1886, t.
5. p. 366.
(14) V. I. Lénine, A Bancarrota da II Internacional, in Oeuvres, ed.
cit., t. 21, 1960, p. 221.
(15) K. Marx, Das Capital, in MEW, vol. 25, p. 825.
(16) José Barata-Moura, Materialismo e Subjectividade. Estudos em Torno
de Marx, Edições «Avante!», Lisboa, 1998, p. 81. Sobre
o tema em questão leia-se, em particular, o ensaio «Marx e a
cientificidade do saber».
(17) K. Marx, Salário, Preço e Lucro, Edições
«Avante!», Lisboa, 1984, p. 47.
(18) K. Marx, «Posfácio à segunda edição
alemã de O Capital», in OEME, t. 3, 1983, p. 102.
(19) V. I. Lénine, O Nosso Programa, in Oeuvres, ed. cit., t. 4, 1973,
pp. 216-217. Aos leitores que possam estranhar a utilização da
designação «partido socialista» lembramos que o partido
encabeçado por Lénine só no seu VII Congresso
Extraordinário, realizado de 6-8 de Março de 1918, adoptou o nome
de Partido Comunista da Rússia (bolchevique). Sobre as razões
desta mudança veja-se o «Relatório sobre a revisão do
programa e a mudança de nome do partido» aprovado nesse Congresso
in V. I. Lénine, Obras Escolhidas em três tomos,
Edições «Avante!»-Edições Progresso,
Lisboa-Moscovo, 1978, pp. 522-523. Já antes, porém, Lénine
defendera a necessidade dessa mudança de nome num escrito de Abril de
1917 intitulado As Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução em
que lembra textos de Marx e Engels sobre a questão da
denominação do partido do proletariado (ver a obra acima
referida, pp. 43-46).
(20) K. Marx, Carta a J. Weydemeyer, 5 de Março de 1852, in MEW, vol.
28, p. 508.
(21)
K. Marx, A Guerra Civil em França, Edições
«Avante!», Lisboa, 1984, p. 70.
(22) V. I. Lénine, Sobre a Nossa Revolução (A
Propósito das Notas de Sukhánov), in Obras Escolhidas em seis
tomos, ed. cit., t. 5, 1986, pp. 367-368.
(23) K. Marx, Manifesto do Partido Comunista, Edições
«Avante!», Lisboa, 1997, pp. 49, 49-50, 72 e 71.
(24) K. Marx-F. Engels, «Das resoluções do Congresso Geral
realizado na Haia», in OEME, t. 2, 1983, p. 317.
(25) V. I. Lénine, O Nosso Programa, in Oeuvres, ed. cit., t. 4, 1973,
pp. 216-217.
(26) Id., Ibid., pp. 217-218.
(27) Robert Hue, op. cit., pp. 279-280.
(28) Id., Ibid., p. 170. As do passado teriam sido infantis ou juvenis?!
(29) Id., Ibid., pp. 170-171.
(30) Id., Ibid., p. 169.
(31)
Id., Ibid., p. 51.
(32) K. Marx, Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos
Trabalhadores, in OEME, t. 2, 1983, pp. 9 e 12.
(33) K. Marx, O Capital, livro primeiro, tomo III, Edições
«Avante!», Lisboa, 1977, pp. 861-862.
(34) Engels, Carta a Bebel, 28 de Outubro de 1882, in MEW, vol. 35, p. 382.
(35) Engels, Carta a G. Trier, 18 de Dezembro de 1889, in MEW, vol. 37, pp. 326
e 327.
(36) Como dizem Marx e Engels em A Ideologia Alemã: «O comunismo
não é para nós um estado de coisas que deva ser
estabelecido, um ideal pelo qual a realidade [terá] de se regular.
Chamamos comunismo ao movimento real que supera o actual estado de coisas. As
condições deste movimento resultam da premissa actualmente
existente.» (K. Marx-F. Engels, A Ideologia Alemã (1.º
capítulo), Edições «Avante!», Lisboa, 1981, p.
46.
(37) K. Marx, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, Edições
«Avante!», Lisboa, 1982, p. 21.
(38) K. Marx, Glosas Marginais ao Programa do Partido Operário
Alemão, in OEME, t. 3, 1985, p. 15.
[*]
Membro do Comité Central do PCP.
O original encontra-se em
O Militante
,
N.º 267 Novembro/Dezembro de 2003
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
.
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