Defesa e afirmação do marxismo-leninismo

por Francisco Melo [*]

Marx em 1839, aos 21 anos. O presente texto encerra a série de reflexões que O Militante tem vindo a publicar a propósito do 120.o aniversário da morte de Karl Marx. Coincidindo a sua publicação com a passagem de mais um ano sobre a Revolução Russa de 1917, o seu espírito e a sua letra não podiam deixar de evocar a defesa teórica e a afirmação prática do marxismo por Lénine, o mais destacado obreiro de uma revolução cujos êxitos e conquistas para os trabalhadores e os povos de todo o mundo – não apagando erros e derrotas ao longo do seu processo de desenvolvimento – se inscreveram indelevelmente na história do século XX.

Em 1835, um jovem de 17 anos escrevia num trabalho para um exame de fim de estudos liceais: «Se escolhermos uma profissão em que possamos trabalhar ao máximo pela humanidade, não haverá dificuldades que nos possam vergar, porque são apenas sacrifícios para [o bem] de todos; não fruiremos, então, uma alegria pobre, limitada, egoísta, mas a nossa felicidade pertencerá a milhões de [pessoas].» [1]

Esse jovem, como todos já adivinharam, chamava-se Karl Marx. Será esta filosofia de vida que orientará, tanto a sua actividade prática como a sua criação teórica.

Impedido de seguir uma carreira universitária, irá abraçar o jornalismo, sendo sua concepção que quem escreve deve «ganhar dinheiro para poder existir e escrever» mas não «existir e escrever para ganhar dinheiro» [2] . Será essa actividade que lhe dará «os primeiros motivos para que me ocupasse com questões económicas» [3] e lhe permitirá aperceber-se de que existem «relações que determinam tanto as acções das pessoas privadas como das autoridades singulares e que são tão independentes delas quanto o método da respiração» [4] . Posto assim no caminho do materialismo – entendido como o primado da realidade (natural e social) em relação à consciência, às ideias –, depressa tirará a conclusão de que as «Ideias, em geral, nada podem levar a cabo. Para o levar a cabo das ideias são precisos os homens, que empregam um poder prático» [5] . Ao mesmo tempo, identificará esses homens e qual a sua tarefa histórica, articulando materialismo e posição de classe: «O proletariado executa a sentença que a propriedade privada pronuncia contra si própria pelo engendramento do proletariado [...].» [6] A sua estada em Paris tinha consolidado a sua opção política ao revelar-lhe que para os operários «a fraternidade dos homens não é [...] nenhuma frase, mas a verdade» e que «a nobreza da humanidade ilumina-nos a partir dessas figuras endurecidas pelo trabalho» [7] .

Entretanto, Marx demarcara-se já do que designava por «comunismo realmente existente», dogmático e doutrinário, assinalando que «o mérito da nova orientação» consistia em que «nós não queremos antecipar dogmaticamente o mundo, mas encontrar, a partir da crítica do mundo velho, o mundo novo». Acrescentava que a tarefa que se impunha não era «a construção [artificial] do futuro e o aprontar [de planos] para todos os tempos», mas «a crítica sem contemplações de todo o existente, sem contemplações no sentido de que a crítica não pode ter medo dos seus resultados, nem do conflito com os poderes estabelecidos». E prosseguia: «Nada nos impede pois de começar a nossa crítica pela crítica da política, pela tomada de partido em política, portanto, pelas lutas reais, de nos identificarmos com elas. Nós não enfrentamos então o mundo, de modo doutrinário, com um princípio novo: eis a verdade, ajoelhai-vos! Nós desenvolvemos para o mundo, a partir dos princípios do mundo, novos princípios.» [8]

«Comunismo crítico» [9] chamará Marx a esta «nova orientação» que radica na análise das contradições materiais de um mundo em devir e apela a agir sobre elas, tomando partido pelo proletariado na sua luta de classe contra a burguesia exploradora. Nele se unem materialismo e dialéctica, teoria e prática, ciência e revolução. Marx tem plena consciência das condições objectivas que permitiram essa união, da sua génese histórica. Num texto de meados de 1847, Miséria da Filosofia, escreve: «Enquanto o proletariado não está ainda suficientemente desenvolvido para se constituir em classe, enquanto, por conseguinte, a própria luta do proletariado com a burguesia não tem ainda um carácter político, e enquanto as forças produtivas não estão ainda suficientemente desenvolvidas no seio da própria burguesia para deixar entrever as condições materiais necessárias à libertação do proletariado e à formação de uma classe nova», enquanto tal sucede, os «teóricos são apenas utopistas que, para obviarem às necessidades das classes oprimidas, improvisam sistemas e correm atrás de uma ciência regeneradora. Mas à medida que a história avança e que com ela a luta do proletariado se desenha mais nitidamente, eles deixam de ter necessidade de procurar a ciência no seu espírito, basta que se dêem conta do que se passa diante dos seus olhos e se façam o seu porta-voz. Enquanto procuram a ciência e apenas fazem sistemas, enquanto estão no início da luta, não vêem na miséria senão a miséria, não vêem nela o lado revolucionário, subversivo, que derrubará a sociedade antiga. A partir desse momento, a ciência, produzida pelo movimento histórico e associando-se a ele com pleno conhecimento de causa, deixou de ser doutrinária, tornou-se revolucionária.» [10]

Isso representava um passo decisivo na história da humanidade, como Lénine salientará mais tarde: «A humanidade sonha há muitos séculos, inclusive muitos milénios, em destruir “de vez” toda a exploração. Mas esses sonhos continuaram a ser sonhos até que milhões de explorados começaram a unir-se em todo o mundo a fim de travar uma luta consequente, firme e multiforme para transformar a sociedade capitalista na direcção do próprio desenvolvimento desta sociedade. Os sonhos socialistas transformaram-se numa luta socialista de milhões de seres unicamente quando o socialismo científico de Marx ligou as aspirações transformadoras à luta de uma classe determinada. Fora da luta de classes, o socialismo é uma frase vazia ou um sonho ingénuo.» [11]

Fariam bem em meditar nestas palavras aqueles congeminadores intelectuais que apenas vêem as manifestações miseráveis do capitalismo, limitando-se à sua denúncia teórica ou a avançar com alternativas que não passam de paliativos dentro do próprio sistema ou mesmo a procurar atribuir aos comunistas o papel de conter as reivindicações dos movimentos sociais para as depor nas mãos dos governos [12] ; fariam bem em meditar naquelas palavras os que são incapazes de descortinar no pólo da miséria das massas exploradas o pólo oposto, revolucionário, porque abandonaram o marxismo ou «não compreenderam de modo nenhum aquilo que é decisivo» nele, «a sua dialéctica revolucionária» [13] , como assinalava Lénine, acentuando que «a dialéctica exige que um fenómeno social seja estudado sob todos os seus aspectos, através do seu desenvolvimento, e que a aparência, o aspecto exterior seja reconduzido às forças motrizes essenciais, ao desenvolvimento das forças produtivas e à luta das classes» [14] .

Na verdade, a unidade do aparente, do fenómeno (o que se nos manifesta) e da essência (a estrutura que o determina na unidade do seu devir) não é imediata: «se a forma de aparecimento e a essência das coisas imediatamente coincidissem», dizia Marx em O Capital, «toda a ciência seria supérflua» [15] . A unidade de fenómeno e essência é, como acentua Barata-Moura, «um processo, que se funda materialmente na própria unidade dialéctica do real» [16] , e que cabe à ciência revelar. Mas, como Marx advertira já num relatório lido perante o Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1865, «A verdade científica é sempre paradoxal, se julgada pela experiência de todos os dias, que apenas apanha a aparência enganadora das coisas.». [17] Por isso, ficar-se pelas «aparências» se traduz necessariamente em passividade face à exploração capitalista, na sua aceitação. Um exemplo disso é a, infelizmente vulgar, resignação, acompanhada de um encolher de ombros, de que «sempre haverá ricos e pobres». Ficar-se pelas «aparências» é tomar por verdade evidente o que não o é. Exemplo disso é a desde sempre propalada mentirosa afirmação dos economistas e ideólogos burgueses – para desarmar as reivindicações económicas dos trabalhadores e o movimento sindical de classe –, segundo a qual «o aumento de salários acarreta o aumento dos preços». Por isso, para não se ficar pelas «aparências» é preciso ultrapassar uma consideração estática das coisas, é preciso um método dialéctico de conhecimento que apreenda a conexão real dos processos e das coisas no seu devir contraditório, suscitando e orientando a intervenção socialmente transformadora das massas trabalhadoras. Desta dialéctica materialista dirá Marx, no posfácio à 2.ª edição alemã de O Capital, ser ela «um escândalo e uma abominação para a burguesia e para os seus porta-vozes doutrinários, porque, na compreensão positiva do existente, ela encerra também ao mesmo tempo a compreensão da sua negação, da sua decadência necessária; porque ela apreende cada forma devinda no fluir do seu movimento, portanto, também pelo seu lado transitório; porque não deixa que nada se lhe imponha; porque, pela sua essência, é crítica e revolucionária» [18] .

Ao elaborarem uma teoria fundamentada na dialéctica material do movimento histórico e com ele interagindo – revelando a contradição inerente ao modo de produção capitalista entre o carácter social da produção e a apropriação privada da riqueza criada; revelando o segredo da exploração capitalista: a apropriação de trabalho não pago, a mais-valia; revelando que a conquista do poder político pela classe operária e a abolição das classes decorriam das próprias características das classes e da sua luta no capitalismo; etc. –, ao elaborarem uma teoria assim, Marx e Engels tornar-se-iam necessariamente alvo dos ataques de pretensos renovadores que ocultam mal e ornamentam pior o seu oportunismo político, a sua abdicação da luta política de classe proletária ou, para sermos magnânimos, a sua cegueira política.

Na verdade, se há quem pense ser nova e poder trazer algo de novo a actual moda renovadora de deixar para trás Marx e Engels (na verdade, ficando para trás deles), considerando irremediavelmente caduca a sua teoria revolucionária, atente no que escrevia Lénine no dobrar do século xix: «Até ao presente, as doutrinas de Marx e Engels eram consideradas como o fundamento sólido da teoria revolucionária; agora [repito: nos finais do século xix], levantam-se vozes por toda a parte para proclamar essas doutrinas insuficientes e caducas.» E perguntava: «que trouxeram pois de novo a esta teoria esses tonitruantes “renovadores” que tanto barulho fazem na hora actual [...]? Absolutamente nada: não fizeram avançar um passo a ciência que Marx e Engels nos recomendaram desenvolver; não ensinaram ao proletariado nenhum novo processo de luta; não fizeram senão recuar recolhendo fragmentos de teorias atrasadas e pregando ao proletariado, não a teoria da luta, mas a das concessões – das concessões aos piores inimigos do proletariado, aos governos e aos partidos burgueses [...]». E logo Lénine alertava: «Sabemos que estas palavras nos valerão uma avalancha de acusações: gritar-se-á que queremos fazer do partido socialista uma ordem de “ortodoxos”, perseguindo os “heréticos” que se afastam do “dogma”, que têm uma opinião independente, etc. Conhecemo-las, a todas estas frases contundentes na moda.» [19] Também nós conhecemos estas velharias repostas em moda!

Quando hoje ouvimos oportunistas de todos os matizes – latindo [para utilizar uma expressão de Marx [20] ] por vezes prazenteiramente em uníssono com toda a reacção – utilizar as derrotas do socialismo na URSS e outros países do Leste europeu na pretensão de deitarem definitivamente pela borda fora o marxismo-leninismo, é bom reflectirmos nas palavras de Marx, a propósito de uma outra derrota do movimento operário, a da Comuna de Paris, pois delas resultam bem nítidas as diferenças entre o estofo de um revolucionário e o de renegados. Diz-nos Marx em A Guerra Civil em França: «Ela [a classe operária] não tem utopias prontas a introduzir par décret du peuple [por decreto do povo]. Sabe que para realizar a sua própria emancipação – e com ela essa forma superior para a qual tende irresistivelmente a sociedade presente pela sua própria actividade económica – terá de passar por longas lutas, por uma série de processos históricos que transformam circunstâncias e homens. Não tem de realizar ideais mas libertar os elementos da sociedade nova de que está grávida a própria velha sociedade burguesa em colapso. Na plena consciência da sua missão histórica e com a resolução heróica de agir à altura dela, a classe operária pode permitir-se sorrir à invectiva grosseira dos lacaios de pluma e tinteiro e ao patrocínio didáctico dos doutrinadores burgueses de boas intenções, que derramam as suas trivialidades ignorantes e as suas manias sectárias no tom oracular da infalibilidade científica.». [21]

O mesmo estofo revolucionário transparece na crítica de Lénine aos «reformistas cobardes», os quais argumentavam da forma mais «estereotipada» «que nós [a Rússia] não estamos maduros para o socialismo, de que não existem no nosso país, segundo a expressão de vários “doutos” senhores dentre eles, as premissas económicas objectivas para o socialismo». Interrogava Lénine: «não passa pela cabeça de nenhum deles perguntar: não podia um povo que se encontrou numa situação revolucionária como a que se criou durante a primeira guerra imperialista, não podia ele, sob a influência da sua situação sem saída, lançar-se numa luta que lhe abrisse pelo menos algumas possibilidades de conquistar para si condições que não são de todo habituais para o crescimento ulterior da civilização?». [22]

Na prossecução da missão histórica da classe operária, acima referida por Marx, qual o papel dos comunistas, quer no plano prático quer no plano teórico?

Lê-se no Manifesto: os comunistas «não têm nenhuns interesses separados dos interesses do proletariado todo», mas são «na prática, o sector mais decidido, sempre impulsionador, dos partidos operários de todos os países; na teoria, eles têm, sobre a restante massa do proletariado, a vantagem da inteligência das condições, do curso e dos resultados gerais do movimento proletário».

Porque assim são, segue-se que «por toda a parte os comunistas apoiam todo o movimento revolucionário contra as situações sociais e políticas existentes» e lutando «para alcançar os fins e interesses imediatos da classe operária», no entanto, os comunistas «no movimento presente representam simultaneamente o futuro do movimento» [23] .

O papel de vanguarda dos comunistas e o sistema de alianças aqui traçado nunca será abandonado por Marx e Engels, ganhando contornos cada vez mais precisos. Assim, no Congresso da Haia da Associação Internacional de Trabalhadores (Setembro de 1872), Marx e Engels fazem aprovar uma Resolução sobre os Estatutos onde expressam com toda a clareza: «Na sua luta contra o poder colectivo das classes possidentes, o proletariado só pode agir como classe constituindo-se a si próprio em partido político distinto, oposto a todos os antigos partidos formados pelas classes possidentes.

«Esta constituição do proletariado em partido político é indispensável para assegurar o triunfo da Revolução social e do seu objectivo supremo: a abolição das classes.

«A coalizão das forças operárias, já obtida pela luta económica, deve servir também de alavanca nas mãos desta classe na sua luta contra o poder político dos seus exploradores.

«Servindo-se sempre os senhores da terra e do capital dos seus privilégios políticos para defender e perpetuar os seus monopólios económicos e subjugar o trabalho, a conquista do poder político torna-se o grande dever do proletariado.». [24]

Com razão dizia o jovem Lénine, em perfeita coerência com a teoria revolucionária de Marx e Engels, que esta «pôs a claro a verdadeira tarefa de um partido socialista revolucionário, que não é inventar planos de reorganização da sociedade, ou de pregar aos capitalistas e seus lacaios a melhoria da sorte dos operários [...], mas organizar a luta de classe do proletariado e de dirigir essa luta cujo objectivo final é a conquista do poder político pelo proletariado e a organização da sociedade socialista.» [25] A essa tarefa irá Lénine dedicar, abnegada e criadoramente, toda a sua vida, que culminará com a revolução russa de 1917 e o início da construção do socialismo como primeira etapa da superação revolucionária do capitalismo pelo comunismo. E com plena justiça histórica o seu nome ficará indissoluvelmente ligado ao nome do legado dos seus mestres, passando a concepção do mundo em que os partidos comunistas e revolucionários baseiam a sua actividade a designar-se por – marxismo- leninismo.

Defendemos hoje o marxismo-leninismo com o mesmo espírito com que no seu tempo Lénine defendia o marxismo. «Defender uma tal teoria», dizia ele, «contra os ataques injustificados e as tentativas de a alterar não significa de modo nenhum que se seja inimigo de toda a crítica. Nós não [a] consideramos de modo nenhum [...] como qualquer coisa de acabado e intangível; pelo contrário, estamos persuadidos de que ela somente colocou as pedras angulares da ciência que os socialistas devem fazer progredir em todas as direcções se não querem ficar atrasados em relação à vida» [26] .

Mas não nos farão progredir um passo propostas proclamando que «o problema já não é, na nossa época, privilegiar o combate contra a exploração do trabalho [...]. Já não é preparar a substituição de uma classe por uma outra, a tomada do poder por um grupo social no lugar de um outro» [27] e nos propõem o que eufemisticamente chamam «uma revolução da idade adulta» [28] . Segundo esta, a «sociedade [...] decide acabar com as sujeições nas relações que os indivíduos estabelecem entre eles»; ou o «mundo [...] decide que há lugar no seu seio, justamente, para “todo o mundo”, para todos os povos e cujo desenvolvimento se torna um co-desenvolvimento» [29] ; ou ainda a «sociedade», a «civilização» podem «decidir “se revolucionar” sem que alguém possa sonhar em lho im- por» [30] !! Pondo de lado a luta contra o capital e a necessidade da conquista do poder político pelas classes exploradas, rejeitando Marx porque «seria um erro reproduzir análises e “receitas” passadas» [31] , só restava a Robert Hue (são suas as palavras que vimos a citar) hipostasiar a «sociedade», o «mundo», a «civilização» como entidades autodecisórias, caindo assim no mais puro idealismo e na utopia pré-marxistas.

Nós não queremos ficar para trás em relação à vida, mas há análises e afirmações do passado cuja validade, permanência e pertinência, é afirmada pelas realidades actuais, porque dizem respeito ao que é inerente ao modo de produção capitalista. Citaremos a seguir duas delas:

Na Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864), Marx constatava: «[...] tornou-se agora uma verdade demonstrável a todo o espírito sem preconceitos e apenas negada por aqueles cujo interesse está em confinar os outros a um paraíso de tolos que nenhum melhoramento da maquinaria, nenhuma aplicação da ciência à produção, nenhuns inventos de comunicação, nenhumas novas colónias, nenhuma emigração, nenhuma abertura de mercados, nenhum comércio livre, nem todas estas coisas juntas, farão desaparecer as misérias das massas industriosas; mas que, na presente base falsa, qualquer novo desenvolvimento das forças produtivas do trabalho terá de tender a aprofundar os contrastes sociais e a agudizar os antagonismos sociais». E concluía: «Conquistar o poder político tornou-se [...] o grande dever das classes operárias.». [32]

E em O Capital escrevia, referindo-se a transformações como a crescente socialização do trabalho, a «aplicação técnica consciente da ciência», o «entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado mundial», etc.: «Com o número continuamente decrescente de magnatas do capital, que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste processo de transformação, cresce a massa da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da exploração, mas também a revolta da classe operária [...].» E concluía: «Soa a hora da propriedade privada capitalista.». [33]

Ainda em vida de Marx e Engels, já eram, porém, outros os caminhos que alguns pretendiam fazer o movimento operário e os seus partidos trilhar. Duas cartas de Engels são elucidativas de como, ele e Marx, encaravam o reformismo e o oportunismo.

Em carta a Bebel, destacado dirigente do movimento operário alemão, em Outubro de 1882, Engels considerava inadmissível «deixar cair, à boa maneira oportunista (ou como em tradução socialista se diz: possibilista) o carácter de classe do movimento e o programa, sempre que isso permitisse obter mais votos, mais “partidários”». Os que o fizeram, contra os que consideravam que «a luta deve ser travada como uma luta de classe do proletariado contra a burguesia» tornaram, concluía Engels, «a ruptura inevitável» [34] .

E a carta, escrita em Dezembro de 1889 a Trier, seu tradutor dinamarquês e lutador contra o oportunismo, não deixa também lugar para dúvidas: «Para que, no dia da decisão, o proletariado seja suficientemente forte para vencer, é preciso – Marx e eu próprio temos defendido esta posição desde 1847 –, que ele constitua um partido particular, separado de todos os outros e a eles contraposto, um partido de classe autoconsciente. «Mas isso não quer dizer [...] que ele não possa [...] apoiar outros partidos em medidas que ou são imediatamente vantajosas para o proletariado ou são o progresso no sentido do desenvolvimento económico ou da liberdade política». Essa postura política, tem, porém, um pressuposto, acentua Engels, «o de que o carácter proletário de classe do partido não seja por isso posto em questão. Para mim essa é a fronteira absoluta» [35] .

Os comunistas lutam pelo comunismo não como este sendo um dever-ser ideal [38] , mas como um revolucionar, teoricamente fundamentado e conduzido sob um ponto de vista de classe, do desenvolvimento contraditório do modo de produção capitalista; um revolucionar, pois, não a partir de uma exigência axiológica, mas na base das possibilidades reais que esse desenvolvimento contraditório, por o ser, abre.

Para terminar, dois ensinamentos de Marx:

– «Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas.». [37]

– a sociedade comunista tem de ser configurada «não como ela se desenvolveu a partir da sua própria base, mas, inversamente, tal como precisamente ela sai da sociedade capitalista; [uma sociedade comunista] portanto, que, sob todos os aspectos – económicos, de costumes, espirituais –, ainda está carregada das marcas da velha sociedade, de cujo seio proveio». [38]

Dois ensinamentos, para hoje e para amanhã, e que talvez expliquem muito do ontem.

NOTAS
(1) K. Marx, Reflexões de Um Jovem Perante a Escolha de Uma Profissão, in Marx-Engels Werke (doravante MEW), Ergänzungsband, 1. T., p. 594.
(2) K. Marx, «Debates sobre a liberdade de imprensa», Gazeta Renana, n.º 139, 19 de Maio de 1842, in MEW, vol. 1, p. 70.
(3) K. Marx, Para a Crítica da Economia Política, in K. Marx-F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos (doravante: OEME), Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Mosco-vo, t. 1, 1982, p. 530.
(4) «Justificação do Correspondente do Mosela»,
Gazeta Renana, n.º 17, Janeiro de 1843, in MEW, vol. 1, p. 177.
(5) F. Engels-K. Marx, A Sagrada Família, in MEW, vol. 2, p. 126.
(6) Id., Ibid., p. 37.
(7) K. Marx, Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844, Edições «Avante!», Lisboa, 1994, p. 137.
(8) K. Marx, Carta a A. Ruge, Setembro de 1843, in Marx-Engels Gesamtausgabe (MEGA2), vol. III/I, pp. 55 e 56.
(9) K. Marx, A Crítica
Moralizante e a Moral Criticante, in MEW, vol. 4, p. 358.
(10) K. Marx, Miséria da Filosofia, Edições «Avante!», Lisboa, 1991, pp. 111-112.
(11) V. I. Lénine, Socialismo Pequeno-Burguês e Socialismo Proletário, in Oeuvres, Éditions Sociales- Éditions du Progrès, 1966, t. 9, p. 460.
(12) «[...] penso que a tarefa dos comunistas [...] é fazer com que os movimentos sociais sejam portadores não somente de descontentamento ou de impaciência [...], mas sobretudo de soluções que o governo toma à sua conta», Robert Hue, Communisme. Un nouveau projet, Éditions Stock, 1999, p. 37.
(13) V. I. Lénine, Sobre a Nossa Revolução (A Propósito das Memórias de N. Sukhánov), in Obras Escolhidas em seis tomos, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1886, t. 5. p. 366.
(14) V. I. Lénine, A Bancarrota da II Internacional, in Oeuvres, ed. cit., t. 21, 1960, p. 221.
(15) K. Marx, Das Capital, in MEW, vol. 25, p. 825.
(16) José Barata-Moura, Materialismo e Subjectividade. Estudos em Torno de Marx, Edições «Avante!», Lisboa, 1998, p. 81. Sobre o tema em questão leia-se, em particular, o ensaio «Marx e a cientificidade do saber».
(17) K. Marx, Salário, Preço e Lucro, Edições «Avante!», Lisboa, 1984, p. 47.
(18) K. Marx, «Posfácio à segunda edição alemã de “O Capital”», in OEME, t. 3, 1983, p. 102.
(19) V. I. Lénine, O Nosso Programa, in Oeuvres, ed. cit., t. 4, 1973, pp. 216-217. Aos leitores que possam estranhar a utilização da designação «partido socialista» lembramos que o partido encabeçado por Lénine só no seu VII Congresso Extraordinário, realizado de 6-8 de Março de 1918, adoptou o nome de Partido Comunista da Rússia (bolchevique). Sobre as razões desta mudança veja-se o «Relatório sobre a revisão do programa e a mudança de nome do partido» aprovado nesse Congresso in V. I. Lénine, Obras Escolhidas em três tomos, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1978, pp. 522-523. Já antes, porém, Lénine defendera a necessidade dessa mudança de nome num escrito de Abril de 1917 intitulado As Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução em que lembra textos de Marx e Engels sobre a questão da denominação do partido do proletariado (ver a obra acima referida, pp. 43-46).
(20) K. Marx, Carta a J. Weydemeyer, 5 de Março de 1852, in MEW, vol. 28, p. 508.
(21) K. Marx, A Guerra Civil em França, Edições «Avante!», Lisboa, 1984, p. 70.
(22) V. I. Lénine, Sobre a Nossa Revolução (A Propósito das Notas de Sukhánov), in Obras Escolhidas em seis tomos, ed. cit., t. 5, 1986, pp. 367-368.
(23) K. Marx, Manifesto do Partido Comunista, Edições «Avante!», Lisboa, 1997, pp. 49, 49-50, 72 e 71.
(24) K. Marx-F. Engels, «Das resoluções do Congresso Geral realizado na Haia», in OEME, t. 2, 1983, p. 317.
(25) V. I. Lénine, O Nosso Programa, in Oeuvres, ed. cit., t. 4, 1973, pp. 216-217.
(26) Id., Ibid., pp. 217-218.
(27) Robert Hue, op. cit., pp. 279-280.
(28) Id., Ibid., p. 170. As do passado teriam sido infantis ou juvenis?!
(29) Id., Ibid., pp. 170-171.
(30) Id., Ibid., p. 169.
(31) Id., Ibid., p. 51.
(32) K. Marx, Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, in OEME, t. 2, 1983, pp. 9 e 12.
(33) K. Marx, O Capital, livro primeiro, tomo III, Edições «Avante!», Lisboa, 1977, pp. 861-862.
(34) Engels, Carta a Bebel, 28 de Outubro de 1882, in MEW, vol. 35, p. 382.
(35) Engels, Carta a G. Trier, 18 de Dezembro de 1889, in MEW, vol. 37, pp. 326 e 327.
(36) Como dizem Marx e Engels em A Ideologia Alemã: «O comunismo não é para nós um estado de coisas que deva ser estabelecido, um ideal pelo qual a realidade [terá] de se regular. Chamamos comunismo ao movimento real que supera o actual estado de coisas. As condições deste movimento resultam da premissa actualmente existente.» (K. Marx-F. Engels, A Ideologia Alemã (1.º capítulo), Edições «Avante!», Lisboa, 1981, p. 46.
(37) K. Marx, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, Edições «Avante!», Lisboa, 1982, p. 21.
(38) K. Marx, Glosas Marginais ao Programa do Partido Operário Alemão, in OEME, t. 3, 1985, p. 15.


[*] Membro do Comité Central do PCP.

O original encontra-se em O Militante , N.º 267 Novembro/Dezembro de 2003


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09/Dez/03